domingo, 31 de janeiro de 2010

Centenário da Imortalidade de Tolstoi

É 2010 o ano do centenário não da morte, mas da imortalidade de um dos maiores escritores não só de seu tempo, de seu país, mas de toda a história da literatura mundial: Liev Tolstoi.
            Autor de obras monumentais, de contos intensos e novelas primorosas, Tolstoi teve seu reconhecimento pela crítica e público ainda em vida. Sua obra, vastíssima é composta não só de livro no gênero literário, mas também de obras de cunho filosófico, pedagógico e teológico, e também teve uma notável importância no tocante à religião, sendo fundador de uma doutrina filosófico-teológica conhecida como “Tolstoismo”.
Tolstoi nasceu em Yasnaya Polyana em 1828, o jovem conde ficou órfão cedo, sendo educado por preceptores, e em 1851, na juventude, devido a um sentimento de vazio existencial por que foi tomado, acabou se alistando no exército da Rússia, o que colaborou para, mais tarde, vir a se tornar pacifista. No final da década de 1850, devido a preocupações relativas a precariedade da educação no meio rural, criou uma escola para filhos de camponeses, onde utilizava um novo método de ensino, com material didático próprio e, diferentemente da pedagogia da época, deixava os alunos livres, sem as excessivas regras e punições, comuns à pedagogia tradicional.
            Casou-se, em Sônia Andreievna Bers, com quem teve 13 filhos. Dedicou-se à vida familiar durante anos, mas longe de o casamento ser pacífico e harmonioso, seria repleto de distúrbios e brigas, mas, contraditoriamente, foi nessa época que produziu os dois romances que mais o tornaram conhecido para o universo literário, Guerra e Paz, escrito entre 1865 e 1869, e Anna Karienina, composto entre 1875 e 1877.
            Após a publicação de seus dois maiores romances, principalmente, muito bem-sucedido como escritor e mundialmente famoso, Tolstoi atormentava-se com questões sobre o sentido da vida, tentando encontrar respostas na filosofia, teologia e ciência, mas só a encontrou sendo guiado pelo exemplo de vida dos simples camponeses, que ele considerava o ideal. E a partir desse momento, teve o início de sua vida que o próprio escritor chamou de sua “conversão”.
            Encontrou, então, o que procurava ao seguir ao pé da letra a sua interpretação dos ensinamentos cristãos, nessa época de sua vida. Nesse cristianismo, Tolstoi recusava a autoridade de qualquer governo organizado e igreja. Dedicou-se a difundir suas ideias através de ensaios e peças teatrais e a criticar a sociedade e o intelectualismo estéril, sem ação. Tais ideias, difundidas tão amplamente, causaram grande impacto nos seus leitores e influenciando pessoas em todo o mundo, sendo o mais conhecido deles Gandhi, que colocou na prática os seus ensinamentos e modo de viver e ver a vida.
            Suas ideias atraíram inúmeros seguidores, que se denominaram “Tolstoianos”. Abriu mão dos direitos autorais de seus livros, que só voltaria a receber o dinheiro mais tarde, quando precisou arrecadar fundos para transportar para o Canadá uma comunidade de camponeses perseguidos pelo governo. Chegou a ser vigiado pelo Czar e devido às suas ideias e textos, foi excomungado pela Igreja Ortodoxa Russa, em 1901.
            No entanto, apesar de toda a simplicidade que acreditava e que buscava alcançar, sua família, em especial a sua mulher, cobrava-lhe luxos e riquezas, o que levou o escritor a fugir de casa, abandonando a família para seguir a vida na qual acreditava.
            Na sua fuga, preferia viajar em vagões de terceira classe, para ficar mais próximo às pessoas simples, mas tal atitude, num homem já debilitado, o fizeram contrair uma pneumonia, que logo se agravou, o que acarretou sua morte, no dia 20 de novembro de 1910, na estação ferroviária de Astapovo, província de Riazan.
            Em toda a sua obra, a crítica social é um dos temas que direta e indiretamente influencia os indivíduos, sendo fator primordial para sua felicidade ou infelicidade. Temas, também, como fé, dúvida e finitude estão muitas vezes presentes (quando não os três, pelo menos um deles) em todas as suas histórias.
            No entanto, mesmo sento tão conhecido (e reconhecido), muito devido a monumentalidade de sua obra, ainda há muito a se conhecer de tão genial escritor. E só recentemente seus livros começaram, no Brasil, a terem o tratamento justo, que sempre mereceram, com traduções diretas do russo. Mas há, ainda, um longo, árduo e prazeroso trabalho pela frente, para se conhecer a obra desse magnífico imortal da literatura mundial.
            Nesse ano, que marca o centenário da morte em vida e imortalidade em obra de Tolstoi, devemos, nós, leitores e amantes de sua literatura, fazer como os camponeses o operários, que foram receber o trem funerário que trazia o corpo do escritor, e receber sua obra, e carregar seus livros, da mesma forma que aqueles carregaram seu caixão, seguido por uma multidão que se estima tenha sido de 3 a 4 mil pessoas, cujo número não foi ainda maior porque o governo de São Petersburgo proibiu a vinda de trens especiais de Moscou para o enterro do escritor.
            Na época, a morte do escritor foi noticiada nos principais jornais do mundo, hoje, no centenário de sua imortalidade, sua obra será lida e apreciada nos quatro cantos do universo, onde haja amantes da boa literatura.


