sábado, 20 de fevereiro de 2016

O Eco de uma voz


Ontem eu fui dormir triste.
Ministrei uma aula de literatura em que correu tudo bem: usei um belo e tocante vídeo (curta de animação) que contagiou e arrancou risos e lágrimas de algumas pessoas da plateia; a conversa sobre paixão pela arte das letras correu maravilhosamente bem, com as pessoas interagindo, anotando os nomes dos autores e livros que mencionei para, assim que terminasse a aula, pudessem correr à livraria mais próxima a fim de comprar as obras; ao final de aula, reservamos um espaço para discussões diversas e para uma breve, porém essencial, confraternização. Finda as formalidades da aula, sai do auditório com a sensação de dever cumprido, de que dei o meu melhor, de que a semente de literatura fora planta e que iria germinar, dar um pequeno broto, se tornar uma plantinha, que vai fincar bem fundo suas raízes, que se tornará uma frondosa árvore. Mas, ao chegar a casa, recebi uma triste de notícia que me deixou um tanto quanto abalado e me fez demorar a pegar no sono: Umberto Eco morreu!
Mas como assim, morreu?! Eu havia acabado de ministrar uma aula em que, mais uma vez, o usei como exemplo, mencionei suas obras, falei de sua importância não só para a literatura, mas para toda a cultura ocidental! E ao chegar a casa, a notícia que me tirou o chão, que me fez sentir um imenso vazio no peito e nas estantes onde guardo meus livros, que com que passasse sentir um sentimento de orfandade...
A literatura, ao longo dos séculos, passou por diversas transformações e evoluções. Vivemos uma Era de Formação, verdadeiramente Mitológica, em que nomes tão distante, mas ao mesmo tempo tão próximos, surgiram e moldaram a nossa forma de escrever, de ver o mundo, de sentir as palavras. Homero, Esopo, Sófocles, Eurípides, Virgílio, Dante, Shakespeare, Camões, Rabelais, Racine, Montaigne, Cervantes e tantos e tantos e tantos outros que fazem parte de nosso imaginário e que já foram incorporados ao nosso código genético, que tiveram e têm um papel fundamental na nossa formação humanística.
Depois dessa época, que lançou as bases e alicerces da nossa literatura e da nossa cultura, vivemos uma Era de Ouro entre o século XIX e primeiros anos do XX. A literatura se espalhou por todo o corpo. Se antes era somente o gene, agora passou a ser um aglomerado de células compondo um tecido, depois um órgão e, por fim, Sistema que propulsiona o nosso organismo e nos mantém vivos. Em todos os países surgiram gigantes que assombraram a literatura e a cultura mundial. Jane Austen, Charles Dickens, as irmãs Brontë, Stevenson e Thomas Hardy; Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós; Stendhal, Honoré de Balzac, Alexandre Dumas, Victor Hugo, Gustav Flaubert, Émile Zolá, Maupassant, Baudelaire e Malarmé; José de Alencar, Álvares de Azevedo, Castro Alves, Machado de Assis, Lima Barreto e Olavo Bilac; Goethe, Schiller, Novalis, Heine e Rilke; Pirandelo e Lampedusa; Puchkin, Gógol, Turgueniev, Dostoievski, Tolstoi, Tchekhov e Gorki; Poe, Hawthorne, Melville, Whitman e Twain; Kazantzakis e Kavafis; isso para citar somente uns poucos, pois se fôssemos citar todos, não caberia num único texto.
