segunda-feira, 31 de outubro de 2011

A Promessa

O homem observava, lá do alto, o abismo que se descortinava a seus pés. Sentia o vento forte bater em seu rosto, como que o convidando para um salto, para que desse apenas mais um passo e pudesse mergulhar nos braços de uma eternidade. Fechou os olhos e deixou-se tomar pelo vazio, pela paz e pelo silêncio de tudo ao seu redor. Respirava devagar, sentindo o ar inflar, pouco a pouco, os seus pulmões. Sentia o bater de seu coração, tuntum, tuntum, ora lento e ora acelerado.
            Estava triste, como jamais se sentira, e fora até ali para encontrar o nada e encontra-se consigo, mas tudo com que acabou se deparando foi com o vazio. Esperava encontrar respostas, mas agora estava cara a cara com o silêncio que nada respondia sobre nada. Vivia, naquele momento, uma mescla de conflitantes sentimentos em sue peito. Fechava os olhos e abria os ouvidos, mas nada ouvia; abria os olhos e fechava os ouvidos, mas nada via. Sua única companhia era o silêncio, sua sombra e suas incertezas. Esperava, mas o quê?, nem mesmo ele sabia.
            Revivia os momentos sofridos recentes e a dor voltava a lhe afligir. Seu peito doía, a respiração ficava pesada e lágrimas lhe vinham aos olhos. Uma lágrima, num mergulho suicida, escorreu pelo seu rosto e foi carregada pelo vento, sendo levada lá para baixo, para o fundo do abismo. Ajoelhou-se no chão de pedras duras e chorou doloridas lágrimas, que regaram o chão, de brotou uma pequenina flor pálida como o último sorriso, que ela lhe deu; justamente o último sorriso antes de seu pedido de desculpas.
            - Mas você prometeu – ele havia dito.
            - Há promessas que não podemos cumprir, por mais que o desejemos – ela havia respondido. Depois, o silêncio.
            Ela estendeu a mão, esperando que ele a pegasse – o seu último gesto antes do sorriso sem brilho, apenas com os lábios a esboçar o que pretendia ser um sorriso, e antes de falar a última palavra – , mas ele permaneceu imóvel, entre o desejo de abraçá-la, de segurá-la, impedindo-a que se fosse e o deixasse ali, sozinho naquele mundo.
            - Desculpe – ela falou, e fechou os olhos. A sua mão, que continuava estendida, caiu sobre seu peito.
            - Não, não, não e não... você prometeu que iríamos ficar para sempre juntos; você prometeu! – berrava ela, agora abraçado ao corpo sem vida.
            Agora estava ali, relembrando, cobrando a promessa que haviam feito há tantos anos ao mesmo tempo em que aceitava o seu pedido de desculpas.
            - Por que você se foi? – perguntava ele, esperando que o vento levasse a pergunta e lhe trouxesse uma resposta. Bastava-lhe uma resposta, uma única palavra, para lhe acalmar a alma e lhe trazer alguma paz. Mas nenhuma resposta vinha trazida pelo vento.
            A sensação de solidão lhe tomou por inteiro e ele sofreu, como jamais havia sofrido. A dor era tamanha que ele sentiu todas as suas forças lhe escapando, como as lágrimas que escorriam pelo seu rosto e caíam a seus pés.
            Não aguentava aquela dor, não podia suportá-la sozinho e, com as forças que ainda lhe restavam, gritou. Em suas palavras, chamava por ela. Mas ela permanecia calada.
            Abriu os olhos, e mesmo com a visão turva por conta das lágrimas, pôde ver o vazio a sua frente e o abismo a seus pés. Mesmo sem conseguir se equilibrar em suas próprias pernas, se pôs de pé.
            Inflou o peito e gritou:
            - Você prometeu que iríamos ficar juntos para sempre!
            Sentiu, então, o vento a lhe acariciar o rosto. Era um toque suave, como o toque dela, com dedos delicados. Com os olhos fechados, ele se deixou tocar pelo vento, por ela, que o atraía suavemente para seus braços, para dar um passo, para dar um mergulho e pudessem cumprir a promessa de estarem para sempre juntos.