domingo, 24 de janeiro de 2010

O Pássaro em sua Gaiola - Conto


Vivia preso em uma gaiola um belo pássaro, um papagaio de um verde bonito. Tinha algumas penas na ponta de suas belas e grandes asas azuis e amarelas. Possuía em torno dos olhos algumas penas amarelas e, no peito, algumas vermelhas. Era um pássaro que desde pequeno vivia naquela casa, preso dentro de uma gaiola.
Era feliz, pois era bem alimentado, sabia falar algumas palavras e todos na casa o adoravam. Quando chegava alguma visita, antes mesmo da pessoa falar com os de casa, brincava com a ave e tentava fazê-la falar alguma palavra.
– Mãe, tem gente – falava o papagaio, como havia sido ensinado, sempre que via alguém estranho chegando a casa.
O visitante, ao ouvir isso, caía na gargalhada com a astúcia e inteligência da ave.
O papagaio falava outras tantas frases, assobiava e cantava. Todos os dias pela manhã, logo que acordava, dava “bom-dia” a todos em casa, chamando cada um pelo nome, e pedia café.
A ave era mesmo mais querida na casa do que o próprio cachorro.
Quando o papagaio via o cachorro, gritava, com sua voz rouca e fina, “pega, Rex”, como lhe ensinaram.
Apesar de viver encarcerada dentro de sua gaiola, onde mal podia abrir as asas, a ave se sentia feliz com seu lar, pois este era o único no qual vivera, e não sabia viver de outra maneira, pois nunca havia experimentado outra forma de aproveitar sua vida e suas asas.
O papagaio chegara mesmo até a esquecer que tinha asas, de tão esquecidas que elas ficavam, coladas junto a seu corpo, atrofiadas e cortadas em suas pontas, “para que ele não voe e fuja”, alegavam seus donos.
Certa vez, a ave, foi retirada de sua gaiola porque uma visita queria vê-la andar pela casa, livre, e deixá-la se empoleirar em seu ombro. Assim a ave o fez.
Ao ver a porta da gaiola aberta, o papagaio não soube o que fazer, pois nunca ninguém havia deixado a porta de sua “casa” aberta. Ele hesitou, sem saber o que fazer, como reagir. Seus pés, pesados, como se se negassem a obedecer, não queriam levá-lo para o lado de fora, onde aquele estranho o chamava. Mas de tanto o homem insistir, o papagaio conseguiu fazer valer a sua vontade, criou coragem e fez seus pés obedecerem às suas ordens.
Com seu “pé”, o papagaio segurou no dedo da mão do homem, que a oferecia para ele se segurar.
Sentindo-se insegura, a ave caminhou por todo o braço do homem, e, pela primeira vez em sua curta vida, sentiu o prazer de uma incompleta e imperfeita liberdade. Respirou profundamente e soltou um assobio alegre e gargalhou. Abriu suas grandes e belas asas e, meio sem jeito, as agitou. Como não sabia voar e tinha as asas podadas, acabou caindo no chão e se machucando.
Ao se estatelar no chão, a ave soltou um sonoro grito de dor e bateu freneticamente as asas.
Seus donos, muito preocupados com a ave, seguraram-na nos braços e verificaram se estava tudo bem. Para o alívio deles, e da própria ave, nada de grave ocorrera e eles a colocaram novamente dentro de sua gaiola.
Depois que as visitas foram embora e todos em casa se retiraram para seus quartos, deixando a ave sozinha, o papagaio começou a se observar. Olhava espantado para as suas asas. Era como se, pela primeira vez na vida, as tivesse notado. Com seus olhos arregalados, ele as contemplava e sorria por dentro, como se pela primeira vez na vida tivesse se dado conta de que era uma ave e provado o delicioso prazer da liberdade.
Naquela noite, o papagaio dormiu e sonhou com a porta da gaiola sendo aberta, com ele batendo as asas e caminhando livre por toda a casa.
No dia seguinte, como sempre, a ave deu “bom-dia” a todos e pediu seu “café”. Seu dono lhe serviu sementes de girassol e o “louro” começou a comê-las prazerosamente.
Durante o dia, ele foi novamente solto e, dessa vez, mais seguro de si, caminhou livremente por toda a casa durante um longo tempo, com as asas coladas ao corpo.
Quando seu dono se aproximou para pegá-lo, ele abriu suas asas e as bateu freneticamente, sem jeito, pois não sabia o que fazer com elas. Aquilo lhe deu um certo prazer e o animal começou a gargalhar e a gritar “pega, Rex”.
No dia seguinte, foi novamente solto e, cada vez mais confiante, controlou a batida de suas asas e chegou mesmo a se levantar alguns centímetros do solo. Seus donos imediatamente pegaram-no e cortaram a ponta de suas asas.
Sempre que os seus donos fizeram isso nas vezes anteriores, o papagaio ficava quieto, pois havia sido acostumado a assim proceder, mas dessa vez esboçou alguma resistência. Mas como não tinha suficientes forças para resistir, acabou tendo as asas cortadas em suas pontas.
Naquela noite, quando todos se retiraram e o papagaio ficou só, ele olhou para as suas asas e, vendo-as feridas e, naquele momento, inúteis, chorou.
