sábado, 31 de agosto de 2013

As horas de nossa vida



Toda a nossa vida está calcada e gira em torno do tempo, da hora exata, do instante exato e tudo começa no exato momento em que a preciosa semente de nosso pai é plantada no fértil solo-uterino de nossa mãe. A partir desse instante, começa-se a contagem regressiva para que sejamos colhidos e postos nesse louco mundo regulado por relógios...
            Após longos e maravilhosos nove meses, somos colhidos do solo-uterino pelas habilidosas, porém desconhecidas, mãos de um médico que nos arranca do aconchego de nosso primeiro lar. Recebemos, em seguida, um atestado dizendo a nossa “primeira hora no mundo” em que consta o horário de nosso nascimento. Quando bebês, somos totalmente regulados pelas horas de nosso organismo: hora de mamar, hora de acordar, hora de trocar a fralda, hora de tomar banho, e são tantas e tantas e tantas e tantas horas infindas, tantas madrugadas em claro até conseguirmos nos adequar às rotinas e horários, acertar os ponteiros de nosso relógio biológico de acordo com o relógio desse novo mundo no qual fomos jogados.
            Somos e vivemos tantas horas em nossas vidas... Por vezes são horas maravilhosas que passam depressa, mas há, também, as horas que se arrastam numa longa tortura que parece nunca ter fim. Odiamos, quando crianças, quando os nossos pais surgem e nos dizem que está na hora de dormir. Tentamos argumentar e por vezes até choramos dizendo que não estamos como sono, mas eles são inflexíveis, e nos põe na cama e nos cobrem com um maravilhoso e quentinho cobertor. Odiamos mais ainda as longas horas de tortura que são, na escola, as aulas de matemática, a que somos obrigados a assistir e a tentar prestar atenção e entender aquelas lógicas e a decorar aquelas fórmulas... Mas adoramos, em contrapartida, quando ouvimos o sinal do fim da aula, que nos devolver a liberdade roubada, que nos mantém preso daquela prisão chamada escola. Adoramos, também, em nossos aniversários, quando chega a hora de cantar o parabéns, quando somos o centro das atenções e que recebemos todas aquelas felicitações vindas de tantas vozes. Adoramos a hora que nossos pais nos liberam e dizem “pode ir brincar”. Adoramos quando o sol se põe e as sombras da noite aparecem, em que podemos brincar de esconde-esconde.
            Na adolescência, são outras horas que fazem sentido, que marcam, que amamos e que odiamos. Por exemplo, a hora de acordar, que é um tormento diário a que estamos sujeitos. Todos os dias queremos dormir mais um pouco, pois temos a certeza absoluta que “ainda dá tempo”, que podemos tirar “só mais um cochilo”, mas que nunca nos é permitido mais esse momento. Nessa época da nossa vida, nunca somos pontuais: ou chegamos sempre atrasados, ou nossa ansiedade nos obriga a chegar sempre antes. Somos ansiosos por natureza, queremos as coisas “pra ontem” e nunca sabemos (nunca queremos) esperar pela hora certa, pelo momento exato em que tudo está fadado a acontecer. Adolescência e fase de mudanças e descobertas, e a cada momento é uma nova. É o primeiro beijo que nos marca, o exato instante em que os lábios se encontram e em que as línguas desajeitadas se enroscam; é a descoberta do sexo, do primeiro gozo, este tão maravilhoso, tão intenso, que por mais curto que tenha sido o instante de sua explosão, é um momento glorioso de nossa vida, uma hora que ficará marcada eternamente em nossa memória. É, também, na adolescência, em que nos damos, talvez pela primeira vez, conta de que fazemos efetivamente parte desse mundo, e que começa a nossa briga por um lugar ao sol, mas com direito de poder desfrutar de uma boa sombra. A briga e o tormento da escola continuam (principalmente os tormentos das aulas de matemática), mas aprendemos a suportá-las, pois sabemos que o tempo passa e que lá na frente, num futuro que não e tão distante assim, tantas “horas perdidas” serão recompensadas...
