domingo, 29 de janeiro de 2012

Um homem restituído de sua liberdade

Passado tanto tempo, privado completa e inteiramente de sua liberdade, o homem estava ansioso ante a expectativa de, finalmente, colocar o pé para fora daquela prisão e se ver, enfim, livre.
            Naquela noite, dormiu no chão duro e frio da sela e foi com grande alegria, sentimento este que não sentia há anos, há tanto tempo que já o tinha esquecido, não se lembrando o quão bom é se sentir simplesmente alegre, que viu, pela minúscula janela do alto da sela, os primeiros raios de sol que surgiam no horizonte. Nunca tinha reparado no amanhecer até aquele dia. Para ele, o nascer do sol era como ago mecânico, invariável, que acontece todo dia, e não algo novo, que sinaliza um novo começo, o novo de novo. Ele subiu em sua cama para ver o sol através daquela minúscula janela e só então percebeu o quão pequeno era o seu mundo ali dentro, encarcerado, e quão belo deveria ser o nascer do sol lá fora, no mundo.
            Esperou numa mescla de paciência e impaciência pela hora em que seria chamado. O tempo se arrastava e a cada vez que ouvia passos do lado de fora, no corredor, levantava-se de um salto e ficava junto à porta, segurando as barras de ferro. Mas a cada vez que o guarda passava pela frente da sela, tornava a se sentar, cada vez mais ansioso. Assim passou parte da manhã e quando estava já cansado, quando não esperava mais ser chamado, apareceu um homem, um guarda. Ele mal acreditou em seus ouvidos quando ouviu um alguém chamando seu nome. Levantou-se devagar e deu dois curtos passos para fora, e, ao sair, ainda olhou para a sela onde tinha passado tanto tempo uma última vez.
            Caminhou pelos corredores da prisão seguindo um guarda e sendo escoltado por um outro. Andava calado e de cabeça baixa, ouvindo os sons de seus próprios passos ecoando pelos corredores da prisão e os das pessoas que despertavam.
            Aquele lugar que estava abandonando não lhe despertava qualquer sentimento, mas, mesmo assim, por cada canto que passava, ele olhava uma última vez, como se estivesse se despedindo.
            Já na saída, enquanto a porta que iria lhe restituir a liberdade roubada era aberta, olhou para toda aquela imensa prisão e viu, lá longe, o que imaginou ser sua minúscula sela onde passara tantos anos. Já não se lembrava o dia e ano que entrara ali, e não fazia ideia de que dia e ano era aquele que estava saindo.
            A porta foi aberta e o sol bateu em cheio em seu rosto, lhe cegando momentaneamente. Quando pôde, finalmente, ver o mundo que se descortinava a sua frente, ficou sem ar, sem acreditar em seus próprios olhos. O mundo estava tão mudado e tão vasto, tão diferente de como ele o deixara quando fora preso.
            Deu um passo a frente, incerto, inseguro, rumo à liberdade, ao que havia se desacostumado, ao desconhecido, e ouviu às suas costas a porta da prisão sendo fechada e a de sua nova vida sendo aberta.
            Tropeçando em suas próprias pernas, ele caminhava sem um caminho certo, em qualquer direção. Não sabia para onde ir, agora que estava livre, e não se lembrava mais dos rostos das pessoas que um dia conhecera há tantos anos. Na prisão, estava acostumado ao pequeno mundo, aos mesmos rostos conhecidos dos longos anos do encarceramento, das pessoas com quem dividia as privações, mas agora, no mundo, ele não sabia para onde ir, quem procurar e o que fazer com aquilo a que todos chamavam de liberdade.
            Caminhou em linha reta por um longo tempo e quando suas pernas estavam cansadas parou para descansar. Colocou a mochila com seus poucos pertences no chão e se sentou num banco de praça. Enquanto descansava, percebeu, pela primeira vez, como estava cercado por tantas pessoas. Sorria para cada uma delas, mas não recebia sequer um olhar como resposta. Era como se ele fosse transparente, e ninguém reparava no homem recém-liberto, com a alma em júbilo, ali, parado, louco para conhecer e desfrutar de sua nova vida.