No dia seguinte, no horário que tinha se acostumado devido aos dias anteriores, esperou ser solto para andar um pouco livremente pela casa. Mas nesse dia, não aconteceu o que ele esperava. Seu dono passou por ele, o cumprimentou e o deixou na gaiola, trancado. A ave não sabia o porquê daquilo e ficou triste durante todo o resto do dia e não abriu o bico uma vez sequer para falar, de tão frustrada que se sentia.
Os dias que se seguiram foram iguais aos anteriores: a ave acordava, não falava com ninguém, mas recebia sua comida na gaiola, duas vezes por dia, passava o dia inteiro sem abrir o bico, triste como estava, e ia dormir tarde da noite e sonhava com dias melhores, com dias em que seria novamente solta e poderia voltar a caminhar livremente pela casa.
Um dia, seus donos, preocupados com o estado, resolveram levar a gaiola para fora, a fim de que a ave pudesse tomar um “banho de sol”.
Chegando do lado de fora, o papagaiou guinchou e reclamou com aquela luz excessiva, que lhe feria os olhos e o cegava. Mas, depois que se acostumou com a luz e com o calor que emanava do sol, passou a se sentir confortável e bem com ela.
Os dias se passavam e quase todas as manhãs seus donos levavam a gaiola para fora para que o papagaio tomasse seu “banho de sol”.
Um dia, quando seus donos deixaram a gaiola com o papagaio do lado de fora e foram resolver alguma coisa dentro de casa, veio voando e pousou perto de onde a ave estava um pequenino pássaro, de cores muito vivas e belas. Ao avistar o passarinho, o papagaio começou a gritar, excitado, feliz por ver aquilo que jamais tinha visto em sua vida. O passarinho, ao ver o papagaio preso na gaiola, ficou com os olhos tristes ante aquela visão. Assobiou um canto triste, longo e tocante, tanto que mesmo nos olhos da ave encarcerada surgiram lágrimas.
Ao terminar seu canto, o passarinho, muito delicadamente abriu suas frágeis asas e as bateu e voou para longe.
Durante um longo tempo, o canto do passarinho ecoou dentro dos ouvidos do papagaio e a visão da ave solta, feliz por estar livre e voando pelos ares, enchia seus olhos e sua imaginação, sem limites, sem gaiolas e sem amarras, voava.
Dias se passaram e sempre que podia, o passarinho vinha visitar seu amigo engaiolado, preso, e com estas visitas, o papagaio sentiu, dentro de si, o inexorável desejo de ser livre, de voar. A cada vez que ele via o passarinho, ele sentia esse desejo aumentar.
Dentro de sua própria gaiola, mesmo pequena, o papagaio abria suas asas e ensaiava um voo.
Um dia, quando seu dono trocou sua água pela manhã e colocou as sementes de girassol dentro de seu cocho, por descuido, não travou direito a porta. Colocou a gaiola, como vinha fazendo todos os dias, no lado de fora de casa e, em seguida, voltou para dentro a fim de cuidar de seus afazeres domésticos.
O passarinho apareceu naquele dia e pousou ao pé da gaiola. O papagaiou abriu suas asas, como que para mostrar que tinha aprendido a voar, se aproximou do passarinho e olhou bem dentro de seus olhos. Ele andou de um lado para outro da gaiola, excitado, como se estivesse procurando alguma brecha por onde pudesse escapar, até que parou de frente à porta. Para seu espanto e alegria, a porta se abriu. Meio hesitante, o papagaio olhou para baixo e voltou alguns passos, pois tinha medo de voltar a cair. Ao dar esses passos para trás, o passarinho levantou voo e pousou suavemente dentro da gaiola e começou a assobiar, dessa vez com uma voz mais alegre. O papagaio, contagiado por aquela alegria, se dirigiu novamente até a porta da gaiola. O passarinho saltou no chão e pousou suave como uma pluma. O papagaio, ainda com receio de cair e se machucar, demorou a criar coragem para saltar. Mas encorajado pelo amigo, saltou. Bateu as asas freneticamente, de forma que uma pequena corrente de ar se fez sentir e o barulho foi tão grande que o dono do animal veio correndo para ver o que se passava.
Ao chegar do lado de fora de casa, o homem viu seu papagaio do lado de fora da gaiola, livre. A ave olhou para seu dono, para a gaiola e para o passarinho, que a seu lado deu um impulso e levantou voo, livre. O papagaio abriu suas belas e grandes asas e, a princípio meio sem jeito, mas aos poucos ganhando confiança, tomou altura e logo estava voando, sentindo o ar puro encher seus pulmões, o vento por baixo de suas asas e o sabor da liberdade. Enquanto estava no ar, olhou para trás e viu, lá embaixo, sua gaiola, onde tinha estado preso por tanto tempo, a qual chamava de lar. Voltou sua atenção para o voo, para tudo que tinha diante de si. Ao seu lado voava o passarinho, como que para encorajá-lo.
O papagaio agora tinha como lar o céu e como maior alegria o prazer de ser livre.