domingo, 23 de outubro de 2011

O Último Livreiro

Aquela era uma livraria antiga, a primeira a abrir as portas naquela rua. Era administrada pela mesma família desde a sua abertura, um negócio de família, onde os filhos, desde cedo, brincavam por entre as prateleiras de livros e até sentavam no colo de um ou outro cliente. Depois, ainda criança, quando já sabiam ler e escrever começavam no ofício de guardador de livros, organizado-os em ordem alfabética nas prateleiras, catalogando-os num velho fichário idêntico ao primeiro fichário da livraria.
            A livraria continuava idêntica, na estrutura, a que abriu as portas pela primeira vez nos idos anos do início do século. Só foram incluídas algumas estantes novas, duas mesas para exposição dos livros mais procurados pelos clientes, uma caixa-registradora nova e algumas poltronas, para que os clientes pudessem se sentar e ler algumas páginas de um ou outro livro antes de decidir comprá-lo. Nas paredes estavam algumas fotos antigas, onde ficaram guardados os momentos numa folha já amarelada pelo tempo, os primeiros e mais especiais clientes, um ou outro escritor que tinha vindo à cidade e aproveitou a ocasião para conhecer a tão famosa livraria, e tinha realizado uma tarde ou noite de autógrafos, para promover seu novo livro, e fotos de todos os que estiveram à frente de negócio.
            Aquela que estava à frente do negócio já era a quarta geração da família, e a quinta, em breve, iria tomar seu lugar. Cada geração ficava, em média, o tempo necessário, treinando, ensinando, apresentando os clientes ao que tomaria o negócio. Quando via-se que esta estava pronta, se retirava gradualmente e ia gozar de sua aposentadoria, lendo todos os livros que quisesse.
            Todos os dias, as portas eram abertas pontualmente às 8 horas, mas o livreiro chegava antes, segundo ele, para ter a livraria só para si antes da entrada do primeiro cliente. Às vezes ia à banca, do outro lado da rua, trocava algumas palavras corteses com o jornaleiro, que já estava instalado ali há 20 anos, para comprar seu jornal e, vez por outra, alguma revista interessante.
            Naquele dia foi o jornaleiro quem puxou conversa:
            - Será que esse projeto da prefeitura, para revitalizar essa rua, vai dar certo? Será que nós seremos muito afetados? – perguntou ele.
            O livreiro, que só estava sabendo por alto do assunto, nada pôde falar.
            - Eu fico com um certo receio, pois já estou aqui há tantos anos, e temo ser expulso, tendo que ir abrir minha banca noutro local, longe de meus tão antigos clientes.
            Ficaram trocando palavras sobre aquele assunto que tanto afligia ao jornaleiro, conjeturando o futuro incerto.
            A livraria foi aberta quase que na mesma hora que o primeiro cliente abriu a porta, e o livreiro não teve tempo de tê-la só para si por alguns minutos, não poder respirá-la e andar a toda por entre as estantes, tocar as capas dos livros, abri-los à toa numa página qualquer e lê-los.
            Não eram muitos e tão numerosos os clientes que entravam por aquela porta, mas eram clientes antigos, gerações de famílias que se habituaram a frequentar aquele ambiente tão acolhedor, para comprar livros ou, por vezes até, só para ter uma conversa prazerosa com o livreiro, para pegar, com ele, uma sugestão para a próxima leitura.
            Era um lugar silencioso, mas de um silêncio acolhedor, reconfortante, que transmitia paz e segurança. Tinha-se a impressão, ao entrar por aquela porta, que estava-se voltando alguns anos no tempo, para um tempo em que o tempo não interesse, tudo o que interessa são os livros.
            À tarde, depois do almoço, o filho do livreiro chegava, vindo da escola, e, ainda fardado, jogava sua mochila num canto atrás do balcão e começava sua jornada de trabalho, perguntava ao pai o que tinha chegado de novidade, quem tinha comprado o quê, pegava o fichário e ia fazer suas anotações. Em seguida, ia andar pela livraria, retirava livros das estantes, sentia-os, atendia um ou outro cliente e só ia para casa à noite, junto com o pai, quando a livraria fechava.
            O pai olhava orgulhoso para o filho, que iria substituí-lo logo, assim que terminasse os estudos. O jovem era apaixonado por livros e se não fosse ainda tão novo, já estaria á frente do negócio e o pai poderia estar se aposentando. Mas ainda faltavam alguns anos para isso acontecer, e o pai podia usufruir da livraria para si, enquanto não a passava para o filho.
