segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Balanço anual de leitura - 2013


            Foi 2013 um ano muito bom de leituras. Iniciei lendo Os Cossacos, de Tolstoi (é tradição minha iniciar o ano de leitura “com o pé direito”, lendo um grande autor, um clássico da literatura universal) e o fechei com O remorso de Baltazar serapião, de Valter Hugo Mãe (tradição, também, fechar bem o ano).
            Este ano foi de muitas descobertas e algumas decepções (estas sempre acontecem), e também de outras coisas, como “minhas pazes” com Chico Buarque. Falo em “pazes” porque havia lido anteriormente o tão badalado, premiado, salve-salve Leite Derramado, e fiquei com uma impressão não muito boa do livro (talvez a impressão tenha sido não das mais favoráveis pelo excesso de entusiasmo por parte da crítica, o que me levou a ler o livro com uma expectativa muito elevada), como se o leite do livro estivesse “talhado”, estragado mesmo. Depois dessa experiência, fiquei resistente quanto a Chico, mas esse ano resolvi dar uma nova chance ao autor, e mergulhei na leitura do que talvez seja o mais elogiado livro dele, Budapeste. Gostei muito do livro, tanto que resolvi dar novas chances ao autor  e quem sabe até colocar na “minha lista de possíveis releituras” o livro Leite Derramado, agora para lê-lo de forma mais livre, sem aquele frenesi da crítica e sem preconceitos, para “desempatar a partida”, afinal de contas, estamos no 1 a 1, eu e Chico Buarque. Outro autor e livro que subiu (decolou) no meu conceito foi Stephen King. Nunca fui muito de ler livros de suspense e terror (assim como leio pouca ficção científica, poesia e livros de ensaios). Já havia, sim, lido outros livros do autor, dos quais gostei bastante, como Á espera de um milagre, e vários textos soltos, de pequenos contos, garimpados em livros diversos, mas nunca me caíra nas mãos algo de mais marcante, de maior “peso” na obra do autor, até que resolvi abrir as páginas de O Iluminado. Que livro! Estupendo! Fantabuloso! Fodástico! Nunca senti os pelos de meus braços e de minha nuca se arrepiarem tanto quanto quando estava lendo esse livro. A linguagem, a maneira como Stephen King escreve, o ritmo da leitura, o suspense, a expectativa e o medo que ele faz o leitor sentir o colocam (com toda a justiça) como o maior autor do gênero da atualidade, um dos maiores de todos os tempos, e, para a literatura como um todo, um ícone, um cânone de seu tempo. Também tive o prazer de reencontrar Khaled Housseini, que não escrevia (e publicava) um livro há anos, o que fez com que nós, seus leitores, nos sentíssemos tão órfãos de sua tão cativante forma e personagens. Li dois livros de Carlos Ruiz Záfon, um dos autores contemporâneos que eu sempre leio (só não li, ainda, dele, o mais recente, pois não tive a oportunidade de pegá-lo – afinal de contas, são tantos livros, são tantas obrigações, que nem sempre dá para se pegar para ler tudo que se gostaria nem se ler tudo).
            A leitura de clássicos da literatura mundial tem, sempre, um tempo dedicado em meu “ano de leituras”. Li Tolstoi, conheci uma outra face do “leão russo” ao estudar sua vida quando li sua biografia (livro fantástico, de uma pesquisa primorosa, diga-se de passagem – trata-se do Tolstoi a biografia, de Rosamund Bartlett), li Leskov, A fraude e outras histórias, Turgueniev, Rúdin, Puchkin, Pequenas Tragédias,e Dostoievski, Humilhados e Ofendidos, (inclusive, fiz uma promessa a mim mesmo de começar a comprar e ler toda a obra do autor). Mas nem só de autores russos se fez o meu ano de leitura. Também li Gabriel Garcia Márquez, Crônica de uma morte anunciada, Balzac, Coronel Chabert, Philip Roth , O Complexo de Portinoy, (que apesar de ser contemporâneo, eu o coloco com um “clássico”, dada a sua importância e impacto da obra na literatura mundial), Cortazar, Bestiário, (que me decepcionou bastante, diga-se de passagem) e o clássico brasileiro ficou por conta de Dom Casmurro, que eu tive o prazer de ler pela terceira vez.
