Fala-se que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar. Há os
que dizem que um escritor contemporâneo não “acerta a mão duas vezes seguidas
ao escrever romances”! pois eis que raios caíram duas vezes no mesmo lugar e um
escritor brasileiro escreveu não só dois bons livros, mas dois livros
magníficos, marcantes, poéticos e de delicadezas impressionantes, capazes de
envolver o leitor, embalando-o e fazendo com que ele se envolva com a história
e se identifique prontamente com os personagem. Que autor é esse? Francisco
Azevedo! E que livros são esses? O Arroz
de Palma, o primeiro, e Doce Gabito o segundo
Fico me
lamentando e comento com todas as pessoas com quem converso, que demorei muito
a descobrir Francisco Azevedo e seu estupendo Arroz de Palma. Um livro lançado em 2009, finalista do Prêmio São
Paulo de Literatura, e que só recentemente, no ano passado, foi que eu tive o
imenso prazer de lê-lo. Por que demorei tanto a lê-lo? Nem eu mesmo sei. São
tantos os livros a ler, tantos autores para conhecer, que, confesso nunca ter
prestado tanta atenção aquele livro de capa tão delicada e singela e que nunca
chegava em grande quantidade à livraria em que trabalho, mas que, mesmo assim, mesmo
sem tanta divulgação, mesmo sem fazer barulho, era sempre bem vendido e que
recebia elogios “rasgados” daqueles que o saborearam. Aconteceu que, na metade
de 2013, aquele livro se jogou em meus braços e segurando meu rosto, gritou:
“leia-me agora ou arrependa-se para sempre!”. Eu, diante de tais argumentos,
nada pude fazer além de leva-lo para casa e iniciar, naquela mesma noite, sua
leitura. E que livro! A cada parágrafo, uma poesia. Eu ficava entre querer
devorá-lo em uma única noite ou prolongar o imenso prazer de sua leitura por
dias a fio, saboreando, grão a grão de suas palavras.
Ao fechar o
livro, tendo lido o último ponto de O
Arroz de Palma, continuei por longos dias com aquela história ecoando em
minha cabeça, tendo por companhia aqueles tão cativantes personagens com os
quais tanto me identifiquei. Com o passar dos dias, comecei a me sentir órfão,
pois nada do que lia encontrava aquela poeticidade, aquela delicadeza das
palavras de Francisco Azevedo. Encontrei, sim, muito bons livros, que marcaram
o meu ano de leitura, mas nenhum tanto quanto aquele Arroz...
“Livro vai,
livro vem...” e acontece de eu, por acaso, resolver fuçar na internet (no
facebook, para ser mais exato) e encontrar, entre milhões Franciscos e entre
tantos Azevedos, o Francisco Azevedo que, com seu livro, fez eu me sentir órfão
por meses após a leitura do incomparável O
Arroz de Palma. Conversa vai, conversa vem, apresentações feitas, elogios
também, acabo descobrindo que ele lançou outro livro de peculiar título, Doce Gabito. Como assim?! Ele tem um
segundo livro e eu não sabia! Mas o livro, infelizmente, não tinha unzinho
exemplar sequer na livraria em que trabalho. Relatei isso ao autor, comentei de
meu “desespero” (dramático eu? Imagina!), e ele, se compadecendo de minha
situação, mandou-me um exemplar do livro. Eu aceitei, óbvio, o presente, mas
com uma condição: que o livro viesse autografado. Ele não titubeou, e mandou-me
o exemplar do raro livro.
Iniciei a
leitura de Doce Gabito e senti, de
cara, o mesmo impacto da leitura do livro anterior do autor. A mesma
poeticidade, a mesma linguagem plástica, a mesma forma inigualável e até o
mesmo eixo temático, família. Isso tudo sem contar as referências literárias e
as “coincidências” na história da protagonista/ narradora, Gabriela Garcia
Marques (isso mesmo! é este o nome dela), com a de seu homônimo, o famoso e
laureado escritor colombiano, sem contar a presença constante de seu amigo, que
sempre vem lhe visitar em sonhos (normalmente, mas que vez por outra aparece em
plena luz do dia e dá o ar da graça quando ela está com os olhos bem abertos),
que é presença constante na história, tão real quanto os demais personagens,
Gabito (nada mais nada menos do que o próprio escritor nobel de literatura de
1982!).