            Dia após dia, a mesma rotina, os mesmos clientes, conversas parecidas, indicações de leituras, tudo na mais perfeita paz, até que num final da tarde, quando já se preparava para fechar a livraria, o jornaleiro entrou, esbaforido, com um papel na mão, brandindo-o para que o livreiro o visse. Este o leu, mas na pressa do outro, não entendeu o motivo de tamanha agitação.
            - Você não percebe? Com esse projeto maluco da prefeitura, estão solicitando que eu mude a minha banca para outro lugar. Em outras palavras: estou sendo expulso de minha casa – e começou a soluçar. O livreiro não sabia como reagir nem o que falar para consolar o outro. Se o contrário estivesse acontecendo, talvez ele até se sentisse do mesmo jeito. Aquela livraria, para ele, era muito mais do que um negócio de família, era a sua vida, e aquele ambiente era a sua casa.
            Logo as notícias se espalharam e vários comerciantes começaram a temer serem convocados e solicitados pela prefeitura para se mudarem, para que, no lugar de uma loja, fosse passar uma rua ou plantada uma árvore, instalado um banco de praça ou o que se passasse na cabeça do urbanista à frente daquele projeto.
            Dias se passaram e nada aconteceu. Havia, no ar, um clima de expectativa. Mas, com o passar dos dias, o assunto logo foi esquecido, até que numa manhã, quando o livreiro, concentrado em seu trabalho, tendo terminado de atender a um cliente, escutou barulho de pessoas falando, tentando conter um alguém, que chorava descontroladamente sentado na calçada em frente à livraria. Saiu para ver do que se tratava, e encontrou o seu amigo, jornaleiro, aos prantos.
            - Eles estão retirando tudo... encaixotando tudo... Vão demolir a minha casa – dizia ele, com a voz embargada pelas lágrimas. Só então, ao ouvir aquilo, o livreiro olhou para o outro lado da rua e viu funcionários da prefeitura encaixotando todas as revistas. Viu, também, máquinas da prefeitura, que seriam utilizadas na demolição da banca.
            Não queria, mas não pôde deixar de olhar para o horror que se descortinava perante seus olhos. Tendo acabado de encaixotar tudo do jornaleiro e jogar dentro de um caminhão, homens, munidos de ferramentas de demolição, começaram a quebrar as paredes da banca sem nenhum dó para os rogos do jornaleiro, sentado na calçada, chorando como uma criança. A banca, que fora construída ao longo de tantos anos, viera abaixo em poucos minutos, e uma história estava sendo apagada, como se nunca tivesse existido.
            Na livraria, o livreiro não sabia o que pensar de tudo aquilo. Seu filho, que tinha acabado de chegar da escola e começava o seu ritual diário, perguntava ao pai o que estava acontecendo, ao que ele nada respondeu. Disse apenas que precisava fechar a livraria mais cedo, a primeira vez em muitos anos, e ir para casa.
            Mal as obras tiveram início, a especulação começou. Vários comerciantes da rua já estavam recebendo propostas para vender seus pontos para grandes empresas, que queriam abrir seus negócios na que seria a principal rua de comércio de toda a cidade. A loja de tecidos, que era administrada por uma mesma família há anos, fora vendida, assim como a sapataria, a joalheria e várias e vários outras lojas foram sendo fechadas para dar lugar a outras, maiores e mais modernas. Somente a livraria parecia incólume, alheia a tudo que se passava na vizinhança.
Os clientes não deixaram de frequentar a livraria, embora estivessem aparecendo com menos frequência, e ficavam cada vez por menos tempo perdidos numa agradável conversa com o livreiro.
Num final de tarde, quando já se preparava para fechar a livraria, num dia em que seu filho não viera trabalhar por que teria, no dia seguinte uma importante prova e tinha que estudar, a porta foi aberta de supetão e por ela entrou um homem a quem o livreiro nunca tinha visto. Um cliente novo, por certo, ele pensou. O homem não se dirigiu diretamente a ele, pelo contrário, parecia muito mais interessado em analisar cada detalhe, cada canto da livraria. Olhava as estantes, as paredes, contava as distâncias, mas não pôs, sequer uma vez, os olhos nos livros.
- Posso ajudar, senhor? Está, por um acaso, interessado em algum livro em específico? – perguntou o livreiro.
Só quando ouviu um alguém lhe dirigindo a palavra foi que o homem se deu conta de que havia uma pessoa naquela livraria.
- Oi. O senhor é o dono dessa livraria?
- Sou, sim. O senhor é...?
- Eu estou interessado em comprar essa livraria. Já comprei algumas lojas, as suas vizinhas inclusive, e pretendo abrir uma grande loja nessa rua.
O livreiro demorou o que lhe pareceu uma eternidade para entender o que o outro tinha falado. Jamais havia se passado por sua cabeça a mais remota ideia de fechar ou vender a livraria. O que diria seu pai, seu avô e seu bisavô? O que seu filho passaria a pensar a seu respeito?
