sábado, 28 de setembro de 2013

A Leitora

Eu sou aquele tipo de pessoa estranha, dessas que ao entrar num ônibus olha os assentos ocupados e vejo todas aquelas pessoas, cada uma ocupada com seus computadores de mão (vulgos smartphones!), jogando algum joguinho sem graça, conversando no WhatsApp ou mandando e recebendo mensagens SMS, entretidos em algum aplicativo baixado na noite anterior ou simplesmente conversando alto e fazendo questão que todo mundo que está no ônibus ouça tudo; vejo, também, pessoas distraídas, ouvindo suas músicas, e algumas até mexendo os dedos ou batendo suavemente o pé na cadência da música; vejo também pessoas distraídas, olhando a paisagem ou pensando em como aquele dia tende a ser longo e cansativo; vez por outra tem aqueles que estão conversando alto e incomodam a metade do ônibus; e de vez em quando antes mesmo ouço antes de ver um daqueles desprezíveis DJs de ônibus, ouvindo suas músicas de qualidade duvidosa e incomodando o ônibus inteiro, e sempre que vejo (digo, ouço) tal ser, minha vontade é de pedir parada e descer imediatamente.
            Pois bem, eu não me enquadro em nenhuma dessas categorias (se bem que de vez em quando eu ouço minha música – com fones de ouvido, óbvio), e ao entrar no ônibus, ao me deparar com tão familiares figuras, busco com os olhos um lugar onde possa me sentar (normalmente à janela, no lado do sol – não me pergunte por que opto por me sentar no lado do sol). Devidamente sentado, sentindo-me confortável (por vezes nem tão confortável assim), abro minha mochila e tiro de dentro dela um objeto estranho, um livro, e ao fazer isso muitas pessoas me olham com certa estranheza, como se eu fosse um ser de outro mundo e portando um objeto deveras perigoso, talvez desconhecido (pelo menos no ambiente de um transporte público coletivo) para a maioria daquelas pessoas.
            Um dia desses tudo me parecia igual a todos os dias. Entrei no ônibus, procurei com os olhos um assento e me dirigi para lá. Infelizmente não era na janela, mas pelo menos era do lado do sol (!). Sentei-me e ao começar a abrir a mochila, olhei para o lado e vi que havia um elemento estranho naquele ônibus, um alguém que havia ocupado o meu lugar de “elemento estranho, extraterrestre, portador de um objeto deveras perigoso e desconhecido”. Eu, como bom curioso, procurei discretamente (se bem que não tão discretamente) averiguar que livro era aquele que aquela moça estava lendo e que a tinha fisgado de tal forma que ela estava profundamente concentrada na leitura. Quase dou um jeito no pescoço para ver a capa daquele livro, que fazia com que a leitura tivesse uma reação diferente a cada virar de página. Quando finalmente consegui ver a capa, já tendo chamado a atenção daquele que estava sentado ao meu lado e de algumas pessoas próximas, que àquela altura devia já ter me julgado um louco, quase me desequilibro ao constatar que a moça lia um de meus livros. Olhei bem para ela, tentando reconhecê-la entre uma daquelas a quem recomendei a leitura na livraria onde trabalho, mas por mais que me esforçasse, não conseguia lembrar de seu rosto. Fiquei me perguntando como aquele livro tinha lhe caído nas mãos, mas deixei esse questionamento de lado e comecei a reparar em suas reações, para constatar se ela estava ou não gostando, e pelas expressões de seu rosto e seu leve arquear das sobrancelhas, creio que sim. À essa altura, as pessoas no ônibus já estavam me olhando, vendo como eu reparava naquela leitora ao meu lado. Deviam achar que eu me tratava de algum maníaco-pervertido-com-fetiches-por-mulheres-que-leem-em-ônibus (se bem que eles, nesse sentido, têm certa razão). Fiquei pensando se deveria ou não me apresentar a ela como o autor daquele livro, aquele quem escreveu aquela história (uma crônica – tratava-se de um de meus livros de crônicas) que naquele momento lhe arrancava uma sonora gargalhada que acabou chamando a atenção de outros passageiros do ônibus, que olharam para ela com um olhar de estranheza e censura (pensando, por certo, se ela era louca para estar rindo “sozinha”!). Resolvi deixá-la quieta, em paz, final de contas é sempre mais engraçado e interessante ler um livro e suas histórias, se divertir e se identificar com elas do que conhecer aquele quem as escreveu.
            Quando dei por mim, minha parada estava chegando e eu tive que me levantar. Naquela manhã, um dia incomum, eu não li uma única páginas e sequer chegara a abrir a mochila. Quando, já de pé no corredor do ônibus, em frente à porta, olhei para trás, não resisti e dei mais uma espiada para trás, para aquela leitora desconhecida, e quando a vi sorrir novamente me dei conta de que a decisão que havia tomado, de não me apresentar, fora a mais sensata, afinal de contas, como disse, a leitura do livro era muito mais interessante e divertida do que conhecer seu autor.

domingo, 22 de setembro de 2013

Palavras, palavras, palavras...

