domingo, 22 de março de 2009

Primavera num Espelho Partido - Livro da Semana

Mario Bendetti é considerado um dos maiores escritores latino-americanos da atualidade e o maior de seu país. O escritor tem em “A Trégua” e “Grácias por el fogo”, o primeiro publicado pela Alfaguara, o segundo pela L & PM, seus livros mais conhecidos no Brasil. Mas tem, também, outros livros de contos e romances publicados em nosso país.
Em “Primavera num Espelho Partido”, seu mais novo romance, o autor, em sua maneira genial de escrever, nos presenteia com uma história de saudades, exílios, dramas, sonhos, separações, sentimentos de culpa e uma boa dose de política. Trata-se de uma história que possui tons autobiográficos, já que, como um dos personagens de sua ficção, o escritor também teve que viver fora de sua pátria, exilado em países que não eram o seu, devido a sua posição e opiniões políticas no período da Ditadura Uruguaia.
Nesse romance, a história gira em torno de Santiago, preso durante a ditadura uruguaia. Por isso, passa a viver separado de sua família e amigos. Para Santiago, enclausurado em sua prisão, é como se o tempo tivesse parado. Ele não tem noção clara e precisa do quão o tempo passa rápido, das mudanças que podem acontecer do lado de fora da prisão. Ele cultiva o sonho de, ao sair da prisão, retomar sua vida, encontrar as pessoas do mesmo jeito que as havia deixado ao ser preso.
Mas o que encontrará, sim, é algo bem diferente do que imagina. Sua esposa, Graciela, com quem passou grande parte de sua vida, a quem ama, não mais sente a sua necessidade como homem. Ela o admira, mas não mais o ama. Em vez dele, ela passa a sentir atração, apesar de um sentimento de culpa, a um de seus amigos, Rolando, outro que lutou ao seu lado, com quem compartilhava as mesmas ideias.
Santiago não imagina o que vai encontrar ao sair da prisão. Imaginava encontrar o mundo tal como o havia deixado, mas, na verdade, o encontrará em pedaços, partido, mudado.
Escrito de uma maneira genial, o autor intercalou, em torno de uma história comum, as vozes de todos os personagens: Santiago, Graciela, Dom Rafael (pai de Santiago), Beatriz (filha do casal) e Rolando. O leitor é convidado a entrar na história, a compreender os motivos de cada personagens, saber seus sonhos, seus desejos, suas necessidades, sua culpa e saudades.