domingo, 17 de janeiro de 2010

Dom Quixote


Num lugar de La Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia, não há muito, um fidalgo, dos de lança em cabido, adarga antiga, rocim fraco, e galgo corredor.
           
            Essa é a primeira frase do que é um dos mais importantes livros da literatura mundial de todos os tempos, um dos primeiros e mais significativos romances da história. Escrito por Miguel de Cervantes (1547-1616), o livro é composto por 126 capítulo, sendo estes divididos em duas parte, a primeira sendo publicada em 1605 e a segunda em 1615, e mesmo após quase quatro séculos (levando-se em consideração a publicação da segunda parte), o livro continua atual, fascinando leitores de todas as idades, dos quatro cantos do mundo.
            O livro surgiu em um período de grande inovação e diversidade por parte dos escritores ficcionistas espanhóis. Parodiou os romances de cavalaria que gozaram de imensa popularidade no período e, na altura, já se encontravam em declínio. Nesta obra, a paródia apresenta uma forma invulgar. O protagonista, já de certa idade, entrega-se à leitura desses romances, perde o juízo, acredita que tenham sido historicamente verdadeiros e decide tornar-se um cavaleiro andante. Por isso, parte pelo mundo e vive o seu próprio romance de cavalaria, junto a seu fiel escudeiro Sancho Pança. Enquanto narra os feitos do Cavaleiro da Triste Figura, Cervantes satiriza os preceitos que regiam as histórias fantasiosas daqueles heróis. A história é apresentada sob a forma de novela realista.
            Dom Quixote é considerada a grande criação de Cervantes e o mais importante livro de toda a produção literária de seu país. É considerado, também, um marco na literatura e cultura literária de todo o ocidente. São inúmeras as influências deixadas por tal obra, sendo, até hoje, estudada, traduzida, adaptada, sendo feitas inúmeras releituras desse que é um dos mais fascinantes livros de toda a literatura universal. Além disso, tomado como uma referência em inúmeras adaptações para o cinema, teatro e música.
            A história narra as aventuras de Dom Quixote, um fidalgo que perdeu a razão devido à leitura assídua de romances de cavalaria. Em busca de suas próprias aventuras, imitando os seus heróis diletos, sai, em companhia de seu amigo e escudeiro Sancho Pança, o mais carismático e simplório personagem da história. A ação da história se dá em torno das três incursões de Dom Quixote e Sancho, pelas regiões de La Mancha, Aragão e Catalunha. Nessas incursões, a dupla se envolve numa série de aventuras, mas suas fantasias são sempre desmentidas pela realidade, o que dá, a história, um tom humorístico.
            Livro de leitura rebuscada, representa, para a literatura, uma das mais perfeitas obras no tocante a construção textual. Dom Quixote não é um livro para ser lido numa noite só, de um só fôlego, mas sim ao longo de semanas, “bebendo” cada uma de suas palavras.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