- Essa livraria não está à venda – falou, em tom de voz baixo, mas com convicção.
- Tudo pode estar à venda, amigo, basta você me dizer qual seu preço, que eu pago – disse o homem, com mais convicção ainda.
- Essa livraria não – disse. Saiu de trás do balcão e, gentilmente, conduziu o homem até a saída.
- Eu voltarei dentro de alguns dias, para ver se o senhor já mudou de ideia – o homem ainda disse antes de ter a porta fechada às suas costas.
O livreiro se jogou numa poltrona e lá ficou sentado por longos minutos. Não percebeu a entrada de um ou outro cliente, que saiu sem comprar nada. Estava abalado. Havia falado com convicção de algo que não iria acontecer, a venda da livraria, mas, mesmo assim, estava abalado. Fechou, pela segunda vez em um mês, a livraria mais cedo e foi para casa.
As obras em todas as lojas da rua começaram. Era muito barulho, poeira, operários andando de um lado para o outro com suas ferramentas sobre os ombros e pouquíssimos clientes, freqüentando as pouquíssimas lojas que ainda estavam com as portas abertas. As lojas vizinhas à livraria tinham sido demolidas e, em seus lugares fora construída uma Megaloja vendendo todo tipo de artigo, inclusive livros.
Aos poucos, os poucos clientes que ainda continuavam frequentando a livraria, deixaram de aparecer, e livraria perdeu parte de sua vida, do motivo de sua existência. Sem clientes, não há leitores, sem leitores, não há livraria.
Pai e filho ficavam a tarde inteira juntos, sozinhos na livraria, arrumando os livros mil e uma vezes nas estantes, sem tocar, nunca, no assunto do que estava acontecendo ao redor.
A livraria, pela primeira vez desde a sua abertura, começou a dar prejuízo, muito provocado pela falta de clientes, e o livreiro, pela primeira vez desde que tomou a frente do negócio, viu-se mergulhado numa situação em que não sabia como lidar. Sentia-se perdido, sem saber como agir, sem ter a quem recorrer para lhe salvar daquela situação.
Um dia, quando estava para fechar a livraria, pediu para o filho ir para casa, pois ele precisava ficar um pouco a sós entre os livros. Começou a andar de um lado para outro, tocando os livros, conversando com eles, olhando para as fotografias emolduradas, penduradas nas paredes. Fez inúmeras perguntas aos que já estiveram em seu lugar, à frente da livraria, mas que, diante daquela situação, não tinham nada a lhe responder. Chorou sozinho e seus soluços ecoaram nas estantes, em todos os cantos da livraria. Dormiu, naquela noite, no chão da livraria.
Na manhã seguinte, ao abrir os olhos, demorou um pouco para entender onde estava, mas logo se lembrou das lágrimas que havia derramado na noite anterior. Chorou novamente dolorosas lágrimas, que escorriam pelo seu rosto e acabavam pingando no chão da livraria, e logo formaram uma pequena poça.
Sentia-se inteiramente perdido. Se pudesse voltar no tempo, teria, na época em que seu pai lhe passou a livraria, dito que não poderia tomar a frente do negócio, pois não seria capaz de lidar com a situação que se apresentava, agora, para ele, no presente. Se pudesse adiantar o tempo, se veria no futuro e contemplaria a vida que o filho não teria. Pediu desculpas para os dois, para seu pai e para seu filho, e trôpego, começou a andar pela livraria, encaixotando os livros cuidadosamente, um a um.
Perto do final daquela manhã, a porta da livraria se abriu, dando passagem ao empresário, que sorriu ante ao que via.
- Vi que mudou de ideia – disse ele, com um sorriso estampado no rosto.
O livreiro nada respondeu, continuando a guardar os livros. Deixou por último as fotografias.
O empresário assistia a tudo isso calado, sorrindo consigo mesmo, sem perceber a dor que afligira ao outro.
Quando o livreiro terminou de guardar tudo, justo na hora em que seu filho chegara, olhou para o outro, que se mantivera afastado, num canto, só observando o tempo todo e lhe disse que tinha acabado. O empresário, então, se levantou, fez um chegue e o entregou ao livreiro.
- Você fez um excelente negócio – disse ele.
O livreiro nada falou. Dobrou o cheque, guardou-o no bolso e foi até o filho, que estava parado, no meio da livraria, entre as estantes vazias, e o abraçou.
- Desculpe, filho. Desculpe-me, por favor – e chorou lágrimas silenciosas no ombro dele.
O empresário assistiu a tudo insensível, sem qualquer vestígio de sorriso no rosto.
Saíram, então, da livraria, e coube ao livreiro fechar, pela última vez, a porta, entregando as chaves ao empresário.
Pai e filho caminharam abraçados, cada um perdido em seus próprios pensamentos, em sua imensa tristeza.