domingo, 15 de março de 2009

Entre Lágrimas e Risos - Conto


Mal o sol havia nascido por inteiro no horizonte e uma menina, já desperta pelo barulho que se fazia em frente a sua casa, estava sentada, pasma com o que seus olhos viam. Passava as costas de suas mãos a todo instante em seus olhos, como se não acreditasse no que tinha diante de si. Tinha um sorriso estampado na face, pois de frente a sua casa, do outro lado da rua, a poucos metros de onde estava, era montado um circo, recém-chegado a cidade, com toda a sua parafernália e barulhos, artistas e operários, animais e crianças, estas correndo soltas, livres, de um lado para outro, sob o olhar vigilante de seus pais, que ocupados como estavam com a montagem das arquibancadas, palco e picadeiro, não podiam dar a seus filhos a atenção necessária. E a menina, fascinada como era por circo, via tudo isso diante de seus olhos e percebia a felicidade estampada em cada face, em cada adulto, em cada criança, e até nos animais, que mesmo estando presos em correntes ou enjaulados, pareciam satisfeitos com a atmosfera em que viviam, de brilho, risos e alegria. Esta menina, com olhar perscrutador, observava atentamente cada uma daquelas pessoas, quando seus olhos caíram sobre um homem que, curvado, pegava um pesado martelo para bater com ele um prego, depois estendia um pedaço de lona sobre a armação de madeira e metal da estrutura do circo e em seguida ia até uma fonte próxima, enchia de água um grande balde e, com as mãos em concha, jogava um pouco d’água no rosto e sobre os ombros. Esse homem, já bastante velho, apesar de seus rijos músculos, parecia a única pessoa que não estava feliz naquele dia, e a menina via até uma única e solitária lágrima escorrer pelo seu rosto, misturando-se ao suor que corria em abundância e a água que tinha recém jogado em sua face. Ela se pergunta como esse homem podia se sentir de alguma forma infeliz, pois o circo era um ambiente de alegria, em que todos deveriam estar felizes.
À noite, quando o último raio de sol sumiu no horizonte, todas as luzes do circo foram acesas. Era uma profusão de cores vibrantes e alegres, e alguém, pelo alto-falante, anunciava e convidava a todos para assistirem ao espetáculo. A menina, muito excitada, foi a primeira a comprar seu ingresso na bilheteria recém-armada em frente a entrada do circo e sentou-se na primeira cadeira, de frente ao palco. Seus olhos brilhavam de tanto contentamento. Olhava para todos os lados, embriagada com todas aquelas cores que a cercavam. As cadeiras eram coloridas, a lona do teto era colorida e até as pessoas que estavam ali usavam roupas coloridas.
O espetáculo teve seu início quando um homem apareceu como que num passe de mágica, surgido por entre a fumaça e o brilho dos fogos de artifício. O barulho dos aplausos a cada número apresentado era ensurdecedor, mas ninguém reclamava disso, pois eram suas próximas mãos que, por si sós, batiam uma contra a outra, eram de suas bocas que emitiam os mais altos e vibrantes assobios. Houvera a apresentação dos mágicos, equilibristas, números do trapézio, dos animais, mas o mais esperado, o que dava a magia, a graça e alegria do circo ainda estava por vir, e a menina, com os punhos fechados, quase não se contendo mais em si, de tamanha ansiedade, ouviu quando à sua frente, vindo da parte de trás do palco, escondido atrás da cortina, alguém que corria e a cada passo era como se um enorme peso caísse no chão. A cortina lentamente se abriu e a criança viu, com olhos esbugalhados, surgir no palco, o mais belo palhaço que já vira em sua vida. Tinha cabelos multicoloridos, um enorme sorriso pintado em sua face, calçava sapatos enormes, usava uma enorme calça branca, repleta de pontos, cada um de uma cor, e uma camisa de corres berrantes, além de suspensórios cores nada discretas.
O público vibrou, aplaudiu, assobiou, se divertiu e, acima de tudo, riu muito de cada palavra, de cada piada, de cada número apresentado pelo palhaço, mas nenhum daqueles expectadores estava em maior êxtase do que a pequenina menina sentada na primeira cadeira de frente ao palco. Seus olhos quase não piscavam, sua boca não se fechava, aberta o tempo todo num sorriso de alegria. E quando o espetáculo terminou, ela foi a última a se levantar para ir embora. Esperava que o palhaço voltasse e contasse só mais uma piada, do qual somente ela pudesse rir. Mas o palhaço não apareceu e quando as luzes do palco começaram a ser apagadas ela saiu, mas com o intuito de voltar no dia seguinte para ver novamente aquele tão belo e feliz palhaço.