Eu nunca aprendi a ser direto. Minhas respostas nunca se pautaram em um simples “sim” ou “não”, e se for preciso responder de forma a usar uma única palavra, opto pelo “talvez”, justamente porque esta é uma palavra que exige muitas outras, explicações mil, e aí eu posso me derramar e fazer amplo uso indiscriminado de dezenas, centenas e quiçá milhares de palavras.
Nunca gostei de economizar em palavras, nunca tendo sido eu um exímio mesquinho na linguagem escrita ou falada. As palavras foram feitas para serem usadas amplamente, não economizadas e tomadas em doses homeopáticas. Sempre adorei usar as palavras indiscriminadamente, em me derramar nelas, em passar longos minutos pensando-as, saboreando-as, escolhendo-as tão cuidadosamente, com todo o carinho o amor, só para que elas se encaixem de forma perfeita e precisa na perfeita frase.
Ser direto nas respostas, usar poucas palavras, para mim, tem o sentido de uma reta numa estrada. Retas dão a impressão de pressa, de se querer e precisar chegar logo a algum lugar, de se pisar fundo no acelerador. Eu, ao contrário, prefiro as curvas, gostando de dirigir, de curtir a viagem da língua, de suas paisagens que se descortinam perante nossos olhos, das mil e uma possibilidades que podem surgir a cada quilômetro e metro percorrido.
Cada palavra tem seu sabor, costumo dizer, e o perfeito uso e escolha delas em uma frase, em uma resposta, tem o sabor da perfeita combinação de uma saborosa salada de frutas, enquanto a economia no uso delas, quando não nos damos o simples prazer de escolhê-las e saboreá-las sem pressa, nossas respostas tem o sabor de água, de comida insossa, da total ausência de temperos. Cabe a cada um de nós a escolha de nosso prato linguístico-léxico-gramátical, e o nosso cardápio é o dicionário, cabendo a nós a dupla função de comensal-glutão e o cozinheiro.
Palavras bem colocadas e escolhidas são como chaves-mestras capazes de abrir todas as portas e cadeados. Palavras são capazes de inspirar mil e um sentimentos, de nos arrancar sorrisos e lágrimas, por vezes até os dois juntos. Palavras gritadas nem sempre são ouvidas, e palavras não ditas podem dizer mais do que milhões de palavras vazias. Palavras podem quebrar o mais profundo silêncio, mas também podem silenciar o maior dos barulhos. Palavras são boas, excepcionais, quando ditas bem baixinho, ao pé do ouvido, e também são boas quando gritadas para todo mundo ouvir. Palavras não devem ficar guardadas em nosso peito nem sufocadas em nossa garganta. Palavras gritam e clamam para ser jogadas ao vento, libertadas das amarras com que, por vezes, as prendemos. Pedem para não serem guardadas em nosso peito ou sufocadas em nossa garganta, clamando para serem sussurradas, gritadas, para se verem livres, jogadas ao vento, para ser escritas, imortalizadas, ou faladas, para todo o sempre.