            Consegui, finalmente, atingir uma “meta mínima” de leitura de autores brasileiros (leio muito mais os estrangeiros, e você, amigo “seguidor de leituras”, sabe bem disso), conhecendo Zuenir Ventura, Sagrada Família, Ana Maria Machado, com o Palavra de Honra, a premiada Adriana Lisboa com o seu livro Sinfonia em Branco, os infantis Dom Quixote das crianças, de Monteiro Lobato e Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque em parceria com Ziraldo. Li livros e autores menos badalados e conhecidos do público em geral, como Paulo Sutto, Contos para ler antes de dormir e Josué Melo, com seu excepcional Dias Miseráveis, além do interessante Maurício Lyrio, Memória da Pedra. Li também Paulo Freire, Antônio Cândido  e, óbvio, o meu grande ídolo (na música e cada vez mais consolidado na literatura) Humberto Gessinger, em seu novo livro, Seis Segundos de atenção. Mas de todos os nacionais, de todos os livros que li em 2013, o melhor, sem dúvida, foi O Arroz de Palma.
            Antes mesmo de finalizar a leitura do livro de Francisco Azevedo, O Arroz de Palma, já sabendo que tinha um tesouro da literatura, desses que a gente descobre em meio a tantas leituras, e o alcei imediatamente a um dos melhores livros de literatura nacional que já li em minha vida (de todos os livros, de todos os autores, O arroz de palma está entre os melhores), e ao ler o último ponto já havia me predisposto a dar a ele o “Oscar” de Livro do Ano.
            Livros do Ano foram vários (lembrando que nunca posto os clássicos nessa lista, pois estes constituem uma “casta” elevada, superior, própria), mas nenhum maior que O Arroz de Palma. Os dramas A Menina de Vidro, de Jodi Picoult, uma autora da qual eu tenho me tornado cada vez mais fã, e Um pedidos às estrelas, de Priscille Sibley (livro da capa feia, tosca, bem piegas – portanto, nada de julgar este livro pela capa) figuram entre os melhores lidos em 2013, assim como O Renegado, de Sadie Jones, que me impressionou pelo fator psicológico e de difícil construção, de tocante “distanciamento emocional” do personagem principal da história.
            Foram, no total, 54 livros iniciados em 2013, no entanto, 3 ficaram pelo meio do caminho por motivos diversos, para serem retomados em um outro momento, entre eles Os Pilares da terra, de Ken Follet, livro excepcional, que eu tive que devolver (tinha-o pego emprestado e lamentei profundamente quando tive que devolvê-lo, prometendo para mim mesmo retomá-lo do ponto que tinha parado).
No geral, 2013 um ano muito bom de leituras, com reencontros, pazes, promessas não cumpridas (como como sempre, a minha não leitura, por falta de coragem, de Ulysses, de James Joyce), descobertas de tesouros e, acima de tudo, muitos prazeres a que só a leitura de um grande livro pode proporcionar.
O meu 2014 de leituras se iniciará em breve, e já sei com que livro irei “abrir minhas atividades”, mas já sei que não conseguirei cumprir a minha promessa de leitura de Ulysses e não faço ideia de com que livro irei finalizá-lo (fechar com chave de ouro).