O Prazer da Releitura - artigo


Jean-Paul Sartre (1905-1980), escritor e filósofo francês, um dos principais pensadores e autores de seu país no século XX, autor da trilogia Caminhos da Liberdade, composta pelos livros A Idade da Razão, Sursis e Com a Morte na Alma, além de peças, como Entre Quatro Paredes, e do roteiro para o cinema de uma produção sobre Freud, adepto a teoria filosófica existencialista, escritor de um dos livros mais importantes do século passado dessa teoria, O Ser e o Nada, disse, certa vez, que um livro que não merece ser lido duas vezes não merece sequer ser lido uma vez.
A releitura de uma obra proporciona a nós, leitores, um prazer ímpar, de se deleitar, de apreciar, de rever cada personagem com que se identificou, de se viver cada situação, de sentir, outra vez, aquela emoção da primeira leitura. Além disso, numa releitura, podemos atentar para aquela passagem que nos passou despercebida na primeira vez, para perceber aquele discreto personagem, que se mostrou tão importante, que ficou como que escondido na leitura anterior.
Existem livros feitos para serem lidos várias vezes ao longo de nossa vida, que, a cada vez parecem se adequar como o momento em que vivemos, como o caso de O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupery; há outros de leitura difícil, que exigem de nós, leitores, uma grande esforço, sendo a apreciação de tal obra um verdadeiro estudo, como é Ulisses, de James Joyce, e A Montanha Mágica, de Thomas Mann; e há também aqueles livros que são multáveis, que a cada vez que o lemos ele se apresenta de uma forma nova, completamente diferente da vez anterior.
Há leitores que chegam a tal extremo que já virou tradição se fazer a leitura da mesma obra uma vez por ano e há outros que reservam uma época do ano para se reler uma obra, lida há anos.
A releitura pode até ser a de um mesmo livro, mas, mesmo assim, é uma leitura diferente, diferenciada, nova; o livro pode até ter o mesmo nome de um lido anteriormente, no entanto, nunca é o mesmo. Portanto se permita, reviva, ressinta, releia.

O Ano Começa como uma Segunda-feira: Cheio de preguiça - crônica de início de ano