Na primeira metade do século XX, ainda sob o eco da Era de Ouro, que vinha perdendo relativa força, as principais “potências culturais e literárias” europeia perderam um pouco de força, muito embora tenham nos legado grandes gênios como Kafka, Brecht, Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Mário de Sá-Carneiro, Unamuno, Pasternak, Maikóvski, Oscar Wilde, Lawrence, Virgínia Woolf, James Joyce, Hesse, Thomas Mann, Proust, Sartre, Beauvoir e Sartre. Poucos comparado ao período anterior. Fato é que a literatura mudara de ambiente, e alguns dos grandes nomes nascia do outro lado do oceano. Borges, Casares, Mistral, Neruda, Donoso, Onetti, Octávio Paz e Juan Rulfo foram os que puxaram o boom latino-americano com sotaque hispânico; mais ao norte, Faulkner, Hemingway, Steinbeck, Salinger, Henry Miller, Capote e Eugene O’Neill; o Brasil viveu sua Era de Ouro entre as décadas de 1930 e 1950/60, com nomes como Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Graciliano Ramos, Rachel de Queirós, Jorge Amado, José Lins do Rego, Érico Veríssimo, João Guimarães-Rosa e Clarice Lispector; esses e outros passaram a assombrar o mundo com uma poderosíssima, mas até então desconhecida por muitos leitores, literatura, que passara subitamente a ser obrigatória em toda e qualquer estante de livros ao redor do mundo.
No entanto, mesmo com tantos nomes, mesmo com tantos autores tendo surgido num curto espaço de um século e meio, a maternidade literária, os tempos seguintes não foram tão generosos conosco, pobres e apaixonados leitores. Vieram, sim, Saramago, Garcia-Márquez, Llosa, Calvino, Philip Roth, Paul Auster, Kundera, Coetzee, Chimamanda Ngozi Adichie, Chinua Achebe, Pepetela, Ondjaki e Mia Couto. Poucos, pouquíssimos diante da nossa sede de literatura, da necessidade intrínseca que temos de mais, mais e mais grandes autores. Desses, Calvino, Saramago, Gabo e Achebe já nos deixaram; Roth se aposentou; Kundera há tempos não lança uma obra que nos deixe em êxtase, e mesma coisa se aplica a Coetzee; Llosa e Auster até lançam bons livros, mas nada que se comparam aos seus livros de alguns anos atrás. Resta-nos, portanto, a poderosíssima Chimamanda, uma verdadeira ilha literária que surge em meio a um tempestuosos oceano, que assombra por sua literatura lírica, poderosa e politizada, e os africanos de língua portuguesa, que, além de tudo, fazem um trabalho excepcional em prol da língua, divulgando mais do que literatura, promovendo em todo o mundo um vasto universo cultural que é produzido pelos falantes de língua portuguesa. Com estes, restam-nos pouquíssimos autores que ocupam “lugar de honra” nos nossos corações-literários e nas nossas estantes.
Com a recém-perda de Umberto Eco, um súbito vazio intelectual nos toma. Eco tornou-se uma figura presente, respeitada e admirada em todo o mundo por sua inteligência e postura, como um dos maiores intelectuais do século XX que se mantinha ativo. Mesmo quem o leu pouco, tendo tido a oportunidade se deleitar apenas com um ou outro texto, e até quem não o leu, tinha um respeito imenso pelo italiano. Conhecido sobretudo pelo seu romance O Nome da Rosa, que recebeu uma primorosa adaptação para o cinema na década de 1980, Eco é muito maior e muito mais labiríntico do que o romance que projetou sua carreira mundialmente. Crítico, filósofo, semiólogo, linguista, romancista e historiador... é difícil definir quem foi Eco e qual de suas faces é a que mais nos toca, a que mais nos engrandece e enriquece. Multifacetado, foi um intelectual que ultrapassou as barreiras do sec. XX e chegou ativo ao XXI, era em que nos vemos tão carentes de pessoas a quem admirar. Sua vida, ceifada tão bruscamente quando menos esperávamos, deixa um vazio imenso não só em nossos corações, mas também em nossas estantes de livros. Agora, quando mirarmos a estante e vermos seus livros ali expostos, imortais, que serão herança para futuras gerações de leitores, nos sentiremos órfãos, pois não mais aguardaremos ansiosos pelos seus próximos lançamentos. Além disso tem o agravante de que nessa época, tão escassa de intelectuais, não sabemos mais quem expor com orgulho numa prateleira de destaque como sendo “meu autor favorito vivo”.
Resta-nos, como leitores, apenas nos conformar, pois ele, mesmo que chegássemos a pensar e desejar o contrário, era mortal, como eu sou, como todos somos, e ler e admirar até o fim dos tempos a sua obra, toma-lo, mais do que nunca, como referência e ouvir o eco de sua voz, que calou como efeito sonoro, mas continua a reverberar em sua obra.