            Cansado de sorrir e sequer ser notado, abaixou a cabeça e soltou o ar que estava preso em seu peito.
            Levantou-se e começou a andar entre as pessoas, sendo apenas mais um na multidão.
            Ficou horas a fio andando de um lado pro outro, sentindo-se cada vez mais só à medida que a multidão se adensava ao seu redor.
            Foi ao centro da cidade, antes tão sua conhecida, e não encontrou ninguém, por mais que visse centenas de pessoas; foi a bairros da periferia e se sentiu tão miserável, privado de coisas que a mais pobre daquelas pessoas tinha: companhia.
            O sol já estava fechando seus olhos quando, parado, o homem olhou para o céu e viu um bando de pássaros num voo rasante. Olhou para a sua frente e viu pessoas, juntas, voltando para casa após um longo e estafante dia de trabalho; viu estudantes voltando da escola em sua algazarra incomodando por onde passavam; viu uma mulher que caminhava sorrindo enquanto falava ao telefone com um alguém que estava a lhe esperar; viu um pai e sua filha; e viu a si mesmo, sozinho com sua sombra alongada a seus pés.
            Sentou-se no chão, olhando o horizonte, até que o sol sumiu, dando lugar a uma lua que brilhava majestosa no céu. Naquele momento, quando viu a lua sobre sua cabeça, sentiu-se como ela: livre, tendo todo o mundo, todo o céu, para vagar eternamente, mas só.
            Antes era um homem privado de sua liberdade, hoje se sentia privado de toda e qualquer companhia. Antes era seu corpo que estava aprisionado, agora era sua alma que clamava por liberdade.
            Sentia como se estivesse sendo engolido por um nevoeiro, que lhe cobria pouco a pouco até não lhe restar mais nada além de sua sensação de falsa liberdade e certeza de uma solidão.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Foi num fim de tarde...

Era fim de tarde e a anciã estava sentada, como sempre fazia àquela hora, vendo o pôr do sol. Sentada em sua cadeira de balanço no canto mais afastado da varanda de sua casa, ela, enquanto contemplava tão rarocomum momento, olhando ao longe, revivia os momentos passados de simples felicidade.
O pôr do sol, para ela, era a hora em que tudo acontecia. Foi num fim de tarde, quando ainda era uma adolescente, que vira o homem de sua vida pela primeira vez, e que só vários meses após aquele primeiro encontro, no exato instante em que o sol de deitava no horizonte, que eles se beijaram pela primeira vez. Foi num fim de tarde em que o sol demorava a se pôr, como que para contemplar a felicidade dela, que se casou, e nove meses depois, quando o sol se pôs, que deu a luz ao primeiro filho, cuja primeira visão foi a da luz do sol de fim de tarde que entrava pela janela entreaberta.
Teve vários filhos, todos nascidos à mesma hora, que levava, quando crianças, para brincar à sombra de uma árvore, para sentirem a brisa vespertina que soprava vinda do oceano e para, no exato instante em que o sol se punha, ficarem em silêncio só pelo prazer de verem o sol fechar os olhos lentamente no horizonte.
Era sempre ao final de cada tarde que ela se sentava para ver o pôr do sol enquanto esperava o marido chegar do trabalho, sempre trazendo presentes para ela e para as crianças, e foi num dia, no único dia naqueles longos anos de felicidade, em que se atrasou, chegando no início da noite, que trouxe consigo a notícia de que estava doente. Os dois choraram juntos, e prometeram um para o outro lutar juntos até o fim, e nunca deixarem um ao outro sozinho, não importa o que acontecesse.
