domingo, 29 de junho de 2014

O fim de uma longa espera



Ele via através tênue vidraça da janela as lágrimas que o céu derramava e, lá longe, ao pé da montanha, um alguém não maior que um minúsculo ponto no horizonte. Vinha caminhando devagar, como que contando os passos, como se seus pés estivessem pesados e cansados de tanto caminhar, por já terem percorrido uma longa distância e só agora, após tanto tempo, estivessem voltando para o local de sua partida e de seu ponto de chegada. Ele tentou se levantar, mas já não tinha forças para isso. Seu corpo, já velho e cansado, estava debilitado, pois já tinha usado todas as suas energias em se manter vivo, na espera, por aquele momento, para aquele reencontro. Seu coração, que um dia fora tão forte, que batia com tanta força, mas que nos últimos anos se tornara tão frágil, batendo tão fracamente que só era capaz de lhe manter vivo, subitamente começou a bater acelerado em seu peito, fazendo-o se sentir revigorado, novamente vivo após tão longos anos. Abriu-se pouco a pouco, na sua pele enrugada e ressecada, um sorriso, algo que há tanto tempo ele não se lembrava de quando fora a última vez que seus lábios se abriram, desenhando um arco naquela face.
            Ele queria correr ao encontro daquela que tão lentamente vinha ao seu encontro, mas seu corpo se negava a atender àquele desejo, sendo obrigado a passar pelo tormento de mais aquela espera. Ela a via, mesmo de tão longe, tão claramente como a vira tantos anos atrás, tão bela, com o viço da vida brilhando e cada célula de seu corpo. Lembrava das lágrimas derramadas na despedida, momento que ficara gravado como ferro em braça na pele de sua alma, e da promessa feita por ela antes de virar o rosto e ir embora, de que voltaria, pedindo para que ele a aguardasse, para que ficasse a olhar naquela direção. E assim ele fizera, não duvidando, nunca, nas palavras dela, mas não imaginava que aquela promessa iria demorar tanto a ser cumprida.
Agora, quando ele já estava no fim da vida, quando a única coisa que lhe mantinha vivo era uma tênue linha, uma fraca força, é que ela voltava. Ela já estava mais perto, mas não perto o bastante que coubesse no espaço de um abraço, e através daquela vidraça ele já conseguia distinguir suas formas, que, reparou, estavam tão mudadas, mas tão iguais às de quando ele a viu pela última vez. Quanto mais perto ela chegava, mais difícil, para ele, era se manter vivo. Sentia a respiração difícil, o coração batendo cada vez mais fraco e os olhos pesados. Mas ele se segurou firmemente aquele fiapo de vida que ainda lhe restava para vê-la uma última vez, para estreitá-la em braços, para sentir, no abraço, seus corações batendo no mesmo compasso, antes de fechar os olhos.
Ele viu, através da janela, quando ela se aproximou e parou, como se buscasse em sua memória o momento em que vira pela última vez aquela casa que tinha diante de seus olhos, como se, subitamente, não tivesse certeza de que deveria dar mais aqueles curtos passos que a separavam daquela porta pela qual passara tantos anos antes. Ela respirou fundo duas ou três vezes enquanto pensava, e, dentro da casa, ele, percebendo a indecisão dela, prendia a respiração.
            Ela deu um passo, depois outro e mais outro, parando em frente à porta. Estendeu lentamente a mão até a maçaneta da porta, girando-a lentamente até conseguir, por fim, abri-la. Entrou na casa e demorou um pouco até seus olhos se acostumarem à escuridão. Ele a observava, deitado em sua cama. Via-a não como ela se apresentava agora, com o corpo tendo sofrido com as ações do tempo, mas como ela sempre fora em seus sonhos, como a guardara em sua memória. Ele sorriu, e quando o fez, ela olhou em sua direção, enxergando-o entre aquelas sombras que se espalhavam pelo cômodo. Veio lentamente em sua direção, com os passos que se tornaram tão curtos devido à inclemente ação do tempo.
            Os dois ficaram a se fitar, como se um não acreditasse que tinha o outro diante dos olhos, num silêncio que muito falava, ela de pé, ao pé da cama, ele deitado, lutando para se manter são e vivo.
            - Você voltou, como prometido! – disse ele com a voz sussurrante, desprendendo uma enorme força para fazer com que aquelas poucas palavras lhe saltassem pela boca.
            Ela nada respondeu, limitando-se a sorrir. Segurou na mão dele, e naquele simples toque havia tanto calor que transmitiu a ele um pouco de sua força vital. Ele, com aquele toque, sentiu-se rejuvenescer. Ele abriu os braços para recebe-la, e ela deitou-se sobre ele, num estreito abraço. Seus corações bateram em compasso enquanto seus corpos permaneceram unidos como há tempos não ficavam, como nunca deixaram de estar, mesmo quando estiveram separados.
            Foram fechando lentamente os olhos ao mesmo tempo em que puxavam o ar pelas últimas vezes e que seus corações começavam a parar de bater. Quando, por fim, a vida cessou, suas almas se levantaram, desprendendo-se dos corpos, e foram caminhando lentamente de mãos dadas. Passaram pela porta e olharam para trás, para onde seus corpos estavam, unidos, como nunca suas almas deixaram de estar. Sorriram um para o outro e seguiram seu caminho, agora efetivamente unidos.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Literatura, afinal de contas, para que serve?