domingo, 16 de outubro de 2011

Uma folha de papel em branco e uma caneta

Todos em casa dormiam, mas ele estava acordado. Há meses vinha pensando naquilo, mas não sabia como fazê-lo nem qual o momento certo. Agora estava no mais absoluto silêncio, ouvindo os sons dos sonhos de cada pessoa da sua família, a respiração alta acelerada de um, o ronco de outro e o silêncio de sua mãe. Justamente sua mãe seria a pessoa que mais sentiria a sua falta. Iria sofrer no início, vendo-o em todos os cantos, sem saber para onde ele tinha ido, até que pouco a pouco se acostumaria com a sua ausência, mas jamais iria esquecê-lo, pois as mães nunca esquecem. Seu pai, perante todos, iria se mostrar forte e quem sabe até passaria a admirá-lo por seu ato e falar nisso para os amigos, mas no fundo também estaria despedaçado. Suas irmãs, uma sentiria a sua falta, mas a outra ficaria até feliz, pois poderia insistir com sua mãe para ficar com o quarto dele, já que ele não estava mais ali.
            Ninguém iria saber de seu paradeiro, ninguém sequer sabia que ele nutria aquele desejo de ir embora, pois ele jamais o confidenciou a ninguém, nem mesmo ao melhor amigo ou ao espelho. Nenhuma palavra à ninguém. Sofreu por longas semanas e meses com aquilo guardado no peito, com aquele plano impensado. Sentia-se inseguro por muitas vezes até, mas ora parecia tão determinado... Mas agora sentia, sabia que havia chegado a hora. Daria o primeiro passo sozinho ou correria para os braços dos pais. Pensou até em bater à porta do quarto deles e pediria para se deitar e dormir entre eles, como fazia quando era criança. Agora se sentia tão indefeso e confuso quanto uma criança, precisando de um amparo. Mas agora ele não tinha em quem se amparar, se realmente fosse fazer aquilo, dar aquele tão longo e difícil passo.
            Aquele silêncio opressivo àquela hora da noite lhe deixava em dúvida. Estava, já, imóvel, sentado à mesa, há horas. Seus olhos pesados, queriam se fechar; sentia um enorme peso sobre seus ombros, que faziam com que ele se curvasse. Talvez fosse aquele o peso da responsabilidade, da tão difícil decisão que tinha de tomar naquele momento: voltar para seu quarto e dormir, como se nada tivesse acontecido, e passar o resto da vida se sentindo um fracassado, um covarde, ou dar aquele passo rumo ao imprevisível.
            Levantou-se, sentindo todos os músculos de seu corpo doerem e começou a andar de um lado para o outro. Foi até o quarto de suas irmãs e as viu dormindo, cada uma em sua cama. Se fosse embora sentiria falta delas. Quem seria o “irmão mais velho” se ele fosse embora? Fechou delicadamente a porta do quarto, para não acordá-las. Foi até o quarto dos pais e, da porta, os viu dormindo, cada um de um lado da cama. Uma lágrima dolorosa e silenciosa escapou de seu olho e escorreu por sua face quando os viu.
            Voltou à mesa e se sentou, derramou lágrimas silenciosas e dolorosas. Ficou longos minutos com a respiração entrecortada, tendo cuidado para não fazer qualquer barulho que pudesse acordar alguém. Olhou para a sua mochila no chão, à porta do seu quarto, olhou para a porta de casa, fechada, mas que ele poderia abrir com tanta facilidade. Distava apenas alguns poucos metros daquela porta, mas, para ele, naquele momento, parecia uma distancia tão longa. Se fosse embora, talvez não pudesse mais voltar; se ficasse, talvez nunca mais fosse embora, ficando preso para sempre. Eram dúvidas que lhe atormentavam, que lhe doíam no peito e faziam sua cabeça explodir.
            Tinha uma folha de papel em branco à sua frente e uma caneta na mão. Pensava no que poderia escrever, no que poderia dizer em tão curto espaço. Que palavras diria? Pediria desculpas? Diria que um dia iria voltar? Que sentiria falta de todos? Como expressar tanto, falar tanto e com quem palavras num momento como aquele? Nada que escrevesse, numa simples carta, seria suficiente para expressar tudo o que sentia, tudo o que teria para dizer.
            Suas pernas doíam, seus ombros pesavam, mas ele se levantou. Andou de um lado para outro, sofrendo com as dúvidas e incertezas. Foi até a porta, girou a chave, mas não girou a maçaneta. Ela lhe parecia muito dura e lhe queimava a mão.
            Olhou para trás uma última vez e viu a casa que tanto conhecia, onde podia andar com os olhos fechados sem esbarrar em nada. Sentiria falta da casa, da mãe, do pai, das irmãs e de cada cantinho que lhe trazia lembranças.
            Abriu a porta. Agora era só uma questão de um passo; de um único tão longo e difícil passo, um passo para frente, e nada mais, mas se o desse, não poderia mais voltar atrás. Olhou a porta aberta à sua frente e tudo o que estava deixando para trás. Prendeu a respiração, mergulhando, agora, no desconhecido, no incerto, e deu aquele derradeiro passo. Sentiu um alívio e opressão no peito ao fazer aquilo. Agora não podia voltar atrás, teria que ser sempre em frente.
Assim que o amanhecesse, iriam procurar por ele por todos os cantos da casa, iriam dar mil e um telefonemas, para todos os parentes e seus conhecidos, a fim de saberem algo sobre o seu paradeiro, mas ninguém saberia de nada. A essa altura, ele já estaria longe, onde, nem ele mesmo sabia. A única coisa de concreta que havia deixado para trás, como uma lembrança, foi uma folha de papel em branco e uma caneta.