Lutaram, choraram, sorriram e tiveram esperanças, e foi num dia, num fim de tarde, em que tinham esquecido de por que um dia estiveram tristes, que ele se foi, junto com o sol que fechava os olhos para dar lugar a noite. Foi nessa noite de ventos frios em que a nuvem encobriu a lua e as estrelas, que ela chorou sozinha e que soube que nunca estaria a sós, pois ele estaria para sempre com ela e viria visitá-la ao final de cada tarde, e ficariam calados, de mãos dadas, vendo o sol se pôr.
Ele foi enterrado, ao final da tarde seguinte, embaixo de uma árvore na parte alta do cemitério, em cima de um pequeno morro, para que pudesse contemplar, todo dia, o espetáculo que a vida oferecia diariamente a todos que tinham sensibilidade para ver o momento.
Ela voltou calada durante todo o trajeto do cemitério até sua casa, onde se trancou no quarto por vários dias, só abrindo a janela do para ficar junto e segurar a mão de seu marido enquanto contemplava o pôr do sol.
Foi num fim de tarde que recebeu a notícia do filho dizendo que ela ia ser avó, de um outro que tinha arranjado um emprego e outra cidade e de um terceiro que tinha passado no vestibular.
Foi enquanto o sol se punha que uma filha, que ainda muito jovem tinha saído de casa para ganhar a vida, trabalhando numa cidade distante, voltou para que ela conhecesse sua primeira neta. Ela sentou a criança em seu colo, que imediatamente olhou ao longe, para onde o sol se punha, e ficaram as três, mãe, filha e neta, a contemplar a beleza do momento.
Enquanto contemplava o pôr do sol foi que recebeu a notícia da morte trágica de um dos filhos, que ficou sabendo da doença de um irmão e que chorou de saudade dos tempos e das pessoas passadas.
Era em cada fim de tarde, de alegrias e tristezas, de lágrimas e sorrisos, que ela se sentia em paz. Era o silêncio do canto dos pássaros de cada fim de tarde que a reconfortava, que fazia de cada momento eterno, que fazia a vida valer a pena, que ela sentia como que o tempo parar ou passar lentamente, como a luz do sol que vai se apagando pouco a pouco.
Foi naquele fim de tarde em que contemplava o sol como da primeira vez, que viu seu marido se aproximar chorando, e ela o recebeu sorrindo, de braços abertos. Os dois ficaram lado a lado: ela em sua cadeira de balanço e ele de pé, que contemplaram o pôr do sol pela última vez que, quando o sol fechou seus olhos naquele fim de dia, ela também fechou os seus, e ficou para sempre com o brilho eterno do sol em seus olhos.

sábado, 14 de janeiro de 2012

A história das mulheres amaldiçoadas

A primeira lembrança que a menina tinha era a do dia em que sua mãe fora abandonada pelo marido, seu pai. Ela chorava, maldizendo a tudo e a todos pela maldição que fora jogada em sua família, tantos anos antes, em todas as mulheres. Dizia a maldição que nenhuma mulher daquela família seria feliz com homem algum, e assim vinha sendo de geração em geração. Um dia a mulher se julgava a mais feliz do mundo, amava e se sentia amada, e no seguinte sentia um vento frio bater em seu rosto, e sabia que era a maldição vindo à tona, e o homem que lhe fazia tão feliz desaparecia, a abandonando com uma criança pequena nos braços, ou a traía ou tinha sua vida arrancada sem piedade por alguma fatalidade. Algumas mulheres eram felizes, viviam suas vidas sem quaisquer preocupações com a maldição que recaia sobre seus ombros, mas estas, afortunadas, não eram sequer lembradas como pertencentes àquela família. O elo, o que unia as mulheres naquela família, era a maldição.
            A menina lembrava-se do choro da mãe, de suas palavras injuriosas à Deus e ao Diabo, da raiva em seus olhos e de sua indignação. Ela também chorava, com medo, abraçada à irmã mais velha, que a consolava. Não entendeu, pois era apenas uma criança, e mal tinha cinco anos, o que se passava, mas a palavra maldição ficou, desde aquele dia, para sempre gravada em sua memória. Quando pegava no sono, escutava o eco da voz de sua mãe falando na maldição e em sua irmã, mesmo também uma criança, pouco mais velha do que ela, tentando explicar o que era aquilo. Quando ia a escola, que via as meninas de sua sala não a chamando para brincar ou mesmo a evitando, ficava imaginando se era por que era uma suja, por que estava amaldiçoada.