Na manhã seguinte, logo que o sol clareou e o céu ficou de um límpido azul, a menina se levantou e foi para frente de sua casa, para ver o circo. Novamente observou, andando de um lado para outro, aquele mesmo homem curvado, que parecia sempre triste com alguma coisa. A menina teve vontade de se levantar e ir até ele, segurar em sua mão e leva-lo até ao palhaço, pois ele, sim, poderia fazê-lo sorrir e se sentir alegre. Mas ela nada fez, já que era muito tímida e não sabia onde encontrar aquele que podia fazer o homem feliz.
Novamente, quando o sol se pôs no horizonte, as luzes foram acesas e teve início o espetáculo. Mais uma vez a menina foi a primeira a entrar e se sentou na primeira cadeira de frente ao palco. Nenhuma das atrações que vira dessa vez lhe chamou a atenção ou arrancou um “oooohhhh!!!” de seus lábios, pois ela tinha vindo naquele dia só e unicamente pelo palhaço, que, mais uma vez, foi o último a subir ao palco, o que aumentou a ansiedade, mas não diminuiu nem um pouco a felicidade da menina ao ver aquelas roupas tão belas e aquele sorriso tão radioso pintado na face.
Mas no dia seguinte ao acordar e ver novamente aquele homem com aparência tão abatida e triste, a menina resolveu que iria fazer alguma coisa por ele: iria procurar pelo palhaço e pedir que ele ajudasse àquele homem.
E no final da tarde, pouco antes de ser anunciado o início do espetáculo, a menina saiu de casa e entrou sorrateiramente no circo. Passou por baixo da lona, caminhou por entre as cadeiras, subiu no palco e afastou a cortina para ver onde o palhaço se encontrava. Viu onde os animais estavam sendo preparados, onde as dançarinas se maquiavam, onde o mágico escondia seus segredos, mas nada do palhaço! Foi até o local mais afastado do circo, até um trailer e espiou lá dentro pela janela. Viu, estendida sobre a cama, as roupas do palhaço, assim como sua peruca, chapéu e utensílios que usava em sua apresentação. Ficou na ponta dos pés para espiar melhor lá dentro, até que viu um homem, de costas, se aprontava. Ele estava sentado de frente para um espelho e suas mãos cobriam seu rosto. Assim ele ficou durante um tempo que pareceu uma eternidade para a menina, que quase não respirava do lado de fora, de onde espiava, até que, finalmente, ele se levantou e deixou que suas mãos lentamente deslizassem pelo seu rosto. A menina não acreditou no que seus olhos viam: diante dela, separada apenas por uma fina parede de tabulas, estava aquele homem que ela via todo dia, a quem julgava tão triste e distante, estava aquele a quem ela via toda noite, alegre e festivo quando fantasiado de palhaço. Quase tropeçou e caiu no tamanho o espanto por ter descoberto tão valioso segredo, e correu, por temer ser descoberta.
Naquela noite, mais uma vez foi a primeira a entrar no circo e se sentar de frente ao palco. Esperou pacientemente que cada uma atração entrasse e saísse. Tinha vindo ali, mais uma vez, pelo palhaço, pelo homem que via toda manhã e que toda noite se fantasiava, vestia, pintava uma máscara representando alegria e subia no palco.
Pela primeira vez ela não viu apenas o sorriso do palhaço, mas seus olhos e jurou ver, se desprender de seu olho esquerdo uma única lágrima, que escorreu pela sua face e manchou sua maquiagem. Ao ver isso, ela se levantou bruscamente, sem saber por que, e saiu, foi para sua casa, e se jogou na cama, escondeu a cabeça no travesseiro e dormiu um sono pesado, em que sonhou com um palhaço triste.
Foi acordada na manhã seguinte antes do sol nascer e, ao sair de casa, viu uma agitação entre as pessoas do circo. Procurou com os olhos o homem triste, mas não o encontrou a princípio. Olhou para todos os cantos, para todas as pessoas, até que seus olhos caíram sobre uma pessoa que ela via caminhar de forma ereta. Olhou diretamente em seus olhos e reconheceu aquele a quem procurava, e jurou ver, pelo brilho de seus olhos, um lampejo de alegria.