            Na transição da adolescência para a primeira fase de nossa vida adulta, somos obrigados a esperar pela hora em que serão divulgados os nomes dos aprovados no vestibular. Ficamos contando as horas, vendo todos aqueles nomes passando na televisão, esperando para ver o nosso, para ouvir o nosso nome sendo lido, e quando isso acontece, exultantes de alegria, parece que nos passam flashs em nossa cabeça, um do passado, de tudo que passamos para chegar até ali, das longas horas das aulas, das horas dedicadas ao estudo, dos cansativos aulões, e um do futuro que está se descortinando perante nossos olhos. A partir daquela hora exata nos sentimos não mais criança nem adolescente, mas sim adultos. É nessa fase de nossa vida em que o apego a hora exata tem que ser seguido a risca: é hora pra estudar, hora pra fazer trabalho, hora pra fazer nada (raríssimas!!!), hora pra descansar, hora de enviar trabalhos para serem revisados pelos demais membros do grupo da universidade. Depois vêm as horas do estágio, a hora limite para a entrega do trabalho final de curso, a hora de nossa primeira entrevista de emprego... Ah, e quão felizes ficamos quando recebemos a notícia de que fomos aprovados nos testes, de que tal dia e a tal hora começaremos! Temos uma hora exata para chegar no primeiro dia de trabalho, mas nossa ansiedade é tamanha que nos obrigada a chegar horas antes...
            Na verdadeira fase adulta, ficamos presos às horas, ao relógio, às rotinas. Somos obrigados a estar o tempo todo com um relógio por perto, para não nos atrasar para tal compromisso, para não perder a hora de enviar tal relatório. São tantas horas exatas a que temos que ter sempre em mente que ficam em falta as horas que deveríamos dedicar a nós.
E assim segue a vida, com suas mil e uma horas, umas que adoramos, outra nem tanto, umas pelas quais esperamos tão ansiosamente, outras que queremos protelar eternamente sua chegada. Esperamos ansiosamente pelo exato instante em que ouviremos pela primeira vez o primeiro choro de nosso filho e pela primeira vez em que eles nos chamará de “papai” ou “mamãe”, pela primeira vez em que o veremos dar seus primeiros e desajeitados passos, pelas horas longas em que morremos de preocupação quando, já na adolescência, o esperamos chegar de uma festa que tão insistentemente pediu permissão para ir, e que mesmo sem ser de nosso gosto, permitimos. Não queremos, nunca, que chegue a hora da partida de entes tão queridos, mas acabamos nos conformando, pois tais momentos fazem parte do curso natural da vida.
Não nos esquecemos jamais do exato momento em que nos olhamos no espelho e vemos o nosso reflexo e percebemos o efeito do tempo sobre nós, que sentimos todo o seu peso sobre nossos ombros, e nos damos conta de que, em seu curso natural em que o relógio continua a correr, em breve (que torcemos para que não seja tão breve assim) chegará o momento em que, no alto do relógio, os ponteiros irão se encontrar e que chegará o exato instante, a hora exata em que fecharemos os nossos olhos...