            Cresceu com o estigma de uma amaldiçoada, sempre ouvindo as lamúrias de sua mãe, sempre vendo a raiva e a inveja dela quando via um casal feliz e os amaldiçoava por sua felicidade. Sempre a via rezar, lamentando-se por sua condição. Ouvia histórias, contadas por ela, de sua avó, bisavó, tias e outras parentes distantes, que sempre eram agraciadas, em dado momento de suas vidas, com a infelicidade, em que eram lembradas pela maldição daquela família. Via a sua irmã mais velha se tornar uma moça bela, que chamava a atenção de todos, sejam homens, que a desejavam, sejam mulheres, que a invejavam. Sua irmã, mesmo sabendo tão observada, não olhava, nunca, para ninguém, e sentia medo só de pensar no dia em que olhasse para um alguém e se apaixonasse, pois saberia que, quando isso acontecesse, seria o mais feliz e o mais triste de sua vida.
            Viveu uma vida tranquila, apesar de tudo, e pouco a pouco a ideia da maldição havia sido esquecida. Não mais via sua mãe reclamar ou falar disso. Até na escola, já moça, com seus treze anos, se aproximou de um grupo de meninas, e todas se tornaram amigas inseparáveis. Passavam horas e horas, mesmo durante as aulas, conversando sobre assuntos que meninas-moças dessa idade conversam. No horário de intervalo entre as aulas, iam ao pátio da escola e lá ficavam jogando conversa fora.
            Um dia, quando estava em casa, no quarto, viu quando sua irmã chegou, felicíssima, como ela jamais a vira. Estava radiante, tanto que não conseguia falar o motivo de tudo aquilo. Foi para o quarto e se jogou na cama, abraçando os travesseiros. Nos olhos, um sorriso, um brilho diferente, da mais pura e elevada felicidade humana: a paixão havia lhe arrebatado por inteiro.
            Passou a noite em claro, ouvindo as histórias de sua irmã, de como ele era lindo, de como havia pego sua mão, das palavras que dissera, do sabor de seu beijo e do calor de seu abraço. A irmã era feliz, e a contagiou com essa felicidade. Somente a sua mãe não mostrava contentamento algum, e se mantinha calada.
            Virou uma mulher tendo em sua irmã um grande ídolo. Tinha uma inveja saudável dela, de sua felicidade, ao ver tudo que ela alcançava: sua formatura, seu primeiro emprego, quando foi promovida; seu noivado, todos os preparativos para o casamento, todas as compras para o enxoval.
            Sua irmã, no dia do casamento, estava esplendorosa, e todas as mulheres da família estiveram presentes. Não se sabia se os olhares delas era de inveja e reprovação ou de felicidade e alívio. Foi com grande alívio que ouviram o “sim”, dado pelo noivo, repleto de entusiasmo. Souberam que aquele homem iria fazer daquela mulher, a mulher mais feliz do mundo. Aquele “sim” dos noivos, foi, para a família, como se tivesse sido selado o fim da maldição. Maldição algum poderia atrapalhar aquela felicidade.
            Ninguém da família falou mais em maldição, e as mulheres, todas, se preocuparam apenas em viver suas vidas. Nem todas eram felizes em seus relacionamentos, óbvio, mas atribuíam isso a motivos diversos, e viviam suas vidas como deveriam viver. Algumas eram abandonadas, outras traídas, mas esses casos eram fatalidades, coisas a que todas estavam sujeitas, eram coisas da vida.