domingo, 15 de setembro de 2013

Um rosto estranho no espelho



Ao ver o seu próprio reflexo no espelho a olhar dentro de seus olhos, ele se deu conta do quanto o tempo tinha passado sem que ele se desse conta. Não reconhecia as rugas-cicatrizes que o tempo tinha escavado em sua pele nem fazia ideia de quando e como elas surgiram; não reconhecia mais aquele olhar, cansado, fugidio, que não conseguia enxergar mais nada além daquilo que lhe aparecia perante os olhos, tão diferente daquele que conseguia olhar ao longe e vislumbrar mil e um futuros que poderia ter; não conseguia ver sombras daquele sorriso largo e franco de outrora. Baixou os olhos, pois não conseguia mais ver refletido no espelho, transformado em um alguém que não conhecia.
            O tempo havia passado sem que ele tivesse se dado conta, e só percebia isso agora. Perguntava-se o que tinha acontecido com todo o tempo do mundo que tivera há muito tempo, perguntava-se como o tempo pôde correr e escorrer por entre seus dedos sem que nada pudesse fazer para contê-lo. Não era mais o jovem da juventude eterna que pregou que seria certa vez, não havia se transformado no homem que imaginou que iria se transformar. Ao invés desses, o que tinha diante de si, no outro lado, no reflexo do espelho, era um homem acabado pelo tempo, já cansado.
            Triste com o tempo que não tinha mais, com o futuro que não se tornaria presente, ele abaixou a cabeça e se deixou sentir todo o peso daqueles anos todos caírem sobre seus ombros. Era uma carga pesada, difícil de suportar, e ele só a muito custo, só desprendendo uma força sobre-humana, conseguia se manter de pé, firme. Olhou novamente para aqueles olhos que não eram os seus e viu deles brotarem grossas e doídas lágrimas, que ele viu escorrerem pelos tortuosos caminhos e curvas traçados pelas rugas do rosto, para depois saltarem em mergulhos suicidas em direção ao chão.
            Na medida em que as lágrimas iam brotando em abundância de seus olhos e escorrendo pelo rosto, o peso do tempo que tinha sobre seus ombros foi diminuindo, as cicatrizes deixadas pelo tempo, sendo curadas, e seus olhos, ganhando o mesmo brilho de outrora. Fechou os olhos e quando os reabriu, deu-se conta de que tudo não passara de um sonho. Passou as mãos pelo rosto e sentiu a sua pele, sem marcas, sem rugas, sem cicatrizes. Inspirou fundo, deixando que o ar inundasse seus pulmões e se espalhasse por seu corpo, e expirou longamente, expulsando as lembranças daquele pesadelo. Com os olhos fechados, no mais completo silêncio e paz de espírito, ele ficou, até que foi despertado de seu devaneio pelo forte barulho de algo que quebrava com um forte estalo. Assustado, ele abriu os olhos e foi até o local de onde julgava ter vindo o barulho, e viu, que se tratava do espelho que havia quebrado, que tinha acabado de ganhar uma enorme cicatriz que o atravessava de ponta a ponta. O homem respirou aliviado e fechou os olhos, e quando os reabriu viu que o espelho estava intacto, como sempre estivera. Deu passos curtos e inseguros em direção a ele, e quando estava à sua frente, levantou os olhos, ainda temeroso do que e de quem iria encontrar refletido. Viu-se refletido tal como era, com os mesmos olhos, com a mesma fisionomia, e só então conseguiu respirar aliviado.