domingo, 8 de março de 2009

Admirável Mundo Novo - livro da semana

Em um futuro distante a humanidade chega a sua perfeição. As doenças estão sob controle, assim como o envelhecimento. Tudo que é velho, que não tem serventia prática para o presente é descartado. Não existe religião, os autores da literatura clássica são desconhecidos. A humanidade desconhece até o nome e a obra de Shakespeare. Nesse futuro, até quando se tem um mau pensamento e uma má sensação o problema pode ser facilmente resolvido ao se tomar uma pequena dose de uma droga, chamada “soma”, que entorpece e que espanta tudo que é desagradável. É nesse cenário, e em meio a esse futuro perfeito e utópico, que o escritor e filósofo britânico inglês Aldous Huxley nos apresenta seu livro mais conhecido e elogiado pela crítica e publico: Admirável Mundo Novo.
Em Admirável Mundo Novo, uma fábula, uma metáfora de um perfeito futuro fictício, o único tempo importante é o presente. O passado é um tempo a ser esquecido, obsoleto, e sobre o futuro não se pensa necessariamente.
Nessa obra, tudo está tão sob controle que até a disputa entre classes sociais é inexiste, uma vez que os seres humanos não mais nascem, mas sim são fabricados, de acordo com a necessidade. No período da “gestação” os embriões, os fetos, já são designados a pertencer a essa ou aquela “classe” (chamadas de Alfa, Beta e Ipsilon) e todo o tratamento que receberão daí pra frente, como questões relativas a alimentação, por exemplo, são preparadas de acordo com o lugar a que estão designados na sociedade. Na infância, antes mesmo de serem alfabetizadas, antes mesmo de começarem a falar, as crianças são submetidas, enquanto dormem, a seções do que se chama hipnopédia, em que, enquanto dormem, as crianças ouvem ordens e conceitos referentes a sociedade e o lugar a que estão designados nesta. O que os Alfas escutam difere completamente ao que é passado aos Beta, que difere, por sua vez, do que é instruído aos Ipsilone. Nessa sociedade, até as cores das roupas são controladas de acordo com sua classe e desde cedo as pessoas são instruídas a viverem para o bem e a ordem da sociedade, sendo o individualismo algo execrável. Até os pensamentos relativos ao individualismo são subjugados com doses maciças de “Soma”.
Essa perfeita ordem social é ameaçada quando dois jovens, em uma excursão por uma região em que ainda há resquícios de um grupo “não civilizado”, encontra uma mulher, que, como os dois, havia nascido na “civilização”, mas que por um infortúnio do destino havia engravidado, coisa impensável, já que naquele tempo ser mãe era algo inadmissível, e por isso fora obrigada a viver em meio àqueles “não civilizados”. Seu filho, chamado John, é tomado com grande interesse e curiosidade por Bernard e Lenina. O “não civilizado” John e sua mãe são, então convidados a voltar à civilização, a fim de serem estudados e observados.
O contato dessas duas pessoas gera um grande interesse e coloca em conflito duas formas diferentes, conceitos distintos de duas sociedades, a dos supostos civilizados, em que tudo é controlado, inclusive os sentimentos e pensamentos, e a não civilizada, em que ainda é forte o apego relativo a vida, aos valores, aos sentimentos.
Muito mais do que uma fábula, um sonho, uma perspectiva de um mundo perfeito, em Admirável Mundo Novo nos é apresentada uma série de questões relativas aos sentimentos e aos nossos desejos, ao nosso lugar na sociedade e a nossa forma em que nos enquadramos nesta.