domingo, 25 de agosto de 2013

A vida em profissões



Sempre que me perguntavam, quando eu era menino, o que eu queria ser quando crescesse, respondia de pronto: astronauta. Eu queria poder entrar num foguete e subir, subir e subir, chegar ao céu, ver a Terra minúscula lá de cima, chegar perto das estrelas, pegar carona num cometa e visitar outros planetas. O tempo foi passando e, mais crescido, passei a dizer que não queria mais ser astronauta, mas sim um estudioso (na época eu não sabia dizer o nome da profissão) de dinossauros. Queria conhecer as espécies, desenterrar todos aqueles gigantescos ossos e brincar de quebra-cabeça, até reconstruir com precisão, montando peça por peça (ou melhor dizendo: osso por osso), o dinossauro. Essas duas profissões (se bem que profissão, naquela época, quando eu era menino, era algo que eu não entendia. Eu entendia, sim, apenas a pergunta “ser quando crescer?”, e não se falava, em momento algum, em “profissão”) representam todo um mistério, fascínio e fantasia a que todo menino entende como interessante.
            O tempo passou, e eu já não era mais o menino que queria ser astronauta nem mais o que queria estudar dinossauros; já tinha uma mentalidade menos fantasiosa, e estava naquela maravilhosa e confusa fase a vida a que se chama comumente de “pré-adolescência”. Nessa época, se quer ser é uma espécie de herói, e eu pensava, já arquitetando toda uma carreira, em vir a ser bombeiro e salvar pessoas, apagar incêndios. Se não fosse possível, pensava em ser um agente, tal como eu assistia nos filmes de Hollywood, pensando (em minha fantasia-juvenil) que aquilo era real.
            Na adolescência propriamente dita, no período vulgarmente chamado de puberdade, eu queria chamar a atenção das meninas (como todo adolescente que se preze) e ser um super-astro, ter muito dinheiro e ser muito famoso (e ter muitas namoradas!). Queria montar uma banda, que seria considerada “a maior banda de todos os tempos da última semana”, os videoclipes seriam os mais assistidos, faria muitos shows por mês e teria uma legião de fãs e todas as garotas iriam chamar pelo meu nome. Esse foi o primeiro sonho de profissão que eu tentei realizar. Comprei um violão e comecei a escrever umas músicas bem depressivas e melancólicas. Mas logo vi que não levava muito jeito pra coisa. Não tinha o menor jeito/vocação para tocar qualquer instrumento musical e as minhas letras (poesias) eram pobres de rima e ritmo. Desisti da ideia de ganhar garotas sendo um astro do rock, e parti para algo mais possível: ser jogador de futebol. Comecei jogando no time da rua, chegando a treinar no do bairro e participando de torneios no da escola. Cheguei a participar de alguns torneios, os “peneirões”, mas nunca passei em nenhum e, convenhamos, apesar de não ser um jogador dos mais “perebas” dos times que participei, também nunca fui nenhum craque de bola. Desisti da ideia de ser um craque do futebol e jogar na Seleção Brasileira, desisti de ser um super-astro do rock, ficando, assim, a frustração de não ter o meu nome gritado pela torcida nem pela turba de fãs enlouquecidas.
            O tempo passa, a vida passa, e já próximo da porta da “idade adulta”, pensei em que profissão seguir (pela primeira vez na vida, surgia a ideia/conceito de “profissão”). A primeira coisa que me passou pela cabeça foi ser médico, mas aí pensei na dificuldade que é o vestibular para medicina, e percebi que talvez eu não tivesse a vocação/paixão necessária para seguir a carreira. Advogado eu cheguei a pensar em ser, mas aí pensei nos “sapos” que teria que engolir, nas mentiras que teria que forjar, nos “tipos” que teria que defender e percebi que, definitivamente, não teria estômago para a profissão. Empresário eu cheguei a pensar em ser, mas aí vi que a falta de capital era um problema sério a ser pensado e, convenhamos, eu não tenho o mínimo “faro” para os negócios. Político, eu pensei, mas por uma espécie de “pura ideologia e ingenuidade”. Não tinha (e nunca tive) qualquer vocação para roubalheira, corrupção e coisas afins, e, além do mais, político idealista, verdadeiramente comprometido e honesto, não existe em nosso país, e se existe, não é eleito.
            Resolvi, então, deixar a vida me levar, já que só fazer planos não estava me levando a lugar algum. Fiz vestibular para história, com a ilusão de que poderia trabalhar com pesquisa, que poderia ver a ser um historiador, no sentido literal da palavra/profissão, mas vi que a realidade era bem diferente da que eu imaginava. Ser professor de história era algo que me seduziu por apenas algumas semanas, e ao me deparar, pela primeira vez, com uma sala de aula e a realidade nas escolas...
Acabei me deixando levar por minha paixão: livros. Meus pés acabaram me guiando a uma livraria.
            Hoje, fazendo uma retrospectiva de minha vida em profissões, ou sonhos de profissões, ou de sonhos do que queria ser quando crescesse, me bate uma saudade dos velhos tempos, de meus devaneios, de minhas fantasias, em que queria (e podia) ser tudo que quisesse, e bastava apenas querer para ser, fechar os olhos e responder a pergunta que me faziam: o que você quer ser quando crescer?