sábado, 7 de setembro de 2013

Os herdeiros do floricultor



Ele era um homem muito rico, que passara a vida inteira a acumular um imenso patrimônio, mas já estava velho e cansado. Olhava para trás e via de onde tinha partido e de como tinha acumulado toda aquela imensa fortuna. Olhava para frente e percebia que não teria muito mais tempo de vida. Olhou para o hoje e se deu conta de que precisaria fazer algo para que seu legado fosse bem aproveitado por seus herdeiros.
            Tivera uma família numerosa que se espalhara por todo o mundo, mas a seu chamado, todos vieram vê-lo uma última vez, pois sabiam que o patriarca da família desejava se aposentar e se recolher a um canto de paz onde pudesse gozar de seus últimos anos de vida. Chegaram um a um e foram se instalando nos quartos daquela mansão de infindáveis corredores. Quando todos chegaram, o velho homem os chamou na imensa sala. Ele esperou que todos se acomodassem para poder dizer as primeiras palavras.
            - Chamei-os aqui hoje, meus filhos, netos e bisnetos, porque, como sabem, já estou velho e cansado, e pretendo me recolher a um canto onde possa descansar e viver em paz os meus últimos anos. Mas antes gostaria de dividir o meu patrimônio entre todos vocês, meus herdeiros.
            O homem então pediu que um fiel empregado, a quem ele tinha como o melhor amigo em todos aqueles longos anos, entregasse, a cada um daqueles que ali estava, um jarro. Seus herdeiros não entenderam aquilo, e se perguntaram se, por conta da avançada idade, o homem já não estava senil. Ele olhava preocupado para cada um daqueles que recebia o jarro. Quando cada um recebeu a sua parte da herança, começaram a discutir entre si, e a sala tornou-se uma balbúrdia de mil e umas vozes falando ao mesmo tempo.
            Pela face do idoso homem escorriam grossas lágrimas que percorriam os sulcos formados por suas profundas rugas. Sentia-se cada vez mais triste pela forma como via como seus herdeiros tratavam aquele seu presente, aquela parte de uma herança que lhes cabia por direito.
            - Esse jarro não é tudo – disse, para fazê-los calar-se e prestarem atenção novamente a ele. – Gostaria que cada um viesse até mim para receber a parte que realmente importa na herança.
            Um a um, os herdeiros foram se dirigindo até onde estava sentado o patriarca, que depositou em cada jarro uma diminuta semente, e quando todos receberam aquela segunda parte, e mais essencial, da herança, começaram novamente a discutir. Alguns tinham a absoluta certeza de que o velho tinha perdido a razão e começaram mesmo a discutir a séria e real possibilidade de interná-lo numa clínica psiquiátrica. E quanto mais ouvia tais despautérios, mais o homem se enterrava em suas tristezas, e mais grossas e pesadas eram as suas lágrimas.
            Um barulho se fez mais alto que todas aquelas vozes, que foi a do jarro arremessado ao chão pelo primogênito. O jarro espatifou-se, a terra nele contida espalho-se e a diminuta semente perdeu-se. O homem, ao ver um ato daqueles feito pelo próprio filho, respirou fundo, engoliu as lágrimas, e o chamou para perto. Entregou-lhe um cheque com uma vultosa soma em dinheiro, dizendo que, ali, agora, continha a sua parte da herança. Outros seguiram o exemplo, e foram arremessando e quebrando seus jarros, perdendo as suas sementes, e recebendo uma considerável soma em dinheiro como recompensa. Alguns poucos, apenas, ficaram olhando toda a cena, e ficaram protegendo seus jarros. Destes, alguns até foram convencidos a quebrar, também, seus jarros. Quando o chão da sala estava repleto de terra e de cacos da cerâmica dos jarros e os herdeiros tinham recebido cada um o seu cheque, foram, um a um, indo embora, cada qual com sua felicidade naquele pedaço de papel assinado, autorizando a retirada de uma imensa soma financeira numa instituição financeira qualquer.
            O homem chorava copiosamente quando se viu abandonado naquela imensa sala. Ali estavam apenas seu amigo-empregado, e uma de suas bisnetas, que ele não tinha dado por sua presença. Era uma menina magrinha, que mal havia entrado na adolescência, e que em sua inocência e imensa sabedoria, resolvera ficar com o jarro e a semente, mesmo sua mãe insistindo para que ele o quebrasse em troca do dinheiro que receberia.
            O homem abriu um grande e lindo sorriso ao vê-la ali, sozinha, tão frágil, pequena, forte e grande.
            - Adorei a herança, bisavô – disse ela, sorrindo. Via-se que ela tinha e protegia com seus finos braços não um simples jarros de cerâmica com terra onde fora depositada uma semente, mas sim um imenso tesouro de valor inestimável.
            Ele então a chamou para perto de si e a sentou em seu colo, beijando sua cabeça coroado por aqueles fios de cabelo finos, dourados e sedosos.
            - Tudo que realmente importa, minha querida, está aqui, nessa diminuta semente. Você deve regá-la, da mesma forma que eu reguei a primeira semente que deu origem a essa grande fortuna que construí ao longo de tantos anos. Essas flores que cultivo em minhas propriedades e que as vendo nas cidades, são todas filhas dessa primeira que cuidei com tanto zelo e amor. Se não tivesse sido por essa primeira flor, eu jamais teria enriquecido e feito toda essa fortuna. Todos os dias, quando acordo, que abro a janela de meu quarto, não vejo o luxo pelo qual sou cercado, mas sim o imenso jardim que vejo desabrochar todas as manhãs perante meus olhos.
            - Eu vou regar todo dia essa sementinha e vê-la germinar, e quando a flor surgir, irei plantá-la no meu jardim.
            - Você, entre tantos filhos, netos e bisnetos, é a que se tornou a minha verdadeira e única herdeira, minha querida menina. A você coube a maior e mais importante parte de meu legado nessa vida. Vá e cultive o seu jardim e torne-se, como eu, uma grande e muito feliz floricultora.
            A menina então beijou a face do ancião e saiu correndo, abraçada ao jarro que guardava o legado e o tesouro. Antes de fechar a porta atrás de si, virou-se para trás e acenou para o bisavô mandando-lhe um beijo no ar. O velho homem recebeu aquele delicado e belo gesto com um imenso sorriso. Virou-se para o amigo e disse estar imensamente feliz com o que acontecera: dividira toda a sua fortuna em dinheiro entre os descendentes e encontrara uma herdeira, a única em tão numerosa prole que iria continuar a cultivar flores.