É
inevitável se fazer comparações entre os dois livros, principalmente quando o
primeiro é tão marcante, e talvez algumas pessoas ao lerem o segundo livro de
Azevedo o achem “abaixo da expectativa” simplesmente por ter ficado “diferente”
do outro, mesmo tendo tanto em comum. O Doce
Gabito é, em muitos aspectos, inclusive, uma obra mais madura que O Arroz
de Palma. No deparamos, nele, com uma maior gana de personagens, complexos
e bem desenvolvidos, que pulsam de vida em todos os capítulos, pelos quais
torcemos, que nos deixam curiosos sobre como vai terminar a história, nos
obrigando a virar página atrás de página para chegar logo ao final. A condução
da história continua “não linear”, com a personagem-narradora nos conduzindo ao
seu bel prazer numa viagem através do tempo, nos contando suas histórias, suas
lembranças, nos levando pela mão.
Gabriela
tem um avô espetacular e cuidadoso, tanto que numa das primeiras cenas em que
nos deparamos com os dois juntos, o encontramos reparando nas costas da neta,
verificando se suas asas estão crescendo retas, corretas, nos seus devidos
lugares. Quando ele termina o minucioso exame, que diz a ela que está tudo bem
com suas asas, ela abre um imenso sorriso, satisfeita. Moram apenas os dois num
simples casebre localizado no alto do morro Santa Marta. Se faltam maiores
contato com “o mundo exterior”, se a menina não vai a escola, ficando a encargo
do avô a sua instrução, não lhe faltam boas lembranças dessa fase de sua vida e
pessoas marcante em sua vida. São os momentos que passa com o avô os mais
ternos e repletos de fantasia (incentivados e cultivados por ele) de sua vida. Mas
toda esta vida, fantasia, é ameaçada, e quando os dois estão prestes a fugir do
alto do morro, acontece uma fatalidade, tendo a vida de Vovô Gregório ceifada
tão bruscamente, e a de Gabriela não o foi graças a intervenção de um
misterioso homem moreno de fartos bigodes, que a salva.
A vida da
menina muda bruscamente quando passa a viver no casarão da tia, com quem nenhum
terno contato tivera até então. É Letícia uma mulher de personalidade forte,
dominadora, a dona da última palavra, que administra um conceituado e
respeitado prostíbulo na cidade. Gabriela sente falta do aconchego do abraço gostoso
do avô e dos amigos que tinha no morro, local a qual é terminantemente proibida
de voltar pela tia, mas encontra em Verônica, a amiga que é como uma válvula de
escape naquele novo mundo em que se viu subitamente inserida. O único ponto de
discórdia entre as duas se dá na “questão Gabito”, pois Verônica se nega
terminantemente a acreditar nas palavras e amizade de Gabriela com tão singular
homem, ao qual ela nunca, Verônica, nunca viu!
A harmonia
e rotina na vida de Gabriela é quebrada subitamente quando, prestes a completar
15 anos, sua tia lhe faz um pedido-cobrança: compensar-lhe todos os anos que
cuidou dela, começando a trabalhar para ela. Chocante e difícil momento na
vida, Gabriela reluta em vender a sua virgindade, a tornar-se puta de homem,
mas acaba por aceitar sob determinadas condições, condições estas que vão
colocar em choque e gerar desavença entre sobrinha e tia, mas que acaba sendo
contornada.
Gabriela
encontra, nos braços de José Aureliano (sempre as coincidências nos nomes e orbitando
em toda a história!), algo que não esperava de um alguém que lhe compra os
prazeres do corpo, mas até mesmo as fantasias de uma paixão. Descobre e amadurece
muito como pessoa, e quando chega a maioridade sua vida dá uma guinada, e ela
se vê não mais como uma menina, mas como uma mulher, que, no entanto, nunca
deixou para trás aquela fantasia e que tem, sempre em si, aquela preocupação de
saber se suas asas estão crescendo retas, no lugar que deveriam.
Livro de paixões,
inocência e fantasia; de amizades, descobertas e decepções. Doce Gabito tem na célula-família um
ponto central na história, mas na vida de Gabriela e na sua doce relação com
seu homônimo o fio condutor que vai nos conduzindo naquela formidável teia de
histórias, personagens e de coincidências entrelaçadas. Livro gostoso e
aconchegante como um abraço em que real e imaginário se entrecruzam. Livro com
que nos identificamos não só com as personagens, situações e histórias, mas com
o doce sabor das lembranças e com a fantasia que ele desperta. Livro humano
acima de tudo, principalmente quando ele nos leva a pensar e a refletir acerca
de nossas asas, nos levando a perguntar se elas realmente estão crescendo no
lugar certo...