Eis que, como sempre acontece ao longo dos séculos, mal um ano termina e um outro começa, e fico a perguntar se ninguém, em sua sã consciência, nunca pensou em instituir uma espécie de brecha no “espaço/tempo” e que fosse permitido gozar do fim de mais um ano em santa paz, com algum tempo de sobra sem se preocupar com o novo ano. Seria algo como “nem um ano nem outro”, uma espécie de merecidas férias devido a tudo que se foi lutado e conquistado no ano anterior, mas sem a pressão de começar tudo de novo no novo ano que mal começa.
            De qualquer forma, enquanto ninguém pensa (e faz) efetiva isso, vamos seguindo a nossa vida e a nossa rotina como sempre nos foi ensinado (imposto) ao longo dos séculos, pelas tradições que cultivamos.
            E falando em tradição, o meu ano começou seguindo a maior de todas: a preguiça de início de ano, a que talvez seja a maior tradição de todo o mundo. Demorei a acordar nos primeiros dias do ano, demorei a ajustar meu “relógio biológico”, demorei a jogar fora meu calendário velho, demorei a colocar “2010” no lugar de “2009”, como passei todo um ano fazendo, naqueles papeizinhos que tive que assinar e colocar a data, enfim, demorei a tudo, até mesmo a colocar meus primeiros textos efetivos no blog, dando início aos trabalhos de mais um ano.
            E como falar em “novo ano” e falar em planos, comigo não podia deixar de ser diferente. Tenho tantos planos para 2010 que seriam necessários quase cinco anos para concretizar todos. Fiz planos quanto a leitura de livros (que são muitos para esse ano), fiz planos quanto ao lançamento dos meus livros, sendo o primeiro ainda para esse semestre, e estou, já, mirando o terceiro livro, segundo de contos, cujo título será O Homem que não queria ser forte e outras histórias, previsto para o final desse ano. Mas nem só de livros se vive um ser humano (se bem que essa ideia seria muito interessante. Vou colocar em pauta: viver só de livros, para os próximos anos). Então fiz planos mirabolantes, exatamente como todos fazem, entre eles está o de ganhar na Mega-Sena (!). Isso mesmo: ganhar na Mega-Sena. Planejei tão bem isso, estou fazendo um “Pensamento Positivo” tão forte, usando todos os meus conhecimentos da chamada “Lei da Atração” (olhe só no que dá trabalhar-se numa livraria e se conviver com todos aqueles livros de auto-ajuda!) e posso assegurar que desse ano não passa: vou ganhar na Mega-Sena. A força do meu pensamento é tão forte (força forte é meio redundante né?! Mas deixa pra lá. Isso é fruto da “preguiça de pensar” e da “ressaca de natal”, resquícios do ano de 2009) que já me vejo até com lápis e papel na mão, planejando o que vou fazer com todo o dinheiro que vou ganhar.
            Enfim, o novo ano está aí, assim como os planos, que muitos dos quais irei realizar (leia-se: ganhar na Mega-Sena – olhe o pensamento positivo), outros irão ficar pelo caminho, por simples falta de tempo, afinal de contas, é só um “ano comum”, composto de 365 dias, e alguns eu simplesmente vou esquecer daqui a uma semana.
            De qualquer forma, desejo a todos um excelente 2010. Sei que falar isso, agora que já se passaram quase duas semanas, parece meio tardio, mas penso que compreendam que isso é provocado pela preguiça de início de ano, do que não tenho culpa alguma. Essa é só mais uma tradição instituída ao longo dos séculos, pois, para mim, todo novo ano começa como numa segunda-feira: cheio e preguiça.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Ela só queria um livro didático - Crônicas da Sicililândia