domingo, 18 de agosto de 2013

O menino que nada via



Caminhava um menino de forma distraída quando olhou para o céu e viu as primeiras nuvens encobrirem o sol e percebeu que logo iria começar a chover, e apressou o quanto podia os passos para encontrar um abrigo onde pudesse ficar e se proteger, pelo menos até quando a chuva passasse. Mas sua pressa não foi suficiente e, mesmo correndo, ainda se molhou com as primeiras gotas d’água que caíram do céu. Encontrou abrigo embaixo de uma frondosa árvore, que por ser tão alta, por possuir tronco e galhos tão frondosos e folhas tão grandes que água alguma chegava a cair no chão. O menino, ali, se sentiu protegido da chuva, e ficou um tempo. Logo sentiu frio e passava as mãos vigorosamente por sobre os ombros, com o intuito de aquecer um pouco o corpo, mas o vento soprava com tanta força que por mais que o menino se esforçasse, não conseguia se manter aquecido, então se aproximou um pouco mais do tronco da árvore, a fim de sentir seu calor.
            A cada instante ele olhava para o céu, com a esperança de que aquelas nuvens de chuva fossem empurradas para longe, mas a tempestade parecia não abrandar. Estava agachado, encostado ao tronco da árvore, se sentia entediado por estar ali, preso, e a cada instante soltava aos céus uma queixa, quando escutou algo mais alto do que o som dos trovões que ribombavam à distância. Era um som límpido, de alguém feliz, de uma gargalhada, e se levantou para quem estava ali por perto, debaixo daquela chuva, e viu um outro menino, que, mesmo de forma trôpega, caminhava tranquilamente, sem temer a chuva que caía. Estava com os braços abertos, tal qual um avião, e com a boca aberta bebia a preciosa água que caía do céu. Parava, com os braços voltados para o céu e girava em torno de si mesmo, rindo, sem mesmo saber do quê. O primeiro menino então começou a chamá-lo:
            - Menino... Menino... Saía dessa chuva, que você vai acabar se molhando... Menino... Menino...
            Mas o outro menino não ouvia, pois estava embriagado por uma imensa felicidade. Com a boca aberta num único e longo sorriso, deixava que a água lhe saciasse a sede. Tinha os olhos esbugalhados, como que para ver cada pingo d’água que caía do céu.
            O menino tornou a chamá-lo, mas o outro não escutava, então resolveu ir pegá-lo. Muito contrariado, levantou-se, abraçou os próprios ombros e saiu em uma corrida desenfreada de encontro ao outro, que tão feliz tomava seu banho de chuva. Quando os dois se encontraram, o primeiro segurou com firmeza o punho do outro, que se assustou ao ser abordado daquela maneira, mas se deixou conduzir docilmente. Os dois correram juntos, um segurando com firmeza a mão do outro, que tropeçava a cada dois passos e a cada vez que isso acontecia soltava uma sonora gargalhada, e por pouco não veio ao chão duas ou três vezes. Quando finalmente estavam seguros debaixo da árvore, o menino, reclamando por ter se molhado, olhava fixamente para o outro, que tinha o rosto voltado para trás, onde a chuva caía, como se estivesse sendo chamado por ela. Quando ele se virou e ficou de frente ao que tinha se molhado para ir tirá-lo debaixo da chuva, estava com um sorriso estampado na face.
            - Você não gosta de banho de chuva? – perguntou.
            O menino então percebeu que o outro era cego, e não sabia o que este achava de tão engraçado em se molhar, em tomar um banho de chuva.
            A chuva então cessou, como que num passe de mágica, e o menino, mesmo sem nada enxergar, virou o rosto para o alto, como se seus olhos mirassem ao longe, na direção em que surgia no céu um esplendoroso arco-íris, enquanto o outro olhava para o chão, a poucos metros de distância de onde estava, onde havia uma poça d’água. Este não entendeu o que o outro estava vendo e do que estava rindo. Soltou mais uma poção de imprecações destinadas aos céus, deixando o outro ali, sozinho, contemplando o que ele não sabia o quê, com aqueles olhos que ele julgava nada enxergarem ao seu redor.