Para que serve a literatura? Se analisarmos friamente, a literatura não tem, definitivamente, uma finalidade prática! Assim sendo, para que ler, por que se deleitar com textos estéticos, artístico, literários?
Muito mais interessante é se dedicar às leituras dos textos técnicos e estudos de engenharias, uma vez que construir prédios, montar máquinas, entender mecanismos eletrônicos é bem mais edificante do que se entender os mecanismos que fazem funcionar cada engrenagem da alma humana. Muito mais cívico é ler e se dedicar ao estudo do Direito, decorando-se todas aquelas leis que regem a sociedade, uma vez que a literatura não nos ensina isso, limitando-se, apenas, ao ensino, indireto, das leis que regem o homem, ensinando-lhe o lugar que lhe é de direito no mundo. Alguns se dedicam aos estudos das plantas, aprofundando-se nas leituras dos textos de Botânica, afinal de contas são muito mais importantes do que entender as nossas próprias raízes. Outros adotam como única leitura e estudo os números, às fórmulas matemáticas, pois são sempre exatas e seguras, não havendo margem alguma, nunca, para questionamentos; já a literatura, por tratar do ser humano tal como ele é, mostra e expõe a sua inexatidão, demonstrando que por isso mesmo o ser-humano é tão fascinante. Fascinante é o estudo, sem dúvida, da astronomia, que pode nos levar a conhecer tanto sobre os outros mundos e o universo que habitamos, já a literatura, tão limitada, só nos fala do mundo e universo que somos, mas que sequer nos damos conta. Importante, sem dúvida, é o estudo e entendimento da meteorologia para que possamos entender os ciclos das chuvas e correntes marítimas e dos ventos, mas vez que a literatura, como sempre, só fala sobre os ciclos da vida. É muito mais interessante se estudar e conhecer os movimentos da Terra em torno do Sol e do planeta em torno de si mesmo, para se entender os ciclos das estações do ano, do que se ler literatura, que só fala das estações do homem, demonstrando que temos períodos que desabrochamos tal qual as flores na Primavera, que somos frios e nos despimos como as árvores no Outono, que somos calorosos como o Verão ou tormentosos e chuvosos como o Inverno. Gastronomia é essencial, pois com ela aprendemos a arte e o preparo dos alimentos que nos nutrem o corpo, enquanto a literatura cuida do alimento filosófico da vida. Física é importante se estudar para e conhecer os estados da matéria, enquanto a literatura, tão pobre, só fala dos estados da alma humana. Importantes, no que tange às letras, é se estudar a gramática e as estruturas sintáticas do texto, o que aproximam a língua de uma Ciência Exata, pois a literatura, rebelde, só serve para quebrar com as regras e dotar de caráter humano e artística as Letras. Mas mais importante de tudo é se estudar a Medicina, deixando-se de lado a literatura, uma vez que esta Ciência Médica cura o corpo do homem, já a outra, em sua pequenez, só lida com a alma humana, apresentando curas para suas doenças.
Tudo, todas as áreas de conhecido, todas as pomposas leituras técnicas são mais objetivas, são mais exatas, enquanto a literatura, tão pobre, é subjetiva, é inexata. São leituras e conhecimentos bem mais importantes e interessantes do que a literatura, pois elas são bem mais abrangentes e falam do mundo que nos circunda, da sociedade em que vivemos. Não trata, a literatura, de peças e engrenagens, das leis que regem a sociedade, das plantas, da exatidão dos números, de planetas, mundos e universo, de correntes marítimas e de ventos, das mudanças das estações do ano, do preparo dos alimentos, dos estados da matéria, das regras gramaticais ou das doenças do corpo, pois ela se limita só e unicamente ao homem, da sua edificação, do seu lugar no mundo, das descobertas de suas raízes, sua inexatidão, complexidade de si mesmo, do seu universo, das mudanças de seus estados de espírito e estações ao longo da vida, do alimento e estado da alma, da quebra das regras e, acima de tudo, da cura de sua alma.
Realmente analisando e comparando sobre todas estas óticas, a literatura não serve para muita coisa, não possui uma única finalidade prática, é incapaz de apresentar resultados claros e imediatos, e, além de tudo, ela é incapaz de mudar o mundo, como tantas outras ciências e áreas do conhecimento, já que se foca só e unicamente no homem, no entanto, este, quando consciente, quando munido da sabedoria e sensibilidade que só a literatura pode lhe proporcionar, pode, sim, mudar um mundo, seja o seu, seja o de quem está ao seu redor, seja todo o mundo.

domingo, 22 de junho de 2014

Leitor - navegante solitário



O leitor é um solitário. Sabe-se lá por que, mesmo estando cercado por mil e uma pessoas, tendo mil e uma coisas a fazer, podendo ligar e ouvir a voz de mil e uma pessoas, resolve se isolar consigo mesmo num ato egoístico, tendo em mãos apenas aquele objeto que muitos e definem e chamam apenas de livro, mas, para ele, não trata-se apenas de um simples objeto, não trata-se apenas de um livro.
