Ele
parou em frente ao espelho, mas não mirou imediatamente aquele que lhe olhava
tão fixamente no reflexo, através daquela parede de fino vidro. Estava cansado.
Respirou fundo duas ou três vezes, e só então levantou os olhos e viu, para seu
espanto, um alguém já velho, diferente
daquele que ele guardava a lembrança, com a pele ressecada, marcada por
profundas cicatrizes que o tempo lhe deixara. Tinha os olhos secos e a boca
fechada. Olhos que não choravam e boca que não se abria num único sorriso
sequer. Foi subitamente tomado por uma lembrança; a lembrança do dia em que se
investira daquela expressão, em que se fechara para o mundo, em que decidira se
proteger por trás daquela grossa carapaça que nada poderia ultrapassar.
Foi quando, com o coração em
frangalhos, começou a vagar, deixando que seus pés o guiassem livremente. Mesmo
com o corpo cansado, não parou de caminhar, até que, extenuado, se deixou cair
pesadamente no chão. Aquela não foi a primeira vez em que se vira sofrendo com
tanta intensidade, não foi a primeira vez em que sentira tamanha dor no peito,
mas decidira, naquele momento, que seria a última das vezes. Cansado de sofrer,
decidira que aquela fora a última vez que sofrera aquela dor.
Eram tantas as dores que trazia no
peito, eram tantos os sofrimentos que ficaram marcados no fundo de sua alma,
que se sentia cansado de viver-sofrer. Não tinha mais forças, não aguentaria
mais viver uma nova dor. Parado, ali, de joelhos, humilhado por aquele
sentimento que lhe consumia por inteiro, por aquele sofrer, resolvera tomar uma
atitude radical e expurgar tudo aquilo, todos aqueles sentimentos que lhe
poderiam, de alguma forma, lhe fazer se decepcionar, lhe trazer alguma dor. Não
queria mais sentir aquele gosto ruim na boca, não queria mais senti-lo se
espalhar por todo o seu corpo, nos poros de sua pele, em suas veias, lhe
turvando a visão, lhe pretendo a respiração, lhe roubando os sentidos. Pegou então,
uma faca, mas não tinha coragem de tirar sua própria vida. Então se pôs a
apunhalar todos aqueles sentimentos causadores de dor. Percebeu, no entanto,
que os que lhe causavam de dor estavam intrinsecamente ligados aos que lhe
traziam felicidades, os que lhe arrancavam lágrimas eram gêmeos dos que lhe
abriam sorrisos, mas ele não deu importância para isso, e continuou em sua
atitude intempestiva. Quando terminou, percebeu que tinha ao seu redor tantos
sentimentos que não cabiam numa caixa, onde pretendia trancá-los para que nunca
mais pudessem sair, então os pôs dentro de um container. Selou os sentimentos,
todos os que viviam em seu peito, naquela imensa caixa de metal, e os guardou
para sempre, escondendo em um local protegido nas profundezas de sua alma, onde
ninguém, nunca, poderia chegar.
Levantou-se lentamente, livre de
toda e qualquer dor, de todo e qualquer sentimento. Pôs-se, então, a viver uma
vida tranquila, cumprindo todas as suas obrigações, vivendo uma rotina sem
reclamar, nunca, de nada. Não chorava, mas também não ria; não ficava triste,
mas estava, também, livre de pequenas felicidades. Quando recebia um convite
para alguma coisa, atendia com um “sim” ou um “não”, indiferente, pois “sim” e “não”
para ele eram a mesma coisa, as faces de uma mesma moeda. Casou, mas sem se
apaixonar, simplesmente porque precisava se casar, porque impuseram isso a ele.
Traiu porque tinha que trair, e mesmo na traição era indiferente com relação
àquela com quem ia para a cama, e com aquela que ficava a lhe esperar,
aguardando-o em casa para esquentar o seu jantar e desenrolar seu cobertor para
que pudesse dormir confortavelmente. Perdeu inúmeros entes queridos, como todos
perdem no processo natural da vida, mas mesmo nos velórios e enterros, não
derramava uma única lágrima sequer.