domingo, 11 de agosto de 2013

O nascimento da rosa negra



Aquela era uma rosa muito rara. Só nascia ao pé daquela alta montanha e só desabrochava uma vez por mês, nas primeiras horas da noite, quando o sol de punha e a lua cheia, com todo o seu esplendor, iluminava toda a terra e derramava sua luz prateada nela. A rosa guardava a luz da lua em suas pétalas por alguns dias, e quando o ciclo da lua cheia terminava, ela voltava a se fechar dentro de si mesmo e adormecia.
            Era uma rosa que não tinha espinhos, inteiramente indefesa, e todos os que a contemplavam, vendo-a tão frágil, cuidavam dela, e só passavam muito de leve seus ásperos dedos nas pétalas, e ao fazerem isso, um leve brilho prateado ficava grudado na pele por dias a fio. Pessoas de todo o mundo vinham contemplá-la, milhares eram os que se acotovelavam ao pé da montanha com os olhos grudados no céu, acompanhando a trajetória do sol indo se por lá longe, onde o céu e o mar se fundem, e quando o último raio de sol se apagava, voltavam os olhos para o outro extremo, onde a lua, majestosa, mostrava-se em toda a sua beleza e começava a derramar a sua luz prateada sobre a rosa. A rosa ao se sentir acariciada pelos suaves e frios dedos da lua, desabrochava bocejando para receber o carinho da lua. As duas, rosa e lua, passavam a noite inteira a se fitar, apaixonadas uma pela outra, suspirando, e quando a lua ia embora, a rosa derramava finas e suaves lágrimas, e suas pétalas ficavam úmidas, e as pessoas chamavam tais lágrimas, aquela umidade, de orvalho. E assim noite após noite, dia após dia, até que a face da lua mudava e a rosa voltava a se fechar dentro de si mesma, bocejava uma última vez e voltava a seu sono.
            Um homem ao ver tantas pessoas vindo de tão longe, resolveu pegar aquela rosa e cultivá-la para apresentá-la a mais pessoas ainda ao redor do mundo e para vendê-la. Certo dia ele foi ao pé da montanha, onde a rosa dormia, e a arrancou do solo e a levou para um terreno bem longe da montanha, numa planície, onde a plantou, depositando-a no solo.
            Naquele fim de mês, na primeira noite de lua cheia, a lua não encontrou a rosa ao pé da montanha. Procurou-a desesperada em todos os cantos onde seus olhos alcançavam, até que viu, ao longe, uma imenso campo de flores em muito parecidas com aquela que era a sua rosa. Tocou-a, e ao sentir aquele toque, a rosa desabrochou, e ao se ver tão longe do lugar que sempre fora seu lar, e ao se ver cercada por outras tantas iguais a ela, chorou grossas lágrimas que tingiram todas as suas pétalas de negro, pois, ao ser arrancada e cultivada tão longe sua casa, ela se sentiu morta, de luto por si mesma, e a partir daquela noite ela nunca mais desabrochou e guardou o luz prateada da lua, mas sim desabrochando eternamente negra com o corpo coberto por duros espinhos.