            O leitor se isola, e procura uma ilha solitária chamada silêncio no meio daquele mar de tantos barulhos, mesmo que todos o chamem, dizendo e mostrando que mais vale navegar do que aportar naquela ilha deserta. Ele, já munido de sua âncora, não ouve mais tais chamados para a navegação e para seu barco na ilha. Busca um canto sossegado e confortável, senta-se, respira uma, duas, três, quatro, cinco e quantas vezes forem necessárias para tomar fôlego e só então abre a caixa mágica que tem no colo.
            A princípio, ao abrir aquela caixa mágica, ele não mergulha em suas palavras, mas procura senti-la primeiro, sua aspereza e delicadeza da textura de seu corpo (que é uma mescla de outono com primavera, de verão com inverno), suas letras mágicas impressas naquelas folhas de papel e seu cheiro inebriante. Quando, só então, sentindo-se íntimo daquele corpo mágico, já tendo ganhado a sua confiança, mergulha em suas melífluas palavras.
            O leitor-navegante sente-se, realmente, um solitário no início de sua viagem, quando a caixa não se despiu por completo, ainda se mostra tão cheia de pudores, e ele ouve, ao longe, os chamados do mar e suas ondas, ouve as pessoas lhe chamando para navegar no tormentoso e barulhento oceano. Ele se deixa, por um longo-breve-curto espaço de tempo se levar pelos chamados e chega mesmo a fechar a caixa mágica e a pousá-la no colo. Olha ao seu redor, vê as ondas tão altas, batendo com tanta força na praia, e, com medo do que encontrará, resolve mergulhar na paz e segurança do livro que tem em mãos.
            Dá uma nova chance à história que não o prendeu no início, e quando menos se dá conta, ela o tem nas mãos, já o conduz por seus labirínticos caminhos e, sem que ele se aperceba, está novamente navegando, mas dessa vez nas águas claras e calmas da literatura.
            Não se sente mais um navegante solitário, agora acompanhado por mil e um personagens vívidos e barulhentos. Vê o calmo mar que tem em torno de si e deseja não mais sair dele, ficando toda a eternidade a navega-lo. Mas a magia contida naquele livro tem um fim, e ele já a sente nas mãos, escorrendo, na medida em que as páginas vão se sucedendo umas às outras, que vão acabando e que os personagens vão, finalmente, tendo seu fim, que a história vai chegando a seu fim. Vai sentindo o mar voltar a se avolumar ao seu redor e, temeroso, quando fecha o livro, tendo lido a última palavra, se vê novamente navegando naquele oceano tormentoso que é a vida real. Mas não se deixa abater e cair em desespero quando vê as gigantescas ondas que se lançam sobre seu navio. É essa a vida real na qual tem que navegar.
            Por mais que no oceano-vida em que tem que navegar as coisas estejam difíceis, sabe que sempre há uma ilha de tranquilidade e paz onde pode aportar, que há, sempre, oceanos e mares que a circundam, onde as águas são tranquilas, e para poder usufruir dessa paz basta abrir uma caixa mágica chamada livro e se deixar conduzir por suas calmas marés de palavras.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Jardineiro-Poeta



O jardineiro é um solitário escultor nato. Ele vê um silêncio do campo estéreo e olha para suas próprias mãos, tão ásperas e calejadas, tão sem poesia, incapaz de dotar de cores e cheiros mil aquela terra cinzenta e pedregosa. Respira fundo e se agacha, pega a terra e a deixa escorrer por entre seus dedos. É ele um insensato, e sabe disso, mas decide, ali, quando sente o calor da terra, que irá, tal qual um escafandrista, fechar os olhos e, munido de seu traje, respirar fundo duas ou três vezes e mergulhar na alma daquela terra árida.
            Seu trabalho é longo, difícil e silencioso e ele, certa vez, até olha para si mesmo com certa incredulidade, duvidando de suas próprias condições, de suas próprias capacidades de transformar em poesia para os sentidos aquele campo cinzento. Mas ele, artista-escultor-poeta-da-terra que é, deposita uma enorme confiança em si, mesmo que tudo diga o contrário, e por mais que sinta os calos nas mãos, sabe o quão delicadas elas são, de toque suave como a da mais pura seda.
            Começa seus trabalhos com toda a paciência do mundo, e da mesma forma que um poeta brinca com as palavras, jogando-as numa folha de papel em branco, o jardineiro brinca com as sementes, depositando-as delicadamente nos sulcos que vai construindo e cavando com seus próprios dedos na terra. Tem, em si mesmo, uma fé inabalável como maior virtude e por mais que da terra nada brote, não deixa que escape por entre os seus dedos a esperança de ver nascer um pequeno e delicado broto. Passa horas e horas a fio em muda contemplação. Regava e via o manto do sol encobrir a terra e ficava esperando o renascimento da vida naquele solo.
