sábado, 25 de fevereiro de 2012

Onde tudo tem seu início e fim

Já fazia tantos anos, no entanto, nada havia mudado naquela sala. O cheiro era o mesmo, a posição dos móveis permanecia inalterada e até a teia de aranha, naquele canto, entre a parede e o teto. A aranha, idêntica àquela mesma, que tecia vagarosa a sua armadilha, para pegar presas e sobreviver em sua letargia.
            Não sei ao certo quanto tempo fiquei sem pôr os pés naquela casa, sem ver aquela sala, mas assim que abri a porta, todas aquelas memórias vieram à minha mente. Os dias de chuva, em que eu não podia sair, e ficava brincando, sob a vigilância de minha mãe, bem perto da lareira; as noites longas e frias em que costumava sentar na poltrona de meu pai enquanto ele não chegava do trabalho. Doces momentos foram aqueles, que eu já não lembrava, pelo menos até voltar a sentir o frio do metal da maçaneta daquela porta.
            Tudo tão igual como nas minhas mais distantes lembranças que eu cheguei a escutar o eco de minha infância reverberando nas paredes, subindo as escadas e chegando até o meu quarto, lá em cima, quarto este que ficava entre o de meus pais e o de minhas irmãs. Lembrei quando acordava nas noites escuras e frias, com medo, e ia bater na porta do quarto de meus pais, e minha mãe vinha abri-la. Já sabia que era eu, assim que eu batia na porta. Ao ver a porta se abrindo, sentia-me em segurança, e ia me deitar na cama, entre meu pai e minha mãe.
            Ver tudo aquilo doeu fundo em meu peito, por eu ter ficado tanto tempo longe dessas lembranças, desse lugar sagrado para mim. Olhei todos os cantos, com o olhar perdido no tempo e sequer notei a presença de uma pessoa que me observava, parada, no corredor que dava acesso à sala. Ao vê-la, mesmo tão diferente, mesmo já tão envelhecida, a reconheci de imediato. Sorri, e ela sorriu para mim, e eu corri para seus braços, como sempre fazia quando me sentia acuado, como um menino a correr para os braços da irmã mais velha. Seu abraço continuava quente e acolhedor. Demoramos longos minutos, um estreitado nos braços do outro, matando a saudade de longos anos de ausência. Quando, finalmente, nos separamos, olhamo-nos nos olhos, em seguida eu a observei por inteiro. Ela tinha envelhecido. Seus longos cabelos castanhos tinham desaparecido, dando lugar a curtos cabelos brancos como a neve. Sua silhueta não era mais a mesma, sua pele estava enrugada e seu andar não era mais o mesmo, seguro, e ela precisava se apoiar numa bengala. Só os seus olhos e o seu sorriso continuava o mesmo. Tantos anos, tantas mudanças, tanta coisa igual e tanta coisa mudou nesse meio tempo.
            Ela me pegou pela mão, e com seus passos inseguros, me levou para ver como tinha cuidado bem da casa para manter nossas lembranças, nossos momentos, intocados. Não trocamos uma única palavra, pois palavras eram desnecessárias naquele momento. Vi a cozinha e senti o cheiro tão igual. Cheiro de infância, das comidas que minha mãe fazia, que minha irmã tão bem havia aprendido a fazer igual. Sentei-me naquela cadeira que eu ocupava sempre nos almoços de domingo e vi, mentalmente, toda a família reunida, com meu pai sentado na ponta, com minha mãe ao seu lado. Respirei fundo, pois as lágrimas ameaçavam escapar de meus olhos. Minha irmã notou a emoção que se apoderava de mim e tocou minha mão. Senti-me, com esse toque, rejuvenescer anos e a vi, à minha frente, tal como ela havia se mantido em minha memória.
            Levantei-me. Sentia-me inquieto, e comecei a andar de um lado para o outro. Disse a minha irmã que precisava ficar a sós, para ver com meus próprios olhos.
            Caminhei pela casa vazia, escutando o eco de meus próprios passos de um passado distante nos corredores. Cheguei até a escada e me vi novamente o menino que um dia fora, descendo os degraus de dois em dois. Agora, já velho, tinha que me segurar com força ao corrimão para subir.
            Em cima, os quartos continuavam arrumados como sempre estiveram. Os lençóis dobrados, as roupas de dormir em cima da cama, como minha mãe sempre fazia.
            No quarto de meus pais senti uma vontade de me deitar na cama, mas fiquei apenas sentado, na beirada, contemplando as lembranças.