domingo, 4 de agosto de 2013

Luto



Luto é dicionarizado como Sentimento de dor pela morte de alguém, consternação, dó. Fato é que independente de como definimos tal palavra, não há palavras suficientes para expressar tamanha dor. E nós, humanos, desde que somos humanos, temos que encarar de frente essa dor, que viver esse sentimento de luto, muito embora nunca estejamos suficientemente preparados para lidar com ele. Às vezes o luto é repentino, quando a vida de um alguém é ceifada de forma abrupta, sem que tenhamos o tempo para ir nos preparando para quando chegar o momento da partida; e em outras o sentimento vem dissolvido, vai nos tomando em doses homeopáticas, com a vida da pessoa querida escapando por entre os dedos sem que ninguém (nem a própria pessoa nem nós mesmos) possa fazer nada...
            O luto atinge a todas as pessoas, mas de maneiras diferentes. Há pessoas que conseguem lidar melhor com tal sentimento, que são como um pilar para que outras se segurem no momento da perda, mas há outras que desabam, que derramam mares de lágrimas, que choram, que gritam, que não se conformam com a partida (perda) de um alguém que estava há tão pouco tempo ali, na sua frente... Às vezes enfrentamos e somos acometidos por um luto não pela perda em si de um alguém querido, se configurando muito mais como “um luto simbólico” quando “perdemos sua companhia”, quando a pessoa vai embora.
            Enfrentamos luto por tudo: por um animal de estimação muito queridos, por uma árvore especial que nos abrigava por muito tempo em sua generosa sombra, que teve que ser arrancada por um torpe motivo qualquer, por uma casa de infância que teve que ser demolida, etc., etc. e etc. e nós, leitores, amantes da literatura, nós, que não só lemos, mas incorporamos e vivemos o livro e os personagens, também temos que lidar com um pesado e opressivo luto.
            Ao iniciarmos um livro, sabemos que mais cedo ou mais tarde ele vai acabar. Ora nós lemos de forma tão descontrolada, com tamanha ânsia, que o luto vem repentinamente sem que tenhamos tempo e oportunidade de nos prepararmos para receber tal baque; ora a leitura está sendo tão prazerosa que desejamos prolongá-la, que nós lemos o livro palavra por palavra para termos a impressão (vaga ilusão!) de que podemos adiar ao máximo o momento da leitura do “fim”, em que seremos “obrigados” a fechar o livro e colocá-lo de volta na estante.
            Nunca estamos plenamente preparados para lidar com o “fim” de um livro, para ler a última frase e dar a exata entonação do último ponto final, para fechá-lo e guardá-lo na estante. Nunca estamos preparados para lidar com a morte de um personagem que nós vimos crescer, se desenvolver, criar corpo e forma em nossa mente, em nossa alma, que o queremos tanto, que o amamos tanto como se fosse um alguém materializado em carne e osso, que está a nosso lado, contando a sua história sempre que abrimos o livro.
            Esse luto, provocado pelo “fim” de um livro, pela vida tão brutalmente ceifada de um personagem, é, muitas vezes, incompreendida por muitos, por aqueles que não têm a exata noção do quanto a leitura de um livro e a vida de um “simples personagem” pode mexer conosco, leitores-incondicionalmente-apaixonados. Podem até nos apontar o dedo e dizer, ingênua ou ignorantemente que o que sentimos não é luto, mas sim uma “frescura”... Eu pelo menos, nada respondo, não os critico nem me defendo. A vantagem que nós, leitores, temos sobre “os demais mortais”, é que quando sofremos de luto de um livro ou por um personagem, podemos sofrer não a dor, mas os prazeres da vida, da leitura, quantas vezes forem necessárias, bastando, para isso, apenas abrir novamente o livro e ressuscitar a história e os personagens quando bem entendermos. Sofreremos, sem dúvida, da mesma maneira, quando chegar o momento de lermos o último ponto, de fecharmos o livro, de vermos a vida do personagem ceifada, mas este sofrimento, este luto, não chega a ser de todo pesado e triste; é, sim, mas a nós, leitores, o “pesado e triste” tem uma conotação diferente do que o “pesar” e a “tristeza” tem para os que não leem e para os que não conseguem entender esse nosso tão especial luto...