            Chegou um momento em que por mais paciente que fosse, o jardineiro via escorrer por entre os dedos a esperança de ver brotar uma delicada flor daquele solo. Ficou com vontade de desistir, sentiu lhe faltar a coragem de continuar. Não conseguia mais olhar para aquele chão duro e imaginar o jardim que poderia esculpir com lindas flores, dispondo-a harmonicamente em torno de uma fonte que pretendia construir, e passou a conviver com o fantasma do fracasso.
            Para ele, essa impotência era indescritível e inexplicável. Havia depositado tão delicadamente as sementes, havia regado com tanto amor aquele solo, mas por mais que fizesse, nada dali brotava! Decepcionado, voltou para casa cabisbaixo antes do sol se pôs no horizonte naquele dia.
            Não saiu da cama no seguinte, e no seguinte e no seguinte, e só quando conseguiu sentir as pernas novamente firmes foi novamente, pela última vez, ao local ao qual tanto se dera nos últimos dias. A terra continuava como sempre, insensível, e o frustrado jardineiro se ajoelhou, pegou um punhado de terra e a trouxe para junto do rosto, para sentir seu cheiro. Chorou naquele momento e ficou longos minutos soluçando deixando que as lágrimas escorressem livremente pelo seu rosto e mergulhassem na terra, regando-a uma última vez. Quando cessou o seu pranto, pegou, no bolso, uma última semente, levou-a até seus lábios, beijou-a, depositou-a no caloroso seio da terra, levantou-se e foi embora sem olhar para trás.
            Passou longos dias entretido em pensamentos mil e chegou, mesmo, a esquecer do poema feito na terra que não conseguiu escrever uma única palavra. Os dias sucederam uns aos outros lentamente, até que o jardineiro, certa vez, ao passear por uma rua, viu um jardim bem-cuidado, todo repleto de flores multicoloridas, com as abelhas voando, roubando o pólen das flores, com beija-flores dançando seu balé em pleno ar, e lhe bateu uma enorme saudade do jardim que não tinha conseguido fazer nada florescer. Seus pés, então, o levaram até aquele campo estéril e tal não foi sua surpresa ao ver um imenso campo florido diante de seus olhos. Fechou os olhos com força, pensando que eles lhe pregavam uma peça. Mas não. Ao reabri-los, o campo estava realmente ali, real em todas as suas cores e cheiros.
            O jardineiro então andou por seus corredores tal qual um leitor percorre os versos de um poema com o qual está a se deleitar. Reconheceu, como um poeta reconhece as suas próprias palavras impressas num livro, as sementes que depositou, aquelas flores que eram como um camaleão aos olhos de quem as via, mudando sutilmente de cor dependendo de como se olhava para elas. Tocou delicadamente flor por flor e se comoveu com a maneira como cada uma recebia os seus carinhos. Viu que cada uma tinha uma alma e delicadeza própria, mas que dada a sua pequenez, cada uma era forte, dotada de uma resiliência ímpar.
            Caminhou por todas as vielas do jardim, por todos os versos daquele poema que construiu com as próprias mãos, até que chegou até seu coração, onde desabrochara não uma flor, mas sim uma frondosa árvore. Boquiaberto com tal imponência, ele ficou longos minutos, imóvel, contemplando-a, protegido por sua generosa sombra. Viu, lá no alto, em sua copa, um suculento fruto e desejou prova-lo, mas não sabia subir na árvore, apenas depositar sua semente no solo e regá-la dia a dia. Foi então que a árvore soltou de seu caule o fruto e deixou-o cair suavemente no chão para que o jardineiro o pegasse.
            O homem sentiu batendo em seu rosto os bons ventos que sopraram em seu favor e olhou para as próprias mãos calejadas, tão sujas de terra, com areia sob as unhas, e viu a imensa escultura-poema que tais mãos haviam construído e sentiu que valeu a pena cada esforço desprendido por cada semente plantada. Sentiu o pulsar do jardim em cada flor.
            Voltou para casa imensamente feliz, com sua integridade moral como poeta de jardins intacta, e naquela noite teve um sono reconfortante como se estivesse deitado num campo de flores e sendo coberto por um imenso cobertor de delicadas pétalas de todas as cores.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Simprônio Calado



Quando nasceu, devido a uma promessa que sua mãe fizera para que o filho nascesse saudável, recebera o incomum nome de Simprônio. Cresceu, como toda criança cresce, sem se dar conta do tempo que passava, e na adolescência um alguém lhe dissera, jogando-lhe como um elogio, embora ele não tenha entendido como tal, que ele era uma pessoa de notável senciência devido a sua sensibilidade e à maneira como percebia o mundo ao seu redor. Acabaram os dois caindo no chão, arranhando-se, esmurrando-se, xingando-se de tudo quanto era ofensa, imaginando, Simprônio, que o outro lhe xingava de néscio, de um sem-ciência, ou coisa do tipo. Fechou-se em seu mundo, mais do que vivia fechado, com mais uma estranha palavra que recebera na vida. Já não lhe bastava aquele nome que sua mãe havia lhe dado, agora mais aquela palavra. O outro, o ex-amigo, tentara lhe explicar, quando ele partira com os punhos em riste, que a palavra senciência não era nada daquilo que imaginara, mas sim um elogio, mas ele, acostumado a receber tantas piadas dirigidas por seus colegas de escola devido ao seu nome, às rimas que faziam, jogando-lhe tantas e tantas palavras na cara, que ele, cego e surdo como estava, perdeu a razão a acabou com a única amizade que tinha na escola. A mãe nunca entendeu o mutismo do filho, que se acentuou após aquela briga. A atitude mais sensata fora tomada: Simprônio mudaria de escola.