Viveu toda uma vida inteira livre de
sentimentos tristes, mas também dos felizes. Teve um filho, e mesmo ao segurar
o recém-nascido pela primeira vez, não derramou uma única lágrima de
felicidade. Viu a criança crescer, lhe dar os braços, lhe chamar de “pápá”,
segurar na sua mão quando queria segurança, lhe chamar à noite quando tinha
medo, viu-a caminhar com as próprias pernas, tomar as próprias decisões, viver
sua própria vida, e em nenhum momento ele deixou que sentimentos escapassem,
pois estes estavam tão bem guardados naquele container que até ele mesmo tinha
se esquecido de sua existência.
Na mesma medida em que viu o seu
filho nascer, crescer, aprender a caminhar e ir embora, viu sua esposa, a quem
não amava nem odiava, ir envelhecendo, perdendo as forças e tendo a sua
centelha de vida se apagando pouco a pouco, até que, por viu, a viu fechar os
olhos. Viu as pessoas, todas próximas, mas nunca próximas demais dele, chorando
pela perda de uma pessoa tão querida, mas ele, em nenhum momento, teve os olhos
úmidos. Recebeu palavras de consolo e a todas elas dizia apenas um “obrigado”,
não porque estava tocado pelo que ouvia, não porque se sentia grato, mas porque
devia, ao menos, retribuir às palavras com uma outra, nem que esta fosse apenas
da boca pra fora.
A cada conquista que o filho tinha,
este lhe mandava uma carta, lhe ligava para compartilhar suas vitórias, e ele,
como sempre, emitia palavras vagas, mas que, para aquele, feliz, lhe soavam
encorajadoras. Viu-o envelhecer, vencer e, também, sua centelha se vida se
apagar, e nem quando percebeu que o caixão dele pousou no fundo da cova, ele
chorou, já que estava livre de todo e qualquer sentimento que pudesse lhe
causar dor.
Viu as pessoas que um dia lhe foram
próximas, todas, uma a uma, indo embora, e só ele ficava, sozinho, sem derramar
uma única lágrima pelas perdas.
Agora, vendo-se só, olhando nos
olhos daquele que lhe mirava do outro lado do espelho, se perguntava pela
primeira vez em todos aqueles anos, se valera a pena ter tido aquela vida tão
livre de sentimentos de dor. Pela primeira vez, em todos aqueles anos, olhou
para baixo, respirou fundo e se deu conta de que viver é sentir dor, e em quem a
vida não dói, não vive. Foi então que sentiu aqueles sentimentos adormecidos,
guardados naquele container há tantos anos, ganhando novamente viva, acordando
de seu longo torpor. Eram tantos e tão fortes, agora, que arrebentaram as
paredes de ferro daquela prisão, arrebentaram as comportas que mantinham
seguras tantas lágrimas contidas há tantos anos. Ele chorou até seus olhos
cansarem, até que todos aqueles sulcos marcados em sua pele encharcarem. Quando
as lágrimas cessaram, ele se deixou cair no chão e ficou ali, imóvel, por
longos e longos minutos. Sentiu, pela primeira vez em anos, o seu coração
bater. Ele batia acelerado, com uma imensa força, arrebentando por dentro, pois
não suportava tantos sentimentos libertados de uma única vez. Ele foi fechando
os olhos lentamente, sendo tomado por um sono. Revia toda a sua vida passar
diante de seus olhos em uma fração de segundos, viu todos os sentimentos que
deixou de viver pelo medo de sofrer, e chorou mais uma vez, arrependido. Esperou
sua centelha de vida, aquela vida que não vivera, se apagar lentamente e no
exato instante em que sentiu seu coração bater pela última vez, sorriu o
primeiro sorriso em tantos anos.