            Escutei passos no corredor, e pouco depois apareceu à porta minha outra irmã, com que eu sempre brigava, quando era criança. Ela olhou para mim e sorriu. Notou como eu tinha envelhecido, que não éramos mais crianças para brigar, e disse apenas que estava feliz por me ver ali, de volta ao lar, onde tudo tinha começado, e onde tudo teria seu fim. Depois de falar isso, com suas palavras ainda ecoando, foi embora, e escutei seus passos descendo a escada.
            Aquelas palavras calara fundo em minha alma e me senti inquieto.
            Estava tudo tão igual, no entanto eu as estava sentindo tão diferente. Talvez eu estivesse diferente e não percebia a mudança que havia se operado dentro de mim após tantos anos.
            Fui me olhar num espelho e não reconheci meu próprio rosto refletido. Onde estava aquele menino? No que ele havia se transformado? O que acontecera em sua vida, para seus cabelos terem mudado tanto, para sua barba ter crescido, para sua pele ter ficado tão enrugada e para seus olhos estarem tão vazios e tristes? Olhei tanto para aquele rosto desconhecido no reflexo do espelho que o vi desaparecer lentamente, e não mais restar nada além da lembrança do tempo que se passou.
            As janelas estavam todas fechadas, mesmo com a lua maravilhosa que se mostrava lá fora. Senti o ar pesado e frio da noite e desci as escadas, degrau a degrau, lentamente, com medo do que poderia vir a me deparar lá embaixo. Sabia, sentia, que algo ou alguém me esperava na sala, e foi para lá que me dirigi, sem vontade de lá chegar, com medo, com o mesmo medo do menino que acordava no meio da noite e corria para o quarto dos pais.
            Com passos incertos, me deixei levar até a sala, onde estavam minhas duas irmãs, de pé, ao lado do estofado, onde estava sentada a minha mãe, e meu pai, em sua poltrona. Todos me olharam. Suas aparências mudavam, indo das de minhas lembranças de infância às de pessoas idosas, que eu vira morrer, que eu cuidei até o final da vida. Que eu vi, que senti quando deram seus últimos suspiros e que me deram adeus antes de partirem, deixando-me com a sensação de vazio no peito, com lágrimas engasgadas na garganta, com a dor da solidão ao verem, um a um, todos irem embora, me deixando sozinho nessa vida.
            Olhei ao meu redor, procurando algo em que me apoiar, mas até as paredes da casa tinha sumido, desabadas, não mais restando nada além de escombros de lembranças que só existiam em minha mente. Olhei para trás e vi a casa toda em ruínas, esquecida pelo tempo, que não era mais habitada há anos, onde ninguém mais pisava, até eu voltar, para viver ali meus últimos minutos de vida e relembrar os momentos mais eternos de toda a minha existência.
            Olhei para a porta e me vi ali, deitado, imóvel, já tão velho, já tão cansado e tornei a levantar os olhos e percebi que minha mãe se aproximava lentamente. Minhas irmãs continuavam de pé, e meu pai havia se levantado. Todos esperavam pelo meu gesto. Olhei mais uma vez para meu corpo no chão, tão envelhecido nos últimos anos de solidão, e para aqueles que esperavam para me levarem. Segurei a mão de minha mãe, e ela sorriu, e se tornou a mulher que eu me lembrava de minha mais terna infância. Senti-me protegido. Minhas irmãs sorriam e meu pai também. Aproximei-me deles e fui abraçado por todos. Voltei para o seio de minha família, justamente naquela casa, onde tudo teve o seu início, e onde tudo, agora, chegava ao seu fim.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Eu adoro o carnaval


Eu adoro o carnaval. Essa sensação de ter a cidade só para mim, de olhar pela janela e ver a cidade vazia, sem barulho algum, de sair na rua e não ver ninguém, talvez só mais uma pessoa que ama tanto o carnaval quanto eu. Poder andar pelas ruas sem me preocupar com os carros. Até os cachorros e gatos de rua parecem sumir nessa época, pois não se encontra um sequer nesses dias.
            Não há barulho algum, de carros, buzinas, de pessoas ou de música alta. Não há samba, axé, pagode, frevo ou qualquer outro tipo de música. O que reina nesses dias é o som do silêncio. E como é reconfortante o silêncio, de poder ouvir nada.
            Não há corredores, não há cores, não há luzes, não há folia, somente a paz. E como é boa essa sensação de paz reinante, de despreocupação.