            A mudança não lhe fez bem, pois tudo continuava como antes: as mesmas brincadeiras sem graça, as mesmas rimas com seu nome, as mesmas piadas, a ponto dele ficar mais e mais fechado em seu silêncio. Aprendeu, a duras penas, que a melhor maneira era, para tantas e tão incomuns palavras que lhe eram jogadas na cara, a desenvolver um “ouvido de mercador”. E assim o fez, com o intuito de recomeçar, com a esperança de nunca mais ouvir aquela balela sem importância que lhe era atirada diariamente, fechado em um cárcere que construíra protegido por grossas paredes para si, como que num sótão de suas próprias emoções. Sua mãe, preocupada, o levou a um médico, com a esperança de curar o menino daquele mutismo, mas este, incapaz de fazê-lo falar seja lá o que for, foi taxativo em seu diagnóstico: esquizofrenia! A mulher deu um grito quando viu aquela palavra escrita em letras garrafais, chorou o abraçou o filho, que apenas levantou levemente a sobrancelha quando ouviu aquela palavra dita pelos lábios do médico, mais uma para a sua “coleção de palavras”. A mãe, então, movida pela única coisa que lhe restava, sua fé, levou o menino a padres, pastores e curandeiros, e todos extraíram dinheiro e mais dinheiro da ingênua mulher, que sempre voltava para casa mais e mais abatida ao ver o seu filho naquele estado eternamente isolado em seu próprio mundo. Tomou uma difícil e sensata decisão: deixar o filho viver do jeito que ele entendia ser a melhor para ele, respeitando os seus silêncios. Simprônio, então, ao ouvir aquelas palavras vindas da boca de sua mãe, sorriu, coisa que não fazia há anos, e a mãe, ao ver aquelas curvas nos lábios do filho, chorou de alegria e o abraçou.
            Simprônio continuou a viver normalmente sua vida, não mais dando ouvidos aos que lhe endereçavam palavras ásperas a ponto das pessoas não mais repararem nele. Ingressou na universidade e ali, pela primeira vez, as pessoas não se importavam com seu estranho nome e muito menos com o seu mutismo, a ponto dele se sentir um pouco mais a vontade para abrir a boca e conseguir ouvir, vez por outra, a sua própria voz. Mas o mundo de uma universidade não era fácil, e ele tinha que seguir uma rígida rotina de estudos, trabalhos, atividades acadêmicas diversas e mais os estágios num caos-ordeiro que tinha se instalado em sua vida. Passava os dias tão ocupado, tão sem-tempo para falar banalidades que todos falam em corredores de universidade, que logo colocaram seu apelido de Simprônio Calado, do qual ele gostou, pois não era, aquela alcunha, proferida com tons pejorativos pelos seus colegas de curso.
            Simprônio Calado, havia realmente adotado a alcunha como sobrenome, graduou-se com méritos acadêmicos e logo conseguiu ser designado para funções administrativas numa repartição pública. Lá era responsável por toda a burocracia. Ficava, da hora em que chegava até a da saída, isolado, dentro de uma sala, soterrado por um número incalculável de documentos para analisar, de autorizações para assinar, de alvarás para conceder e de uma poção de outras coisas rotineiras de seu trabalho. Mas apesar de sempre igual e cansativa rotina, ele, ali, se sentia feliz como jamais estivera. Aquelas palavras, termos estranhos, escritos tão pomposos, eram como música para seus olhos, e ele logo incorporou-as a seu “dicionário de palavras estranhas”. Por vezes, ele não as entendia totalmente, mas ficava tão fascinado por ela que se negava a assinar uma autorização sendo pedida via tão belas e polidas palavras, o que acabou por lhe gerar algumas advertências e ser, depois, obrigado a corrigir os erros cometidos. Mesmo com a revolta que lhe consumia nesses momentos, respirava fundo quando via aqueles documentos novamente sobre a sua mesa, tendo sido anexado um bilhete, escrito com caneta vermelha, um gentil bilhete de seu superior pedindo para que ele relesse com mais atenção os documentos, revisse o que havia assinasse e, após isso, fosse entrega-lo nas mãos dele. Quando isso acontecia, ele, mesmo sentindo que cortava em sua própria carne, refazia o trabalho, negava a autorização, e se dirigia por aquele longo, estreito e úmido corredor até a sala do chefe. Batia duas ou três vezes na porta, e sempre ouvia, ao abrir uma brecha na porta, um “espere aí fora, que daqui a pouco lhe chamo. Estou ocupando, numa ligação importante com um secretário!”, e ele fechava a porta delicadamente e esperava, sentado num banco duro de madeira, que seu chefe terminasse a ligação. Exercitava a tolerância e paciência, pois, por vezes, essas ligações duravam horas, e só quando seu chefe soltava um sonoro suspiro, sabia que em breve seria chamado e receberia o sermão a que estava tão acostumado. Eram sempre as mesmas palavras duras, embora ditas de forma educada, lhe chamando a atenção para mais um erro naquela semana. “E se eu não tivesse aqui para revisar o seu trabalho, como seria? Já perdi as contas de quantas autorizações equivocadas você assinou nos últimos meses, Simprônio! Por favor, preste mais atenção ao que está lendo antes de assinar um documento, seja lá qual for!”, dizia seu chefe, e depois abaixava a cabeça e ia se deter em outros trabalhos, dando por encerrada aquela reunião.