            Ela se tornou uma linda mulher, mas de tão ocupada com estudos e trabalho, não dava tempo para si, e não percebia os olhares que as pessoas lhe direcionavam. Saía de casa muito cedo e só chegava tarde da noite, mas sempre ligava para a irmã, para se sentir contagiada com a felicidade da outra.
            Um dia, quando saía do trabalho mais cedo, distraída como estava por conta de uma conversa que tivera com uma amiga, esbarrou em um alguém e acabou derrubando os livros que trazia nas mãos. Quando se abaixou para pegá-lo, o homem em quem tinha esbarrado fez o mesmo, para ajudá-la. Os olhares dos dois se encontraram. Ela jamais, em toda a sua vida, poderia imaginar que aquilo pudesse acontecer. Pensava que aquele tipo de paixão arrebatadora, à primeira vista, numa circunstância daquelas, só acontecia em contos de fadas e em cenas de cinema. Mas ela estava ali, ele estava ali, eram pessoas reais, seus olhares se encontraram e aquela paixão, súbita, fulminante, era real. Não falaram nada, pois palavras não eram necessárias. Seus olhos diziam tudo.
            Aquele foi o dia mais feliz de sua vida. Chegou a casa extasiada e sua irmã veio direto do trabalho para falar com ela, para sentir sua felicidade. As duas se abraçaram longamente e passaram aquela noite juntas, conversando, sem conseguirem dormir.
            Aquela felicidade parecia não ter fim e aumentar mais e mais a cada novo dia, a cada vez que falava com ele, a cada vez que o beijava e se aninhava em seus braços.
            Ele a amava de todo o seu coração, com toda a força de seu amor. Ela era tudo para ele.
            Sua irmã lhe deu a notícia de que seu casamento estava em crise e que provavelmente iriam se separar. Na noite em que lhe contou isso, fazia frio e chovia muito. Ela e sua irmã estavam de mãos dadas, trocando confidências uma com a outra. Ela disse que o namorado estava dando certos indícios de que em breve iria pedi-la em casamento. Ao falar isso, sentiu um vento frio tocar seu rosto e um arrepio, que foi da nuca até o final da coluna, então ela se lembrou...
            Ouvir aquela notícia, da separação de sua irmã, foi como um balde de água fria em sua felicidade, no sentido de sua vida. Um filme passou em sua cabeça numa fração de segundo. Lembrou-se de sua infância e aquele dia, de sua primeira lembrança, lhe veio à mente. Lembrou das lágrimas e lamentações da mãe e de outras mulheres de sua família. Via o exemplo de suas familiares (e agora de sua irmã), todas infelizes.
            Ela tinha a certeza de que a maldição era verdadeira, de que nada que pudesse fazer poderia quebrá-la, de que por mais feliz que fosse, sempre haveria um momento em sua vida, mais cedo ou mais tarde, em que a esta felicidade lhe seria roubada e ela se veria sozinha e triste, completamente arrasada.
            Ninguém, na família, falava mais em maldição. Era como se todas as que sofreram tivessem esquecido o que acarretara tal sofrimento, e só ela se lembrasse e sentisse o peso da maldição. Era como se só ela pudesse ver com clareza o motivo das infelicidades de cada mulher de sua família. Era como se só ela pudesse entender as consequências de se carregar um estigma, de se ser uma amaldiçoada.
            Naquela noite ela não dormiu, e quando pegou no sono, quando o sol já estava para nascer, teve pesadelos.
            Acordou sobressaltada com o seu telefone celular. Era seu namorado, que lhe ligava para dizer que a amava e que precisava falar com ela, ainda naquela manhã, para lhe dizer algo de muito especial. Ela já sabia, intuía, o que ele tinha para lhe dizer, e sabia, também, que resposta teria que dar.
            Ao ouvir a recusa de seu pedido de casamento, ele quis saber um porquê, já que se amavam tanto, já que eram tão felizes juntos, já que se podiam fazer ainda mais felizes um ao outro. Como resposta, ela disse apenas que não podia ser feliz, que a felicidade não lhe era permitida, e que o amava, e sempre o amaria, só não podia, nem queria, ser feliz amanhã para, no dia seguinte, esquecer tudo e ser mais infeliz ainda.