E você, amigo leitor, como foi seu ano de leitura e quais as perspectivas e expectativas para o ano que se inicia logo mais?

domingo, 29 de dezembro de 2013

O que é família?

Muito se fala em família, mas o que realmente representa e constitui essa célula e teia tão essencial à nossa vida?
            O dicionário Aurélio, que de tão antigo ganhou o apelido de “Aurelião” e já é quase membro da família, define Família como: 1 - pessoas aparentadas que vivem, geralmente, na mesma casa, particularmente o pai, a mãe e os filhos. 2 - pessoas do mesmo sangue. 3 - origem, ascendência. Outros dicionários, não tão familiares quanto o Aurélio, usam outros termos, detalham um pouco mais a “definição de família”, mas, no cerne, dizem a mesmíssima coisa, uns falando com termos mais pomposos, outros de forma mais objetiva, e o que todos eles têm em comum, na frieza de sua definição, está no fato de que palavra alguma, por mais precisa e milimetricamente calculada que seja, seria capaz de definir em toda a sua amplidão e força o verdadeiro significado de Família.
            Família não se define, se sente e se é. A família nasce, sim, daquele simples casal, apenas um homem e uma mulher, que dão origem a filhos, e destes vêm os netos, e daqui a pouco de apenas uma meia dúzia, aparecem outros que se agregam, surgem os primos, os maridos e esposas daqueles primeiros filhos, que embora não do mesmo sangue, passam a sê-lo, passam a se incorporar, a fazer parte, a sentir, a ser membro / parte integrante daquela célula primordial e a ser mais uma das pessoas tão essenciais na construção dessa gigantesca e infindável teia familiar.
            Família tem a ver com parentesco e laços de sangue, sim, mas os laços que unem as pessoas de uma mesma família são mais fortes e mais complexos do que o simples fato de compartilhar de um mesmo sangue, de ter uma mesma herança genética, de possuir um mesmo tipo de cromossomo. Família é mais do que sangue, e tal qual a “substância vermelha”, corre, também, em nossas veias, gravado no fundo do coração, na alma, nas mais doces e maravilhosas memórias que temos.
            Há pessoas que nem sempre nascem no mesmo seio familiar, mas que ao entrarem nele são abraçadas e aconchegadas a ele como se o fizessem desde sempre.
            Na família nem sempre uns moram perto dos outros, nem sempre estão juntos o tempo todo como gostariam, mas distância espacial e a questão do tempo são irrelevantes quando algo maior os aproxima, quando se tem lembranças de sobra, dos tão marcantes momentos passados juntos.
            Família consta no dicionário, sim, como um verbete que tem uma definição (vaga e imprecisa), mas não tradução, pois palavras frias não são capazes de transmitir o calor que existe por trás dessas sete pequenas e frágeis letras, que, quando juntas, se tornam algo gigante e tão forte que nada nesse mundo pode quebrar.

            Talvez, no entanto, o que melhor definiria Família, seriam palavra como tudo, amizade, lembranças mais doces, mãos dadas,almoço de domingo, férias juntos,  reunião, união, festa, sorriso, compreensão, respeito, amor, entre tantas outras palavras, que embora também sejam só isso para uns, palavras, para aqueles que entendem e sentem o verdadeiro significado de família sabem que família é tudo isso e muito mais, muito mais do que qualquer que seja a palavra possa definir e traduzir.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Natal... natal... eh, natal!!!

É sério! Eu adoro o natal. Adoro sentir esse clima festivo dessa época do ano; adoro ver a cidade toda enfeitada e iluminada com decorações de gosto no mínimo duvidoso; adoro poder ir a um shopping e receber tantos encontrões, por conta dos corredores sempre tão cheios de gente desesperada para comprar presentes e mais presentes; adoro ir a uma loja e ver a expressão insana dos vendedores, entre desejosos de concluir mais uma venda, e exaustos, já contando os dias para que esse período de loja eternamente cheia finalmente chegue ao fim, pois seus gerentes se negam a lhe dar folgas, já que virou lei que empresa nenhuma dá folga nessa época do ano!
            Adoro o natal por conta desse sentimento de fraternidade reinante. Todas as pessoas são amigas, todas as pessoas perdoam, são perfeitas e vivem na mais perfeita harmonia, exatamente de forma oposta a que vivem durante todo um ano, como se estivessem a esperar pelo natal para viverem “como deveriam”, pois, afinal de contas, tem que fazer a média uma vez por ano pelo menos, convenhamos!
            Adoro natal por que é a única época em que se vê pessoas que não se suportam tirando umas às outras no “amigo secreto” e na hora de revelar quem tirou, só falar elogios do outro. Adoro ver como as pessoas têm cuidado e pensa muito na hora de comprar um presente pro “amigo secreto” a ponto de comprarem um “cartão presente”!!!
            Adoro natal por que vejo pessoas que nunca se viram na vida desejarem “feliz natal” umas às outras com toda a falta de sinceridade do mundo. Adoro ver vizinhos que nunca sequer trocam um “bom dia”, apesar de costumeiramente se encontrarem num corredor ou nas escadas do edifício, parando para se cumprimentarem, para puxarem um assunto qualquer, para expressar votos de “feliz natal e próspero ano novo”.
            Adoro ver os climas festivos e os preparativos para as reuniões familiares e entre amigos, como se só fosse permitido se reunir justamente nessa época do ano, como se fosse terminantemente proibido se reunir em qualquer época do ano que não seja no natal, como se só no natal fosse permitido chamar os amigos ou familiares para uma festa / reunião num ambiente agradável para reforçar os laços de amizade ou de sangue.
            Adoro o natal por que é só nessa época do ano que se recebe mil e uma mensagens e e-mails daqueles parentes e amigos que sequer se dignam a dizer um “oi” ao menos na data de seu aniversário, e justamente agora, nessa época do ano, reaparece, como que tendo surgido do nada, para desejar “feliz natal”.
            Adoro o natal, pois, se ao menos sonhar em falar que não gosto do natal, sou considerado antipático, antissocial, do contra, ateu, chato, hipócrita, etc, etc e etc. por isso falo, ou me vejo obrigado a falar, por tudo que se vive nessa época do ano, e só nessa época do ano, que adoro o natal.