sábado, 8 de outubro de 2011

Mentiras Sinceras


Por favor, minta para mim. Diga que sempre esteve a me esperar, mesmo nunca tendo pensado em mim; diga que sou único, mesmo eu sendo tão comum; diga que sonha comigo todas as noites, apesar de suas longas e infindáveis noites insones. Diga que ficará comigo por toda uma eternidade, mesmo que esta dure apenas cinco minutos; diga que fomos feitos um para o outro, apesar de nossas enormes diferenças e tão poucas semelhanças. Mas diga, minta, com sinceridade, para que eu possa olhar eu seus olhos e, ao ver o brilho deles, possa me iludir, sentindo-me o homem mais feliz do mundo. A mentira sincera agrada, acalenta a alma, mesmo sendo ela um infortúnio, o único, de um infeliz, que não tem nada, que não tem ninguém, e que precisa de uma única palavra para ter um instante de felicidade na vida, que a faça valer a pena, mesmo que esteja palavra seja uma mentira. Mentira, sim, mas que tenha sido, por uma fração de segundo, uma verdade, se não para quem a conta, pelo menos para quem a escuta, e a ela se agarra com toda a sua força, como se só nela lhe restasse a salvação.
            Um infeliz é como um náufrago no meio de um oceano numa noite de tempestade. Sozinho, ele já não tem esperanças, já não lhe resta motivo algum por que lutar, por que viver. Entrega o que resta de sua vida aos braços do destino, mergulhado naquele imenso oceano de solidão. Mas eis que lhe surge um raio de sol em plena meia-noite, uma esperança, um sentido para sua vida em forma de palavra, de uma única palavra, nem que esta palavra seja uma mentira sincera. Não lhe importa que seja uma mentira, pois, para ele, nesse momento, tudo é esperança.
            Esperança... quem diria que esperança seria, nessas circunstâncias, tão próxima, dependesse tanto de uma mentira...
            Mas a mentira não pode ser em vão. Ela tem que ter um propósito, tem que possuir o seu “q” de sincero. Não pode ser à toa, como uma palavra jogada ao vento, sem o menor cuidado, como se fosse direcionada a qualquer um. A mentira é única, tem uma finalidade, que é a de fazer um alguém feliz, nem que seja por cinco minutos, que lhe serão eternos, nem que seja para fazê-lo único por um instante.
            Pode-se mentir para tudo, desde que seja uma mentira sincera, portanto, minta, por favor, pois a verdade, a dura verdade, por vezes, machuca muito mais do que uma doce mentira.