            Simprônio, sempre que chamado a atenção por algo que ele julgava injusto, tornava-se ainda mais calado, e passava dias inteiros chegando mais cedo e saindo mais tarde do trabalho só para não ter que esbarrar com pessoas e proferir um “bom dia!” ou um “boa noite e até amanhã”, preferindo passar os dias entretido na leitura de documentos diversos escritos com tão belas e incomuns palavras. Mas de tanto errar, assinando o que não deveria assinar, acabou sendo designado para uma outra função dentro da repartição, pois seu chefe já havia cansado de lhe chamar a atenção. Foi com um sentimento de pesar que deixou para trás aquela mesa, vendo que ainda havia sobre ela tantos e tantos documentos escritos tão magistralmente que deixara de ler, tantas e tantas palavras que não lhe fora permitido tomar para si e incorporar ao seu já tão vasto vocabulário. No entanto, apesar dos pesares, foi com o desejo de superação e imensa satisfação que assumiu a nova função: agora seria responsável por toda a correspondência inter-repartições.
            Passava ininterruptas horas daqueles longos dias lendo aquelas cartas tão insossas e impessoais que sequer lhe despertavam qualquer interesse quando ele chegava ao trabalho e as via empilhadas sobre o seu birô. Apenas respirava fundo duas ou três vezes, com saudade dos tempos passados no setor anterior, em que entre tantos documentos, encontrava um ou outro que lhe tirava lágrimas dos olhos e lhe deixava com a respiração presa ao lê-los. Por vezes era obrigado a escrever, também, algumas cartas para outras repartições, e a reciprocidade nas palavras que deixava as marcas no papel era a mesma: sempre palavras insossas e impessoais.
            Por vezes, seus dias eram tão sem-sentido, tão sem-gosto, que ele tinha vontade de largar tudo e ir embora. Mas ir embora pra onde?, ele pensava. Ir fazer o quê? Trabalhar com o quê?, se perguntava. E continuava a seguir seus dias como sempre os seguira: impassível, sem reclamar, sem se mover para frente nem para trás, apenas se deixando levar pela maré. Aquele, entendia Simprônio, era um momento de superação em sua vida, e sentiu certo alívio e gratidão por tudo pelo que estava passando.
            Um dia chegou mais cedo ao trabalho e ao abrir sua sala, que viu aquela enorme pilha de correspondências, respirou, como sempre, duas ou três vezes. Fechou os olhos e só quando se despiu da impaciência que vinha se avolumando em seu peito nas últimas semanas, foi que se sentou e começou a trabalhar.
            Algo naquela pilha de cartas não estava certo. Estavam, todas organizadas como sempre estavam, e salvo o fato de talvez haver uma quantidade um pouco menor de cartas do que no dia anterior, tudo parecia em ordem, como sempre estivera. Foi então que reparou, bem no meio daquela pilha de correspondências, um envelope diferente. Não daqueles brancos, cinza ou pardo característico, mas de um tom de cor incomum: rosa! Ele, em sua pressa para pegar aquela misteriosa carta, derrubou a pilha com todas as outras bem na hora em que ia passando em frente a sua sala um colega de trabalho.
            - Credo, Simprônio! Parece que acabou de receber uma carta escrita pelo próprio presidente dos Estados Unidos! – falou, e saiu rindo da própria piada.
            Simprônio não ouviu o que o outro dissera. Estava mais ocupado procurando a carta cor-de-rosa que tinha se perdido. Ficou agachado, com as mãos se batendo uma na outra na sua pressa de encontrar o tesouro encontrado-perdido. Passava as mãos ora na cabeça, numa tentativa de retomar a calma, ora nos olhos, como que para acordar, perguntando-se se seus olhos por um acaso não tinham lhe enganado tão poucos minutos antes. Mas não. Seus olhos não tinham lhe enganado. Lá estava ela, a carta, soterrada entre o peso morto de tantas outras. Ele a pegou sofregamente como um náufrago apanha o primeiro pedaço de madeira flutuante que vê como única forma de salvação. Esperou a respiração e os batimentos cardíacos voltarem ao normal, para só então se levantar e lê-la.
            Ajeitou de forma desajeitada as correspondências comuns sobre sua mesa e começou a andar de um lado para o outro pela sala, segurando firme mas com delicadeza a precisa carta, e só quando se sentiu perfeitamente de posses de suas faculdades, foi que parou e a olhou contra a luz, para que, ao abrir o envelope, não rasgar junto o precioso tesouro. Ouviu o suave chiado-grito de dor do envelope enquanto era rasgado e quando retirou de seu seio a preciosidade que ele guardava, respirou fundo antes de mergulhar na leitura.