            Vivamos, então, essa época tão boa, pois se não a aproveitarmos intensa e devidamente, com certeza, durante o resto do ano seremos obrigados a conviver com as pessoas em suas verdadeiras faces, que, ao menos no natal, são encobertas por máscaras de uma falsa sinceridade que chega a comover e a convencer. 

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

O livro do Rei dos Gatos



A pequena Karolinne andava segurando firmemente na mão protetora de sua mãe. Tinha medo de se perder no meio daquela multidão, com pessoas andando apressadas de um lado para o outro. Sua mãe caminhava apressada, pois ainda tinha muito até o final daquele dia, e vez por outra, quando a pequena menina diminuía o passo para observar algo que lhe chamava a atenção, a mulher a puxava bruscamente.
            Era meio dia, horário em que as pessoas estão mais apressadas, seja para correrem para casa a fim de fazerem uma breve refeição e retomarem em seguida para a segunda parte de sua jornada de trabalho, seja para fugirem do sol inclemente, buscando desesperadamente por uma sombra. O barulho das ruas era ensurdecedor, com carros buzinando, com o barulho dos motores, com as lojas anunciando as ofertas em alto-falantes, com as pessoas falando alto para poderem se fazer ouvir, e a menina, cansada, era quase arrastada por sua mãe, que queria fugir o quanto antes daquele caos urbano de centro de cidade. Karolinne estava com calor e ao ver um carrinho de sorvete, pediu para sua mãe comprar um. A mulher, a princípio relutante, pois não queria se atrasar, negou o pedido da filha, mas não conseguiu resistir aqueles lindos e brilhantes olhos suplicantes.
            - ‘Tá bom, Karol! Vou comprar seu sorvete, mas fique exatamente aqui – falou a mulher, deixando a filha sentada num banco enquanto ia comprar o que a filha pedira.
            A menina, comportada, ficou exatamente como e onde a mãe mandara, sentada e protegida sob sombra de uma frondosa árvore, vendo a mulher se fundir à multidão. Ficou balançando suas perninhas curtas, olhando as pessoas caminhando apressadas, indo de um lugar para o outro. Olhava, vez por outra, para o céu, que estava de um azul claro, belo, naquele horário, sem nenhuma nuvem. As folhas da árvore não se moviam um centímetro sequer e a menina sentia o suor deixando grudados fios de cabelo no alto da cabeça. Fechou os olhos e sentiu uma suave e fria brisa lhe envolver. Quando abriu os olhos, viu, parado, a poucos metros de onde estava, um gato cinza lhe olhando nos olhos. A menina achou estranho um gato ali, despercebido entre tantas pessoas. Sorriu para ele e o chamou com sua mãozinha, mas o gato não deu um único passo em sua direção, mas balançou o rabo e se virou. Com um andar suave, começou a passar por entre as pernas das pessoas, que sequer o notavam. A menina, curiosa, olhou para o lado, para onde sua mãe tinha ido, e a viu ainda na fila para comprar o sorvete, e olhou para onde o gato sumira, e viu apenas a ponta de sua cauda. Não pensou duas vezes e saltou no chão e correu em direção ao gato, chamando-o. Passou esbarrando nas pessoas, que desviavam dela e gritavam às suas costas “cuidado por onde anda, menina!”. Perdeu de vista duas ou três vezes o gato, mas logo encontrava seu rastro, a ponta de seu rabo dobrando uma esquina ou outra. Corria o máximo que lhe permitiam suas pernas curtas. Passou por becos estreitos por onde só andavam umas poucas pessoas, atravessou ruas antigas pelas quais ela não lembrava de ter passado, até que se viu sozinha num beco aparentemente sem saída. Com a certeza de que tinha se perdido, sentiu as lágrimas lhe vindo aos olhos e a garganta ficar apertada com um soluço, quando viu, pouco a sua frente, o gato, que estava como que lhe esperando. Ele miou e se virou, atravessando as grades de uma enorme casa. A menina correu até onde estava, implorando para que o bichano a esperasse, mas ele não lhe deu ouvidos.
            Karolinne parou em frente a um casarão abandonado, com erva daninha cobrindo toda a entrada e com as grades enferrujadas. Sentiu certo medo, pois casarões daquele tipo lhe lembravam os fantasmas e bruxas que habitavam casas daquele tipo nas histórias que li e nos filmes que assistia, mas ao ver o gato entrando por aquela porta, seu medo se dissipou e ela empurrou o portão enferrujado, que abriu facilmente, dando-lhe passagem. Ela correu até a porta, que estava parcialmente aberta, e a empurrou para poder entrar, e tal não foi a surpresa ao ver, ao invés de um interior deteriorado, de uma casa velha como sua fachada deduzia, uma imensidão de estantes e livros, tudo organizado, bonito, convidativo a um passeio nas páginas e melífluas palavras de um autor.