            Onde está todo mundo? Não sei. Devem ter viajado, ido curtir, cada um, o seu carnaval, deixando toda a cidade, todo o mundo só para eu reinar absoluto. E sobre quem eu reino? Sobre o silêncio. Em meu reinado só há paz, silêncio e solidão. E como é bom reinar em meio a todo esse silêncio, de viver num mundo de paz absoluta.
            Os dias são longos e preguiçosos, e não há a preocupação com os horários, de acordar cedo, de ir ao trabalho. O céu está num tom de cinza, perfeito e convidativo para se ficar em casa e se aproveitar o dia sem fazer nada. As noites são frias e silenciosas e longas como os dias, ótimas para se refletir, para se escutar o som da cidade silenciosa, dormindo.
            Como é bom poder desfrutar dessa sensação de onipotência, de ter a cidade só para si, de poder ir onde se quer, de se deixar guiar pelos seus próprios pés, sem destino, sem ter para onde ir, sem saber aonde se quer chegar. E pensar que tudo isso só é possível nessa época do ano, em pleno carnaval!
            Por isso é que espero tão ansiosamente pela chegada do carnaval, por isso é o carnaval a minha época favorita de todo o ano. E ainda tem gente que diz que eu fico triste quando chega o carnaval!?  Há gente que fala que eu não “curto” o carnaval!? Essas pessoas, que falam isso, não me conhecem e, pior ainda, não sabem o quão bom pode ser o carnaval!

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Enfrentando a tempestade

Uma tempestade se aproxima. Posso senti-la no ar, posso sentir o seu cheiro de umidade. Posso vê-la, pelos pássaros que se recolhem, buscando um abrigo. Posso percebê-las, pelos insetos que entram pelas janelas e ficam em torno da lâmpada acesa de minha sala. Mas essa não é uma tempestade qualquer. Ela se move lentamente, anunciando-se sem se anunciar. Mostrando-se, ao longe, sem ousar se aproximar. É como se ela quisesse se impor pelo medo, sem precisar mostrar sua força. É como se ela quisesse se fazer, por vezes, despercebida, fazer com que a esqueçamos, para nos pegar de supetão, desprevenidos.
Dessa vez eu estou preparado, em guarda, abrigado, seguro, esperando-a para o embate. Não irei relaxar um único instante. Eu a encaro, medindo forças. Sei que não posso com ela, que jamais poderei vencê-la, que não posso afastá-la, empurrá-la com minhas próprias mãos, sozinho, mas sei que devo enfrentá-la. Já fugi de muitas tempestades, já me esconde de inúmeras, já me senti impotente diante de várias, e cansei de fugir, de me esconder e de me sentir impotente, fraco e fragilizado, e agora encaro essa tempestade de frente, sem medo, sem receios, sem fraquezas.
Eu a vejo dar um passo após o outro, se aproximando, me estudando, vendo qual será, dessa vez, a minha reação. Ela olha em meus olhos e não vê o que viu das outras vezes: medo. Dessa vez me enfrentará sem medo. Tem plena consciência de sua força, de que nada pode detê-la, mas a vejo indecisa sobre o momento de desabar sobre minha cabeça. Se ela fosse dotada de sentimentos humanos, estaria insegura nesse momento, olharia para trás em busca de alguma ajuda, de algum apoio no qual pudesse buscar forças para me enfrentar, mas ela não tem sentimentos e eu estou livre dos meus nesse momento. Seremos, dessa vez, só eu e ela.
Já é noite. Suas nuvens esconderam as estrelas e a lua, fazendo com que eu me sinta ainda mais só. Mas não posso demonstrar fraquezas, não posso deixar que ela sinta qualquer tipo de cheiro de medo no ar. Já estive só em outros momentos, assim como me encontro agora e, no fim das contas, tudo acabou bem.
Ela dá o seu primeiro passo, ouço o ribombar dos trovões. Sinto bater em meu rosto o sopro do vento frio e cortante, mas deixo que ele me acaricie. Vejo sua raiva expressa nos raios que deixa cair sobre o oceano.
Estou surpreendentemente calmo no momento em que sinto as pesadas gotas d’água que ela deixa cair sobre minha cabeça. Abro a porta e saio. Fico a esperando do lado de fora, com os braços abertos, pronto para que ela desabe sobre minha cabeça.
Ao me ver daquela forma, tão desprovido de medo, ela sopra um vento forte e frio e desaba, com toda a sua força, sobre mim. Não consegue, mesmo com toda a sua força, me abalar.