            Por acreditar que havia uma maldição que recaia em sua família, por acreditar que seria para sempre infeliz, ela deixou a felicidade escapar por entre seus dedos, tudo por conta de uma crendice.

domingo, 8 de janeiro de 2012

No escuro e no silêncio não sou tão só

Eu só queria que isso tudo terminasse, que essa dor chegasse ao fim. Olho para trás e vejo toda a agonia por que passei, e ainda ouço aquela voz que me disse, no dia em que nasci, que estaria amaldiçoado para sempre. Desejo fechar os olhos e, ao reabri-los, ver que tudo não passou de um pesadelo. Mantenho-me no escuro, com os olhos cerrados, na mais completa escuridão e silêncio. Chego a pensar que dessa vez, nessa única vez, serei ouvido, que terei uma vida nova a partir de agora, diferente da que tive até então. Eu desejo e me esqueço completamente do tempo, embalado pela visão do nada e pelo silêncio total. Quase chego a dormir, de tão em paz que estou, uma paz que não me lembro de nunca ter sentido. Queria nunca mais poder abrir os olhos, queria ficar para sempre no conforto desse silêncio.
    Lembro-me, agora que estou na paz desse momento, de tudo que se passou. As cenas, as dores, as percepções de tudo passam rápido, como um filme à minha frente. Vejo-me no mais completo silêncio e solidão, sem saber o porquê de tudo aquilo. Falando sem nunca ser ouvido; ouvindo tantas vozes, tantas palavras, mas nunca nenhuma palavra era direcionada a mim. Sem palavras de conforto eu sobrevivi toda a minha vida a duras penas. Juro que pensei, muitas vezes, em desistir. Mas a vida me ensinou, me obrigou a persistir, a continuar a sonhar com um conforto de um momento. E assim vivi, à espera de um momento que nunca chega.
    Nunca senti o conforto de uma palavra sincera nem adormeci sendo acalentado por uma canção de ninar; nunca senti o calor de um abraço nem o sabor de um beijo; nunca tive um sonho realizado, mas pelo menos nunca deixei de sonhar.
    Sonho, uma palavra tão doce, talvez o único sabor doce que tenha sentido e que me acompanha durante toda a minha amarga vida. Vida, que sempre me foi tão cruel e inclemente, que tudo tanto fez para que eu nunca esquecesse a maldição que me persegue, que me foi lançada no dia em que nasci, de que eu seria, para sempre, uma pessoa só.
    Eu só esqueço dessa maldição, de minha condição, de quando estou com os olhos aberto, vendo tanto, tudo, e nunca sendo visto, de quando falo, grito, berro, e nunca sou ouvido, quando fecho os olhos e me isolo dentro de mim mesmo, quando não ouço os sons ao meu redor e fico no mais completo silêncio, quando me fecho dentro de mim, como me encontro agora, em paz.
    Seria tão bom se eu pudesse ficar assim, se eu pudesse continuar assim, no escuro em no mais completo silêncio, pelo resto de minha vida, pois só assim eu não sentiria todo o peso da maldição, não sentiria o peso que é ser uma pessoa tão só.

domingo, 1 de janeiro de 2012

1º de Janeiro: dia Mundial / Anual / Universal dos Planos

Não adianta. Início de ano é tudo igual: cara de segunda-feira, com a diferença de que é feriado e a gente não precisa ir trabalhar. Todo mundo de ressaca, com dor de cabeça, com sono por ter ido dormir às altas horas da madrugada (ou por sequer ter dormido), com fortes dores na barriga provocadas pelos excessos da noite anterior, enfim, é tudo, menos bom acordar no primeiro dia do ano. Ideal mesmo seria se pudéssemos dormir todo o dia 1º de Janeiro e só acordar dia 2, renovados, sem quaisquer reclamações, prontos para começar pra valer o ano novo.   