            Andou pelos corredores atulhados de livros, com estantes do chão ao teto dos mais variados títulos e se perdeu e se achou um sem número de vezes, deixando-se guiar apenas pelo instinto. Passava a mão nas lombadas dos livros e vez por outra tirava um ou outro para folhear. Um livro lhe chamou a atenção, e ela sentiu uma força irresistível vindo dele, como se ele estivesse clamando para ser lido. Karolinne o retirou da estante. Era um livro comum entre tantos outros livros iguais na sua aparência, tinha uma capa dura e não era tão volumoso, era repleto de belas ilustrações e a história era a de um Rei Gato. Só então, ao ver o título do livro, foi que ela se lembrou que tinha esquecido completamente do gato que seguira, que a conduzira até ali. Fechou o livro de supetão e levantou a cabeça e se espantou a ver não só um gato, mas vários ao seu redor, e entre eles, aquele gato cinza que a trouxera até ali. Sentiu o coração acelerar ao se ver cercada por tantos gatos, mas aquele que havia seguido deu um passo á frente dos demais, abriu a boca, mas ao invés de soltar um miado, falou suavemente.
            - Não tenha medo, Linda Menina. Nós não lhe faremos nenhum mal. Eu só lhe trouxe até aqui para que você encontrasse entre esses tantos livros que aqui estão, aquele que nos é o mais precioso, o que tem a mais bela história, e queria que você o lesse para nós.
            A menina ficou estática, pois nunca tinha visto um gato falando. Olhou para os outros e os viu sentando-se e assentindo, esperando para que ela abrisse novamente o livro e iniciasse a leitura. Eram tantos gatos, de todos os tamanhos, cores e idades, todos expectantes, observando-a detidamente. Um a um, os gatos começaram a abrir a boca e falar, pedir, suplicar para que ela lesse aquele precioso livro para eles, e ela sorriu ao ver tantos gatos falando.
            - Tudo bem. Eu irei ler pra vocês! – disse ela.
            Os gatos soltaram gritos e miados entusiasmados ao ouvirem aquilo. Ela então se sentou e abriu o livro no colo, e os gatos logo a cercaram. Alguns se empoleiravam em seus ombros para melhor verem as letras graúdas e as imagens, uns esticavam os pescoços para melhor verem e seguirem a história, enquanto outros simplesmente ficavam perto, deitando-se e fechando os olhos para melhor imaginarem e viverem aquela fantástica história.
            Karolinne ficou longas horas lendo a história do lendário Rei dos Gatos, que havia sumido há séculos, mas que deixara um importante legado e uma infinidade de súditos que deveriam aguardar pelo seu retorno, que aconteceria quando aquele livro fosse lido por mil e uma meninas especiais, que acreditassem naquelas palavras e lessem aquele livro para mil e um gatos nos dias seguintes à descoberta do livro, na janela de sua casa, e espalhassem aquela história para todos os gatos do mundo, e quando isso acontecesse, que todos os gatos soubessem da história do Rei dos Gatos, ele retornaria e seu reino seria restabelecido, e todas as pessoas do mundo não mais ouviriam os miados dos gatos, mas sim suas verdadeiras vozes.
            A menina terminou a história e respirou fundo duas ou três vezes e ficou completamente em silêncio antes de se dar conta de que estava novamente sozinha entre aquelas estantes. Dos gatos, todos que antes estavam ali, somente um, aquele que a trouxera, permanecia. Ela então se deu conta de que um longo tempo já tinha se passado, de que sua mãe devia estar preocupada com seu sumiço, e saiu correndo daquela casa, levando consigo o livro debaixo do braço.
            Seu instinto a guiou pelas mesmas ruas e becos que tinha percorrido antes, até encontrar o mesmo banco sob a mesma árvore. Correu até lá e ao se sentar, viu sua mãe vindo em sua direção com um sorvete.
            - Trouxe de baunilha, seu sabor favorito – disse a mulher, entregando para a filha o sorvete.
            Karolinne olhou para a mãe, e só então se deu conta de que o tempo não tinha passado. Se perguntou se aquela aventura, aquela perseguição ao gato, a leitura, a história e o livro tinham realmente acontecido.
            - O que é isso? Onde você achou esse livro? – perguntou sua mãe, apontando para o livro que estava embaixo do braço da menina.
            - Esse livro? Ah, eu achei! – falou ela, dando a resposta mais óbvia que toda criança daria numa situação daquelas. A mulher apenas sorriu, passou a mão na cabeça da filha e esperou que ela terminasse de tomar seu sorvete.
            Foram para casa, mas sem pressa de chegar, com Karolinne protegendo seu precioso tesouro.