Mais um dia estafante de trabalho e o vendedor olhava para seu relógio a cada cinco minutos, com a esperança de ver chegar o momento em que poderia trocar sua farda com uma bonita roupa e ir aproveitar a noite, numa festa regada a muita bebida e música.
            O vendedor, já ansioso para que chegasse ao fim aquele dia, olhando a todo instante para a porta, por onde entrariam seus colegas de trabalho, para a troca de turno e ele pudesse ir embora, quando viu se aproximar uma simpática senhora.
            - O senhor trabalha aqui? – perguntou ela, mesmo tento observado o logotipo da empresa em sua camisa e seu crachá. O vendedor, já tão acostumado àquela pergunta, mesmo tendo vontade de responder de forma ignorante, apenas respondeu que “sim”, que trabalhava naquela livraria.
            A mulher então começou a remexer sua bolsa, em busca da folha de papel em que tinha anotado o nome dos livros e autores que provavelmente a sua filha tinha pedido para comprar. Quando finalmente encontrou a tão procurada lista, que começou a desdobrá-la, o vendedor, já sabendo de antemão do que se tratava, tentou impedi-la daquele trabalho todo, dizendo que não trabalhava com aquele tipo de livro que ela ia pedir. Mas ela não entendeu os gestos do funcionário nem a expressão de ódio em seu olhar, e continuo calmamente a desdobrar a folha de papel. Ao terminar esse trabalho, ela o esfregou de tal maneira que a folha parecia nova.
            - Você tem esse livro aqui, meu filho? – perguntou ela.
            O vendedor, já sabendo que não dispunha daquele livro que a mulher queria, disse que não antes mesmo de averiguar de que livro, autor e editora se tratava.
            - Não, senhora. Nós não estamos trabalhando com livro didático esse ano – respondeu ele, com um sorriso no rosto. Estava tão acostumado com tudo aquilo nas últimas semanas que até seu sorriso não mudava quando era perguntado sobre livros didáticos. Além do mais, a senhora tinha um rosto tão simpático que era impossível agir de maneira menos cortês com ela.
            A mulher, com uma expressão de desgosto na face já voltava a dobrar a lista quando a olhou de relance, e resolveu ver se naquela livraria tinha um outro da lista.
            - E esse daqui, de português. Você tem?
            - Não tenho nenhum livro didático, senhora, infelizmente – respondeu ele, agora em tom um pouco mais ríspido.
            A mulher, completamente decepcionada por ter dado uma viagem daquela em vão, para não encontrar nenhum livro, já se retirava, quando se voltou mais uma vez para o vendedor e lhe perguntou:
            - Você não tem nem esse daqui, de matemática? – apontando para a lista.
            O vendedor, já inteiramente sem paciência, respirou duas ou três vezes profundamente antes de responder.
            - Não, senhora. Não tenho nenhum desses livros de sua lista, pois não estou trabalhando com nenhum – ele enfatizou bem essa palavra – livro didático esse ano – ele falou de forma calma, controlada, embora seu queixo tremesse ligeiramente e em seu olhar, senil, transparecesse o ódio que sentia naquele momento.
            A mulher resolveu então fazer uma última tentativa.
            - E esse aqui, de física, você tem?
            O vendedor, tomado repentinamente por uma fúria inexplicável, saiu, deixando a senhora sozinha com sua lista, e foi até o escritório da loja. Voltou um minutinho depois com uma espingarda em punho. Apontou a arma para a mulher e falou de forma firme e enfática:
            - Eu não tenho livro didático, senhora.
            A mulher, tremendo ante aquela visão apocalíptica, segurou com firmeza a lista numa mão, para mostrar ao vendedor. Com a outra mão apontou.
            - E esse aqui de química? – a voz dela tremia tanto que mal se conseguia ouvir o que falava.
            - Eu – bum – não – bum – tenho – bum – LIVRO DIDÁTICO – respondeu o vendedor, descarregando a arma sobre a pobre senhora.
            A mulher, caída no chão, com o sangue a escapar por todo seu corpo, ainda tinha forças para levantar a mão, que se negava a soltar a lista de livros, enquanto com a outra apontava.
            - Nem mesmo o de química? – perguntou ela.
            O vendedor então pegou sua metralhadora automática e tal qual um Rambo, deu mais de vinte tiros na mulher.
            Quando percebeu que a bondosa senhora não tinha mais vida, ele se agachou e tentou retirar da mão dela aquela lista, que tinha sido seu decreto de morte. Mas ela a segurava com tanta força, como se a salvação de sua alma dependesse daqui, que por mais que o vendedor tentasse, não conseguiu retirar a lista das mãos dela. Foi então que ele pegou novamente sua espingarda e disparou cinco tiros no braço da mulher, estilhaçando-o. Somente sua mão ficou inteira e fechada, negando-se a entregar o papel, a lista de livros didáticos, que seria sua carta de recomendação para entrar no paraíso.
            Foram necessários mais de cinco homens da polícia, além dos cachorros a latir e a rosnar, para fazer com que o vendedor largasse a mão da mulher, contra a qual lutava para arrancar aquele papel.
            Ele foi preso e no dia do julgamento todos estavam quietos e calados quando ele entrou, sendo escoltado por dez policiais fortemente armados, para protegê-lo daqueles que queria linchá-lo, por ter matado de forma tão cruel aquela bondosa mulher, mas também para proteger as pessoas dele, caso ele fosse acometido de uma nova onda de fúria e ódio repentina.
            O julgamento transcorreu de forma tranqüila e sem incidente algum. As testemunhas de acusação e de defesa foram ouvidas, foi-se provado que o homicídio não foi premeditado, sendo o réu, então, sendo acusado de ter cometido um homicídio por motivos torpes.
            Quando o promotor de acusação teve sua chance de interrogar o réu, começou a andar de um lado para o outro, como se desfilasse de frente aos jurados e ao juiz. Tirou de dentro de seu paletó um papel, que desdobrou cuidadosamente e mantendo-se a certa distância, perguntou ao vendedor:
            - O senhor tinha absoluta certeza de que não tinha esse livro de química?
            O réu então pulou de sua cadeira, conseguiu arrancar uma arma de um dos policiais que o escoltava e subindo à mesa onde se encontrava o juiz, apontou o revolver para a própria cabeça e disse de forma clara, para que todos pudessem ouvi-lo e, enfim, entende-lo.
            - Eu não tenho NENHUM LIVRO DIDÁTICO – então ele descarregou a arma em sua própria cabeça. Foram seis tiros disparados de forma tão rápida que não houve tempo para impedi-lo.
            Quando tudo terminou, o réu foi declarado inocente e todos souberam que ele não tinha, realmente, nenhum livro didático.
            Sua alma foi encaminhada ao céu, apesar dele ter matado uma pessoa e dado um fim a própria vida. Sua credencial para a entrada no paraíso era uma lista de livros didáticos.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Caim - Livro da Semana