            Era uma carta comum, escrita em termos comuns, com uma finalidade comum, mas que, para os olhos de Simprônio, era uma carta única, que só ele conseguia identificar o clamor que existia por trás daquelas palavras contidas, pois eram palavras em formas e sentidos que ele mesmo escreveria. Seu conteúdo era o mesmo daquelas todas cartas que jaziam ali, na sua mesa, mas havia algo ímpar nela. Leu-a duas ou três vezes, saboreando cada palavra, a forma como eram tecidas as frases, e só quando apreendeu sua forma e belas palavras, foi que atendeu para o nome e assinatura da remetente. Era um nome belo, tão incomum quanto Simprônio. Uma lágrima escapou de seu olho e mergulhou naquela carta, manchando-a no canto em que se espatifou. Simprônio se jogou na cadeira, abraçado a carta, e assim ficou durante todo o dia. Releu-a um sem-número de vezes, e só quando já a havia decorado vírgula por vírgula, foi que a guardou delicadamente no bolso de sua camisa e, pela primeira vez em anos, saiu do trabalho antes do fim do expediente, sem ao menos atentar para o fato de que não havia aberto uma única outra correspondência naquele dia.
            Dormiu e acordou pensando naquela carta, e ao chegar ao trabalho no dia seguinte, houve um impasse sobre a melhor maneira de escrever uma resposta, profissional/polida. Escreveu uma carta-resposta, mas esta lhe pareceu muito insossa, escrita em termos idênticos aos que encontrava naquelas cartas que estavam sobre a sua mesa; escreveu uma outra, que lhe pareceu excessivamente impessoal; escreveu uma terceira, que lhe soou excessivamente pessoal. Aos poucos, no cesto ao lado de sua mesa, havia um monte de papel amassado. Ele passava vigorosamente as mãos na cabeça, sem saber como e o que escrever.
            Passou o dia inteiro tentando se distrair, lendo e escrevendo as mesmas cartas de todos os dias, e por um momento, entretido como estava no trabalho, se esqueceu, realmente, da carta que tinha guardado na gaveta de sua mesa, e só quando viu tinha finalizado todo o trabalho daquele dia e posto em dia o do anterior, que deixou as mãos caírem ao longo do corpo, que bateu os olhos na gaveta fechada, que se deu conta de que tinha que dar uma resposta àquela carta. Pegou uma pilha de papeis em branco e iniciou uma série de cartas-resposta, mas não se deu satisfeito com o resultado de nenhuma delas, e quando todos já tinham ido embora da repartição, que ele se deu conta de que estava sozinho ali, de que não havia nos corredores o som de um único passo, que se deu conta de que teria que ir embora, novamente, sem conseguir escrever linha alguma que lhe satisfizesse.
            Voltou para casa cabisbaixo, levando consigo, colada ao peito, no bolso da camisa, a carta que esperava ansiosamente por uma resposta.
            Durante todo o final de semana que se seguiu ficou trancado no quarto, tendo à sua frente folhas e mais folhas de papel em branco, esperando para serem marcadas com a ponta cirúrgica de sua caneta, e, ao lado, a carta, à qual ele recorria a cada vez que escrevia uma palavra. No final da tarde do domingo, ele, finalmente, se deu por satisfeito com a carta-resposta que escrevera, em termos polidos, de forma direta e profissional, como a sua posição pedia, mas repleto de inversões sintáticas e de termos minuciosamente escolhidos, que só uma pessoa como ele e como aquela que tinha lhe escrito aquela carta, seriam capazes de perceber.
            Na segunda-feira, a primeira coisa que fez ao chegar ao trabalho, foi pôr a carta que com tanto esmero escreveu num envelope especial, de uma cor diferente aos que a repartição dispunha, e despachou a correspondência. Mal a despachou, já ficou esperando, impaciente, pela resposta. Esperava pela resposta da mesma forma que o solo espera que uma gota de chuva caia do sol após um longo verão e lhe sacie a sede.
            Passaram-se dias inteiros sem que nada de diferente acontecesse. Sempre chegava ao trabalho mais cedo, para receber ele mesmo as correspondências do dia, e sempre via os mesmos tão-iguais envelopes, com as mesmas cartas, escritas da mesma maneira, com o mesmo vocabulário e pelos mesmos remetentes. Já tinha até perdido as esperanças devido àquela espera-agonia sem-fim, quando, no final da tarde da sexta-feira, chegou uma correspondência atrasada, e o funcionário que a entregou pediu desculpas, alegando que tinha ficado perdida, confundida com outros tipos de correspondência, uma vez que as cartas oficiais, trocadas inter-repartições, nunca eram remetidas naquele tipo de envelope! Simprônio não lhe deu ouvido e arrancou das mãos sujas do outro aquele precioso tesouro.