Naquela noite e nas noites seguintes, assim que todos iam dormir, ela abria a janela de seu quarto e no silêncio da noite, esperava que um gato qualquer passasse por ali, e quando isso acontecia, ela abria o livro e lia a história do Rei dos Gatos. Quando terminava, o gato soltava um miado de aprovação, pulava o muro e ia embora, e ela fechava o livro e ia dormir. Fez isso por muito tempo, por exatas mil e umas noites seguidas, lendo a história e difundindo-a para mil e um gatos. Quando terminou a milésima primeira leitura, fechou o livro e o guardou na sua prateleira de livros.
            O tempo passou, e Karolinne já não era mais uma pequena menina como outrora, e muitas coisas que vivera na infância já eram apenas, agora, vagas lembranças. Havia se tornado uma bela mulher e tinha uma linda filha. Karolinne estava apressada, como sempre andava nos últimos tempos, e caminhava esbarrando nas pessoas pelo centro da cidade, carregando pela mão a filha, que reclamava do calor e do cansaço.
            - Mãe, eu quero um sorvete – pediu a menina.
Karolinne, contrariada, queria ir para casa, onde tinha muita coisa a fazer, mas a filha realmente estava cansada e adorava sorvete. Levou-a até um banco de praça e pediu para que ela ali ficasse, e foi comprar o sorvete da filha.
Enquanto estava na fila para comprar o sorvete, viu a menina se levantar e sair correndo. Pensou, por um instante, em gritar, chamando-a, pois ela poderia se perder, quando viu o que havia chamado a atenção da menina: um gato, o mesmo gato que ela seguira outrora. Ela sorriu por dentro, tomada um turbilhão de lembranças. Comprou um sorvete para si mesma e ficou esperando que filha retornasse, para só então comprar o dela e ver, reconhecer, o livro que ela traria para casa e leria para os gatos, através da janela aberta, pelas mil e uma noites seguintes.