    Primeiro de Janeiro,além de ser uma espécie de Dia Mundial / Anual / Universal das Reclamações (provocadas pelos excessos da noite do dia 31 de dezembro), é também um dia que é quase que exclusivamente dedicados aos planos para o ano que está começando. Todo mundo, nesse dia em especial do ano, faz seus planos, embora nem todos possam ser realizados, afinal de contas, como nem todo mundo ganhou o prêmio da Mega da Virada, não se vai poder começar a “torrar o dinheiro” com que já estava se contando para o ano novo. Toda mulher faz planos para entrar numa dieta rígida e segui-la plenamente, cortar doces, frituras, comidas gordurosas e uma poção de outras coisas, embora não consiga resistir à primeira barra de chocolate, usando como desculpa que aquela será a última (“uma despedida dos excessos, sabe como é...”, alegam elas), o que representará a quebra da rígida dieta ainda antes de terminar a primeira semana do ano novo, destruindo assim todos os planos de um ano inteiro por conta de chocolate! Há sempre os homens que fazem os planos (promessas) de entrar na academia, embora só consigam ficar lá no primeiro mês, só por que tiveram que pagar, e sair antes do primeiro mês representaria um gasto a toa de dinheiro e uma total falta de perseverança. Há os que pretendem mudar de emprego e os que pretendem, logo na primeira semana do ano pedir uma promoção ao chefe, com direito a aumento de salário, óbvio, para aproveitar enquanto este está solidário e compreensivo por conta das festividades e espírito reinante de final de ano. Há sempre os que juram que (nesse ano, sim!) irão de “emendar”, criar juízo, deixar de farrear e coisas do tipo, mas é só chegar o carnaval que a sua força de vontade será posta a prova e logo os planos e promessas feitas no primeiro dia do ano serão esquecidos. Há os que pretendem se dedicar pra valer aos estudos, mas só depois do veraneio e do carnaval, da páscoa, do São João, das férias do meio do ano, e assim vai “empurrando com a barriga” e quando der por si, acabou-se o ano e sequer abriu o livro uma única vez durante todo o ano para estudar pra valer. Não faltam os que prometeram ficar ricos, apostando na Mega Sena, e durante todo o primeiro mês do ano fará uma aposta por semana, mas que, a medida que o tempo passa e percebe que não é fácil ficar rico apostando na loteria, logo desanima e começa a usar como justificativa o fato de que “não queria tanto dinheiro assim, já que, afinal de contas, com tanto dinheiro a pessoa sequer consegue viver em paz, vivendo com medo de seqüestro e um monte de coisas do tipo”. Tem planos de tudo quanto é tipo, e tem gente que faz tantos que seriam necessárias várias vidas para se realizar todos.
    Eu, por meu lado, também faço meus planos. Por exemplo? Prometo me livrar de minha preguiça, embora saiba que “preguiça” é uma espécie de marca registrada, faz parte de minha identidade, e se eu deixar de ser preguiçoso, deixo de ser eu mesmo. Também prometo me dedicar mais aos estudos, embora só de lembrar das aulas chatas, dos conteúdos chatos, já começo a pensar em quem, da sala, vou pedir para assinar o meu nome na “lista de frequência”, para, pelo menos, não levar tantas faltas naquela disciplina em específico. Também prometo que desse ano não vai passar a minha leitura de Ulysses, de James Joyce, já sabendo que fiz planos e promessas em anos anteriores para ler tal livro, e até agora meu exemplar continua do mesmo jeito que está do dia em que o comprei.
    Enfim, inicio de ano é sempre igual: todo mundo cheio de planos, já sabendo quais desculpas vai dar para justificar as suas não concretizações. Mas de que importa levar ou não adiante os planos e promessas traçadas nesse inicio de ano? O que vale mesmo, nesse dia em especial, é fazer planos e promessas para esse que está apenas começando, afinal de contas, quem não faz planos (nesse dia em específico do ano) não é normal!