            Em seu afã de ler a carta, o fez com tanta pressa que não apreendeu uma única palavra de tudo que lera. Balançou a cabeça de um lado pro outro a fim de poder se concentrar, e só então, quando se julgava de posse de suas faculdades mentais, foi que a leu com calma, palavra por palavra, vírgula por vírgula. Seu coração, ele sentia, batia em uníssono ao da pessoa que escrevera aquela tão bela carta, tão repleta de sutis e belas incomuns palavras, tão repleta de inversões sintáticas, tão esmeradamente bem escrita!
            Saiu do trabalho como quem sai a andar nas nuvens e passou o final de semana inteiro a esculpir, letra por letra, uma segunda carta. Em sua empolgação, chegou a pensar em escrevê-la num antigo pergaminho que tinha, mas achou que seria um exagero, pelo menos naquele momento.
            Começaram, nas semanas seguintes, a trocar uma infinidade de cartas, todas escritas com a mesma minúcia, com as palavras escolhidas uma a uma. Mal Simprônio despachava a sua correspondência, já começava a viver a impaciência da espera pelo recebimento da resposta, e quando se passavam dois ou três dias sem ver na pilha de cartas um envelope de cor diferente, já começava a se angustiar. Havia momentos em que de tão alvoroçado que estava, mal conseguia encaixar uma palavra a que só ela, ao receber e ler a carta, poderia captar o verdadeiro sentido. Mas ele tinha persistência, e com muita paciência, tecia, no meio das frases e palavras insossas, alguma saborosa e repleta dos sentimentos que sentia naquele momento.
            Algo novo, inteiramente diferente, nascia e crescia no peito de Simprônio, uma palavra que ele já tinha ouvido, mas há muito tempo, e que não conhecia o verdadeiro sentido, mas agora, com aquelas cartas, com a angústia, com os medos que sentia, passou a entende-la.
            Ele tomou uma resolução: iria, na manhã seguinte, enviar uma carta não direcionada à repartição, ao departamento, mas à pessoa. Ao despachar a correspondência, sentiu insegurança e medo, uma vez que aquela era a primeira vez que direcionava palavras tão pessoais para uma mulher.
            A resposta demorou a vir e ele ficou noites inteiras sem dormir, chegando ao trabalho, na manhã seguinte, com olheiras profundas. Fazia seu trabalho de maneira distraída, mas o seu trabalho era tão pouco relevante diante dos outros da repartição, que seus erros sequer foram notados.
            A carta-resposta veio no momento de maior angústia de Simprônio, que, ao recebe-la, estava tão atarantado que por pouco não a rasgou no meio e acabou amassando-a inteira. Leu-a de um fôlego só e quando leu o último ponto, uma sutil e fina lágrima escapou do canto de seu olho e um sorriso se abriu em sua face.
            Começaram, os dois, a trocar longas cartas em que cada um podia ser a si mesmo, sem preocupações com as linguagens insossas e impessoais das correspondências oficiais das repartições públicas. Combinaram a enviar, agora, cartas um para o endereço do outro, e a cada dois ou três dias, sempre que chegava a casa, Simprônio, ao abrir sua caixa de correspondência, onde antes só chegavam os boletos de suas contas a pagar, encontrava uma carta selada num envelope colorido e perfumado.
            As cartas começaram a ficar ainda mais pessoais e as palavras que ela emprestava e dava e que ele igualmente retribuía, passaram a ser ainda mais sérias e ela, certa vez, escreveu uma carta que continha uma única frase/pergunta, feita de forma clara e objetiva: “vamos nos encontrar?”. Simprônio não soube o que nem como responder. Acostumado a uma linguagem de palavras incomuns e inversões na ordem dos termos da oração, não conseguia emitir uma resposta de forma tão direta quanto a pergunta exigia.
            Ficou doente e pôs um atestado para poder se afastar por uns dias das atividades profissionais. Não tinha a menor condição de sair de casa e de pensar no que quer que fosse. Tomou um sumiço na vida por algum tempo, meditando sobre como responder aquela pergunta que mexera tanto com o seu ser. Foi então que ele decidiu deixar de lado a linguagem pomposa, os termos pernósticos e os jargões prototípicos de sua forma de se expressar e foi direto.
            Trocaram, ainda, mais algumas cartas antes de combinarem o encontro, e em cada carta, apesar de retomarem a suas maneiras particulares de conversar, havia expressa, em cada palavra, uma emoção nova para cada um deles, com a qual nenhum dos dois estava acostumado a lidar.
            Marcaram, finalmente, de se encontrar. No dia, tanto Simprônio Calado, que havia se tornado surpreendentemente falantes nas últimas semanas, quando ela, estavam agitados, e quando se viram, se reconheceram imediatamente. Ambos ficaram quietos, um olhando para o outro. Haviam sido companheiros de sala de aula durante toda a vida escolar, moravam no mesmo bairro, em ruas bem próximas, mas por serem fechados, cada um em seu próprio mundo, nunca tinham dedicado um olhar um para o outro. Eram como que os excluídos da sala, os de nomes estranhos, os sem-amigos, e agora estavam ali, um de frente para o outro, sorrindo. Simprônio abriu os braços e ela os dela, e ambos não precisaram falar nada, nem uma palavra desconhecida, pomposa, nenhuma simples e direta.