domingo, 1 de março de 2009

O Rei do Castelo de Névoa - conto

Era madrugada e a lua já iniciava sua descida, indo se esconder atrás da montanha. Sua majestosa luz prateada ia, pouco a pouco, dando lugar a luz rosada da Aurora, que tocava com seus dedos o firmamento. Ao pé da montanha, na aldeia, o galo já se empoleirava sobre um galho, preparando-se para anunciar o nascer do sol, o início da manhã.
Fazia frio, e os aldeões, ao antes do ouvirem o canto do galo, já abriam seus olhos e, mesmo sonolentos, já se levantavam de suas camas, pois teriam um longo dia de trabalho. O galo cantou ao ver o primeiro raio de sol surgir no céu, estufou seu peito e cantou, tão alto que sua voz foi ouvida por todos na aldeia, por toda a floresta. Com seu canto, todos os pássaros acordaram, abriram suas asas e saíram de seus ninhos para encher o ar com seus cantos harmoniosos.
As pessoas saíam uma a uma de suas casas, mas mal passavam de suas portas e paravam, observando, boquiabertas, o que se descortinava bem de frente a aldeia. Ali, onde existia uma imensa área cultivável, para onde todos os homens se dirigiam todas as manhãs, havia sumido. Só se via uma densa névoa, que descera, por certo, da montanha e se instalara ali, bem em frente à aldeia. As pessoas, paradas em frente a suas casas, olhavam umas para as outras, procurando uma resposta, uma explicação para aquilo que estavam vendo. Mas ninguém sabia ao certo o que era aquilo. Alguns já depositavam no chão suas ferramentas de trabalho e davam passos inseguros em direção a névoa. Alguns, já impacientes com aquela situação, já esticavam até os braços para tocar aquilo que se interpunha entre eles e seu local de trabalho. Mas seus membros esbarravam em algo sólido como uma montanha. Estes se viravam para os outros, que, espantados, também esticavam os braços para tocar naquilo que se formara tão rápido, do dia para a noite. Logo toda a aldeia estava de pé, observando aquela estranha névoa.
Quando o sol já estava alto no horizonte soprou um vento forte, vindo da montanha, que levou para longe a maior parte da névoa. E por trás dela surgiu um imenso castelo, branco como a névoa atrás da qual estava escondido. E lá do alto, da sacada, apareceu um homem vestido com toda a pompa. Usava inúmeros anéis, segurava na mão direita um cetro e ostentava na cabeça uma imensa coroa, cravejada de pedras preciosas. Com sua voz portentosa, ele se declarava rei da aldeia. As pessoas, uma a uma, foram se ajoelhando, abaixando suas cabeças, em saudação ao seu monarca, que as observava, impassível, sentado em seu trono.
A partir daquele dia os aldeões estariam submetidos as leis ditadas pelo rei. Teriam que pagar tributos, em dinheiro, e teriam que pagar pelo uso das terras cultiváveis, antes coletivas, mas que agora ficavam dentro do muro do castelo, sendo, portanto, do rei.
Todas as manhãs, agora, os aldeões acordavam antes do nascer do sol, pois o galo, que passou a ser propriedade do rei, era obrigado a cantar antes da hora. Os homens saíam de suas casas sonolentos, com suas ferramentas sobre os ombros. Trabalhavam muitas vezes sem descanso até o pôr do sol, quando tinham permissão para voltarem a suas casas. Até as mulheres estavam sujeitas aos caprichos do rei. Eram obrigadas a ir limpar, todas as manhãs, o pátio do Castelo de Névoa, e cuidar do jardim. O rei nunca se levantava de seu trono. Ficava o tempo todo lá do alto, a observar seus súditos. E, se por um acaso algum deles não fazia as coisas como havia ordenado, seria severamente castigado por um próprio companheiro, pois assim o rei ordenava. E se deste se negasse a fazer o que o rei mandava, os dois receberiam o castigo de um terceiro.
Ninguém nunca contestou a autoridade do rei, pois ela parecia legítima e, além do mais, ele empunhava um cetro e ostentava uma bela coroa dourada. Sentiam-se oprimidos, tristes por não terem mais suas terras em que cultivas, por não poderem mais usufruir de sua liberdade. Mas se calavam ao ouvir a voz do rei, que era como o ribombar de um trovão quando estava furioso, e os aldeões, por mais que se sentissem injustiçados, se calavam nessas situações.
As crianças não podiam mais brincar fora de suas casas, correndo livres pelos campos, pois o rei odiava o barulho de seus risos. Os pássaros não podiam mais voar e cantar, já que suas vozes incomodavam a sensível audição do monarca.
Mas uma pessoa, um rapaz, nada fazia como o rei mandava. Já fora castigado inúmeras vezes, por seu próprio pai. Ficava a maior parte do dia sentado, em frente a sua casa, mostrando-se ao rei, que não mais tinha autoridade para mandá-lo trabalhar. O rei o temia da mesma forma que era temido por todos os aldeões. Já tentara expulsa-lo de sua própria casa, mas o jovem desdenhou suas palavras, deixando-o proferir ao vento suas palavras insensatas. Os aldeões assistiam à contenda dos dois, e alguns chegavam até a tentar interceder a favor do rei. Até o pai do jovem, apesar de todo o amor que sentia pelo filho, lhe pedia para aceitar calado a sua situação, de súdito. O filho, ao ouvir tamanho despautério proferido pelo pai, sentia como se um punhal tivesse sido cravado em seu peito. Continha as lágrimas para que seu pai não visse culpado.
Numa manhã, quando o sol estava em seu ponto mais alto, e o rapaz estava sentado à porta de sua casa, observando o castelo e seu rei, quando se levantou muito lentamente. Parecia ponderar sobre o próximo passo que daria. Deu o primeiro passo, e logo se seguiram outros. Andava com os olhos voltados para o alto, observando o rei, que o observava lá de cima. Chegou ao pé da muralha do castelo, e viu o quão artificial ela era feita, que parecia sólida como uma rocha, mas que, no fundo, não passava de névoa. Olhou para o alto e viu o rei, pela primeira vez, se levantar de seu trono e parar à amurada do castelo. Os olhos dos dois se encontraram. Um pequeno e quase imperceptível sorriso surgiu na face do rapaz, que olhou para trás e percebeu que era observado por todos, homens e mulheres, que temiam a fúria do rei, que viria após aquela afronta. O rapaz respirou, sentindo o ar encher seus pulmões, sentindo o cheiro da terra recém-semeada. Abaixou a cabeça, pensando bem no que ia fazer. Passou lentamente as mãos no rosto, com os olhos fechados. Quando tornou a abri-los, fitou bem o monarca, pois esta seria a última vez que o faria. Respirou fundo, enchendo bem os pulmões, duas ou três vezes, expirando devagar. Tornou a puxar novamente o ar para dentro de si, mas desta vez o segurou fundo, para liberá-lo de uma vez, num sopro, em direção ao castelo. O sopro foi tão forte que parecia uma ventania, e o castelo, por ser feito apenas de névoa, foi levado pelo vento, ficando apenas o rei, que empunhava não mais um cetro, mas sim um pedaço de galho seco e tinha sobre a cabeça apenas umas folhas de uma planta qualquer. Não havia percebido que seu castelo se desmanchara, e tentou falar, e sua voz, agora, soava tão baixo como um sussurro. Os aldeões, vendo que tudo pelo qual passaram não era mais que uma ilusão, foram, uma a uma, para suas casas, cuidar de seus afazeres, deixando aquele rei sem súditos falando sozinho.