domingo, 15 de dezembro de 2013

Dor e prazer ao escrever cartas



Escrever cartas é doloroso. Dói tatuar cada pedaço de nossa alma via palavras numa folha de uma insensível folha de papel em branco, que de tão insensível, dura e branca, vai se enchendo de ternura, sensibilidade e cores na medida em que a vamos cobrindo-a por inteiro, na frente e no verso, com nossas palavras.
Dói, sim, porque não é fácil para nós aguentar ser torturado e brigar com as palavras, em busca da perfeita, daquela que possa expressar aquilo que sentimos quando estamos empunhados de uma caneta a desenhar letras muitas vezes imprecisas, que formam palavras, que depois, aos poucos, frases que nem sempre condizem e são capazes de falar tanto quanto o nosso coração.
Dói a angústia de não saber exatamente quando a pessoa irá receber a carta, e dói mais ainda não saber como ela irá receber todas aquelas palavras. Dói não saber se ela vai sorrir, se vai chorar, e dói muito mais não estarmos perto, para ao invés de falar através de palavras escritas, falar ao pé do ouvido, sussurrando tudo aquilo que se quer dizer, que nem sempre as palavras são capazes de falar.
Dói, é bem verdade, escrever cartas, mas não é uma dor dolorosa, que nos fere a alma, mas sim uma dor prazerosa. É uma dor de prazer, ou um prazer doloroso que sentimos ao mandar palavras, fragmentos de nossa alma, numa folha de papel dotado, agora que o tatuamos, de tantos sentimentos, para uma pessoa que está muitas vezes tão longe que mesmo com toda a força de nossa voz não se pode alcançar.
Escrever cartas significa que a pessoa está longe, e essa noção de distância, essa dor de saudade, é que dói lá no fundo do peito, mas que justamente por isso, por estar tão longe, está tão perto, se faz tão presente, por isso queremos tanto sua presença.
Dói, mas é prazeroso ter a noção de que os dias sucederam uns aos outros e que a carta já chegou ao destino, de que a pessoa, ao lê-la, sorriu e sentiu tudo aquilo que as palavras, mesmo imprecisas, expressaram.
Mas a dor mais prazerosa, o prazer mais doloroso, é o da angústia, o da espera pela resposta. Passamos dias a fio sem dormir, ansiosos para ter em nossas mãos a folha de papel tatuada com a alma da pessoa. Ficamos expectantes quando vemos o carteiro dobrar a esquina e vir em direção a nossa casa e depositar, na caixa de correio, as correspondências, e ficamos tristes quando, dia após dias, ele não nos traz aquele tesouro pelo qual tanto ansiamos. Imaginamos mil e uma coisas, que vão desde o extravio da preciosa carta até a possibilidade dela ter sido entregue e lida por um outro alguém, que não entende o sentido verdadeiro daquelas palavras ali ditas, dos fatos ali relatados.
Eis que um dia, quando menos esperamos, a carta-resposta chega. Ela pesa em nossas mãos, ela faz o nosso espírito ficar tão leve, e em nossa euforia, ao rasgar o envelope, quando maculamos a preciosa folha de papel que ele guarda. Devoramos (não lemos!) um sem-número de vezes aquelas palavras, e só quando o nosso coração volta a bater normalmente em nosso peito, conseguimos entender cada um daqueles fragmentos de alma ao lê-los.
Depois de sentir vezes sem conta o murmúrio daquelas palavras, dobramos cuidadosamente a folha, respiramos fundo duas ou três vezes e reiniciamos a nossa dor, escrevendo uma nova carta, uma resposta, tatuando fragmentos de nossa alma em uma folha de papel em branco, que a princípio é insensível, mas que aos poucos vai se enchendo de sentimentos inúmeros, e assim segue, em círculo vicioso, as dores e os prazeres a que só uma carta escrita e lida podem proporcionar.