Cai a chuva fria e pesada, cortante como o vidro, sopra o vento frio, forte, ameaçando levar tudo embora, caem os raios, ribombam os trovões e o céu parece que vai desabar sobre a minha cabeça. Sinto um leve estremecimento, da base de minha coluna se estendendo até minha nuca. Fecho os olhos e deixo-me apenas ser banhado pela chuva e acariciado pelo vento. Ouço, sim, os trovões e vejo, mesmo com os olhos fechados, os clarões dos raios e relâmpagos, mas estes não mais me assustam.
Hoje não sou mais como uma criança que se esconde embaixo dos lençóis ou corre para a cama dos pais em noites de tempestade; não sou mais o adolescente que teme a aproximação de um mal tempo, que se aflige com uma tempestade em sua vida, que se sente inseguro perante momentos de tempestade, quando o céu ameaça desabar. Hoje sou um homem que muito viveu, que aprendeu a enfrentar as tempestade, que as encara, que não as teme.
No fim das contas, as tempestades são o que simplesmente são: apenas tempestades. E esta não é diferente. Da mesma forma que se formou, que chegou, ela começa a perder a força.
A chuva que caia com tanta força, começa a ficar mais fraca, o vento, tão forte, passa a não ser mais do que uma simples brisa, os trovões se calam, os relâmpagos nada mais iluminam e os raios não mais cortam o céu.
Ainda mantenho os olhos fechados, mas sinto a tempestade perder sua força, se retrair e começar a ir embora.
Resisti a essa tempestade, encontrei forças dentro de mim que eu jamais imaginava possuir para enfrentá-la, não tive medo de seu poder, pois ele reside só e unicamente em nossa fraqueza.
Só quando sinto no meu rosto o toque do primeiro raio de sol, que abro meus olhos. A noite foi embora, junto com a tempestade, e vejo, agora, um céu que se descortina de um azul esplendoroso e, ao longe, surgir um arco-íris, saudando um novo dia que nasce após tão longa noite de tempestade. Ao meu redor a vida renasce com todos os seus brilhos, cores e sonhos, na umidade, entre as poças d’água que ficaram após a chuva.
A vida renasce – ela sempre renasce – mesmo após tão longa noite, após tão forte tempestade.
Eu renasço – eu sempre renasço – tal como uma fênix, mesmo estando encharcado, com frio, mas realizado, por ter enfrentado, vivido e vencido a tempestade que desabou sobre mim.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

O Rei e seu Tesouro

Naquele distante reino o tesouro real já havia sido maculado diversas vezes. Peças de ouro foram levadas, tiaras cravejadas de diamantes, amassadas, vasos de louça fina, de inestimável valor, quebradas, peças de fino cristal, despedaçadas, cetros, saqueados, taças, arranhadas, coroas, profanadas, sendo colocadas sobre cabeças de pessoas não dignas de ostentá-las. Da mais valiosas à mais simples peça do precioso tesouro, todas já haviam sido, de alguma forma, sido levadas, despedaçadas, jogadas fora, mas sempre o rei as recuperava, as limpava e fazia com que voltassem a brilhar. Era um trabalho árduo, reconstruir todo o tesouro peça por peça. Mas aquele era o seu tesouro, e o rei zelava por ele.
            Procurava se precaver de todas as formas, ficando vigilante, impedindo que qualquer pessoa se aproximasse de seu castelo e das câmaras onde estavam guardadas as peças do tesouro, mas, apesar de todo o cuidado, era homem, e como tal, frágil, e em dias de sua fraqueza, pessoas mal intencionadas aproveitavam-se de seu descuido para invadir em seu castelo e saquear, quebrar, arranhar e despedaçar o seu tesouro. No dia seguinte o rei, dando-se conta de seu descuido, voltava a seu interminável trabalho de recuperar todo o tesouro.
            Ano após ano, mês após mês, semana após semana, dia após dia, nada mudava naquele reino e o rei, cansado, resolveu erguer um fortaleza intransponível para proteger seu tesouro. Passou um longo tempo sozinho, encarcerado no alto de um torre, encontrando a melhor maneira de erigir a fortaleza dentro da qual seu tesouro estaria a salvo. Ao sair do alto da torre estava envelhecido e cansado, mas em seus olhos havia um brilho diferente, determinado, cego.
            Passou longos meses cego ao mundo, preocupado só e unicamente com a construção da fortaleza para proteger o seu tesouro, e nem percebeu que nesse meio tempo nenhuma de suas valiosas peças fora sequer tocada.