José Saramago, primeiro escritor português a vencer o Nobel de literatura (1998), é considerado um dos maiores escritores do século XX não só de seu país, mas mundial. Dono de uma escrita ímpar, fluida e envolvente, criador de obras-primas da literatura mundial, como Ensaio Sobre a Cegueira (1995), O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), Memorial do Convento (1982) e Levantado do Chão (1980), livro este que o firmou, definitivamente, tornando-o conhecido para a literatura mundial, tem em Caim seu mais novo livro.
            Saramago, ateu declarado e convicto, foi excomungado após o lançamento do polêmico O Evangelho Segundo Jesus Cristo, retoma os temas religiosos nesse seu novo romance. No primeiro, o autor revisita fatos e passagens do Novo Testamento, enquanto no seu novo livro a sua história revê fatos, passagens e personagens do Velho Testamento, sendo todos eles observados por Caim, que fora condenado por Deus a vagar eternamente, proibindo-o de morrer de forma semelhante (violenta) a que morreu o irmão, Abel, que fora assassinado por ele.
            Ao longo do livro, revemos fatos e personagens do Antigo Testamento e passagens bíblicas recontadas de uma genial forma por Saramago, com toques de uma fina ironia e de um humor ácido, colocando Deus num patamar humano, sujeito a erros e críticas, dotado de uma personalidade geniosa e impulsiva, que brinca e testa a sua criação, o homem, ao seu bel prazer.
            Caim, primogênito de Adão, é, desde cedo, ensinado a respeitar a Deus, e, junto com seu irmão, sempre faz suas oferendas ao Criador, queimando a melhor parte sua colheita, dos grãos que cultiva. No entanto, já por diversas vezes Caim tem a sua oferenda recusada por Deus e o fruto de seu trabalho não chega ao céu, enquanto as oferendas de seu irmão, Abel, são aceitas. Num acesso de fúria (e talvez de um pouco de inveja), Caim atrai seu irmão e o mata. Deus, ao ver tal crime cometido, recrimina o assassino, mas este o recrimina mais ainda ao afirmar ser Ele tão culpado quanto si próprio, primeiro, por não ter aceitado as suas oferendas; segundo, por ter Ele permitido que tal barbaridade fosse cometida. São, então, para Caim, os dois culpados.
            A Deus cabe a responsabilidade de julgar, e condena Caim a vagar pelo mundo, sem o direito de morrer até que não tenha chegado o tempo. A morte de Caim será de uma forma não violenta, como fora dada ao seu irmão, e ele carregará uma marca na testa, que o distinguirá.
            Ao vagar pelo mundo, Caim presencia diversos fatos, conhece diversos lugares e tem, cada vez mais, absoluta certeza da verdadeira natureza de Deus. Conhece as terras de Nod, onde se envolve com Lilith, com quem tem um filho; impede o assassinato de Isaac, filho de Abraão, tendo chegado a tempo para impedir tal crime, que fora mandado por Deus a fim de testar a fé do temente homem; presencia a injustiça de Deus, quando este condenou milhares de inocentes, incluindo crianças, na destruição de Sodoma e Gomorra; vê as milhares de mortes sob o consentimento Dele nas guerras; viu, horrorizado, a forma como Deus testou a fé de Job, em uma aposta com Satã; e viu também diversos outros fatos, como a queda da Torre de Babel e, em suas jornadas pelo presente, passado e futuro nos fatos bíblicos, Caim encontra Noé e embarca em sua arca.
            O livro é construído de uma forma ímpar, com a narração característica de Saramago, que nos impressiona, no entanto, longe de ser um livro de um “ateísmo militante”, o objetivo do escritor foi o de dar uma outra visão a tais fatos, apresentar-nos uma outra face de um Deus genioso, de dar um tom irônico, de um humor ácido, a tais passagens.
            A leitura do livro, apesar de extremamente criativo e inventivo, tem seu início envolvente, perde o ritmo a partir da metade, tornando-se enfadonha e, por vezes, até maçante e previsível, o que acaba por torná-lo um bom livro, sem dúvida, mas longe de figurar entre os melhores do que é o maior escritor português da atualidade.