domingo, 1 de dezembro de 2013

O fim de uma historia



Aura fechou os olhos e expirou lentamente. Nunca havia se sentido daquele jeito, nunca havia se entregado daquela maneira. Seu coração batia com força e acelerado e ela ouvia seu eco nos próprios ouvidos.
            Por sua cabeça passou um longo filme... Lembrou-se do início do relacionamento, que se iniciou de forma tão difícil, lenta e fria até. Ele a recebera de forma tão fria, mas ela, em sua ânsia de amar, insistiu, até que ele se abriu e também se entregou por inteiro. Viveram uma vida intensa. Eram como um só. Mas tudo tem seu fim, como uma trágica histórica, e ela sentiu isso antes de saber, antes dele colocar um ponto final naquela história. Aura sofreu por antecedência, ficou dias e noites sem saber como agir nem o que fazer para prolongar aquela relação. Ficou até dias sem falar com ele, sem tocá-lo. Mas ela não resistiu essa distância por muito tempo, pois ele havia se tornado uma droga por que era viciada. Cada encontro, cada contato, cada beijo, para ela, era como se fosse o último. Cada tempo que passavam juntos era um tempo a menos, significava adiantar os ponteiros do relógio, e quando eles se encontrassem no alto, significaria “fim”. Ela chorava dia e noite com essa angústia, com essa dor que aquele fim iminente já lhe trazia; ela sonhava todas as noites com aquele fatídico momento em que veria o último ponto daquela linda história que tiveram juntos.
            Não havia mais como adiar, o fim se aproximava cada vez mais, e agora vinha à galope. Aura agora corria desesperada para os braços dele, fazendo de cada momento o último, o mais intenso daquela história       , sentindo o que restava escorrer por entre seus dedos, com o fim se aproximando mais e mais. Não havia mais o que fazer, não havia como evitar, e o fim, por fim, chegou. Aura chorou copiosamente quando leu nos olhos dele, quando ele, olhando em seus olhos, disse que o fim chegara, que não mais podiam continuar juntos, que cada um tinha que, a partir daquele momento, seguir o seu caminho. Ela não insistiu, pois sabia que de nada adiantaria. Não podia voltar no tempo e viver tudo novamente com a mesma intensidade, e se pudesse, não faria nada diferente: amaria exatamente igual, se entregaria da mesma maneira, sem reservas e sem falsos pudores. Em meio aquelas lágrimas que se brotavam de seus olhos e escorriam por sua face, ela sorriu, e foi esse um sorriso lindo, aberto, ao lembrar dos momentos maravilhosos que viveram juntos.
            Depois do fim, com a dor ainda muito latente, Aura evitou estar no mesmo lugar que ele e mudou até alguns hábitos. Ainda sentia, na ponta dos dedos, o calor do toque, de sua pele, de seu calor, e sorria quando as lembranças lhe tomavam de supetão. Chorava, no entanto, sempre que o via, que ele a tratava com indiferença até. Aura queria correr e abraçá-lo, mas ele sequer se movia de onde estava, e ela se sentia desencorajada para um encontro, para um contato por mínimo que fosse. Ainda pensou em procurá-lo, em pedir mais uma chance, em pedir para reatarem o relacionamento, mas teve medo de, caso isso acontecesse, não ser do mesmo jeito de antes, de não ser o mesmo amor.
            A relação que tiveram fora intensa e marcante, ficando marcada como ferro em brasa na pele de sua alma,  e Aura tinha que reencontrá-lo mais cedo ou mais tarde, tinha que seguir sua vida, e não havia como evita-lo eternamente. Teria que, de alguma forma, em algum momento, estar perto dele, roçar seus dedos novamente nele e talvez até tocá-lo novamente. Respirou fundo duas ou três vezes ao constatar isso, antes de passar por aquela porta e se deparar frente a frente com ele. Abriu a porta lentamente, mantendo os olhos fixos no chão, e só quando não tinha mais o que fazer, levantou a cabeça e o viu ali, parado, olhando fixo para ela. Não sabia dizer se ele sorria ou se a tratava com indiferença, pois na face dele, fechada, ela não conseguia saber. Aura, mesmo com aquela dor provocada por aquele fim abrupto na relação, tinha que viver sua vida, tinha que viver um novo amor, tinha que se entregar novamente ao calor e intensidade de uma nova paixão, e caminhou lentamente, entrando naquela sala. Dirigiu-se lentamente ao mesmo lugar onde o tinha encontrado pela primeira vez e o viu novamente ali, do mesmo jeito, na mesma posição, parado, olhando-a fixamente, mas dessa vez não era pra ele que se dirigia, para ele para quem olhava, mas sim para o livro ao lado. Aura roçou seus dedos nele e até deixou sua mão repousar durante um curto-longo instantes sobre seu corpo e relembrou a história que viveram juntos, mas naquele momento ela estava um novo alguém para se entregar sem reservas, numa nova relação. Escolheu naquela enorme estante um novo livro, abriu-o, respirou fundo e mergulhou, mesmo sabendo que impreterivelmente aquela relação iria acabar, que ela sentiria seu fim se aproximar a medida que as páginas fossem se acabando, que iria sofrer com seu fim, mas aquele era um sofrimento, uma dor, um tormento do qual ela gostava, do qual precisava para viver, pois na vida de um leitor as paixões são intensas, o amor, incondicional, que o fim fatalmente irá chegar, mas é preciso, sempre, voltar a mergulhar, a se entregar, a viver a vida, paixão e história de um novo livro.