            Ergueu altas e grossas paredes e cavou um profundo fosso. Construiu altas torres que tocavam as nuvens para vigiar quem quer que se aproximasse, por terra ou por ar. Em cada canto, havia uma armadilha. Espalhou pesadas pedras impossíveis de serem arrastadas em todas as portas que davam acesso às câmaras do tesouro.
            Quando terminou de construir, sozinho, toda a fortaleza com suas próprias mãos, ele a contemplou, trancou a pesada porta e escondeu as chaves.
            Deu dois passos para trás e contemplou novamente a sua fortaleza, onde o seu maior e mais preciosos tesouro estaria a salvo, e respirou aliviado.
            No alto da torre de seu castelo, todos os dias o rei olhava para a sua fortaleza sabendo que ali o seu tesouro permaneceria intocado.
            Seus dias, semanas, meses e anos tornaram-se iguais, sempre vendo apenas as paredes da fortaleza, nunca contemplando a beleza verdadeira de seu tesouro, que, agora, para ele, era só uma vaga lembrança.
            Um dia, ao se levantar, quando abriu a janela e viu a fortaleza, se perguntou o que aquelas paredes intransponíveis tão bem protegiam. Havia esquecido de seu próprio tesouro. Lembrava vagamente que seu súditos, logo que ergueu a fortaleza, chegavam perto dela, assombrados, para vê-la, mas agora ninguém ousava se aproximar.
            A fortaleza se incorporou a paisagem, tornando-se um lugar comum, tanto que as pessoas passaram a nem sequer notá-la, e o rei, que a construí-la para manter um algo a salvo, algo que ele não se lembrava o que era, esquecera até mesmo do motivo que o levara a construí-la, a ponto de, mesmo em suas lembranças mais antigas, imaginava ver o reino como o via hoje. Lembranças e realidades se misturavam e ele não sabia mais distinguir umas da outras. A fortaleza fazia parte de sua memória, e sempre estivera, sempre fora ali, intransponível.
            Quando não mais se lembrava de nada do que havia lhe pertencido outrora, enquanto caminhava sozinho num bosque, voltando de uma caçada, algo brilhante lhe chamou a atenção. Abaixou-se para ver do que se tratava. Cavou, cavou e cavou, até encontrar uma taça de ouro que fazia parte de seu tesouro esquecido. Ao ver aquela taça onde um dia bebera o mais fino vinho, todas as lembranças de seu tesouro esquecido lhe voltaram à mente. A taça estava suja, mas ainda reluzia um brilho opaco, quase morto. O rei a banhou com suas lágrimas a taça de ouro, que logo voltou a brilhar como antes. Quando a viu em todo o esplendor de sua beleza, virou em direção à fortaleza, lembrando-se de todo o seu tesouro que jazia ali, esquecido.
            Correu, tropeçando em suas próprias pernas e, ao chegar à porta da fortaleza, bateu nela com tanta força que feriu os seus pulsos. Havia construído aquela fortaleza tão forte, tão perfeita, que nem ele mesmo se lembrava como abri-la, como ultrapassar aquelas paredes para chegar até seu tesouro. Havia esquecido onde guardara as chaves.
            Chorou com sua impotência, com sua imbecilidade quando resolveu guardar e proteger o seu tesouro tão bem protegido que havia acabado protegendo-o de si mesmo.
            Suas lágrimas que escorriam pelo seu rosto acabaram por cair em seu peito e lá encontrando um objeto minúsculo, amarrado a uma finíssima corrente: uma chave. Ele pegou aquela chave, fechando seu punho sobre ela, e a arrancou da corrente que a prendia. Enfiou-a na porta, que abriu com um rangido, dando passagem ao lado interno da fortaleza, com seus fossos, torres de vigia e inúmeras armadilhas.
            Dentro da fortaleza ele havia construído um labirinto, e ele não sabia por onde e como começar a procurar o seu tesouro. Então fechou os olhos e deixou que seus pés o guiassem. Escapou das armadilhas, removeu as pedras que estavam em seu caminho como quem levanta uma folha ou arranca uma pétala de uma flor. Com os olhos fechados e a mão no peito, ele se deixou levar.
            Seu tesouro estava escondido no coração da fortaleza, e ele, ao encontrá-lo, viu, ao seu redor, todas aquelas paredes começarem a ruir.
            A fortaleza foi caindo, parede a parede, até não restar mais nada além do Rei e Tesouro.