quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Espelho Quebrado - a ser lançado em abril de 2010

Mesmo depois de tanto tempo, lembro daquele dia como se fosse ontem, da cena que vi, que ficou gravada para sempre na minha memória, daquela pessoa que eu julgava a mais sólida fortaleza que ruía bem diante de meus olhos e mostrava-se tal como era: uma pessoa sensível, que apresentava, pela primeira vez em sua vida, um sinal de sofrimento, de dor. Nunca eu vira, até então, nada a abalar, nada entristecê-la, até que naquele fatídico momento, quando eu me virei em sua direção e vi, quase invisível a olhos insensíveis, algo que muitos dos que estavam a seu redor não perceberam, mas que eu com meus olhos de criança, com meus olhos atentos àquela a quem tanto amava e admirava, captaram: uma única, solitária e doída lágrima escapar de seus olhos e macular a sua face esquerda. Talvez nem ela mesma tenha dado por isso, tamanha a dor que sentia, tamanha a tristeza que a tomava de assalto, todo o seu ser, roubando toda a sua força, fazendo com que cada célula de seu corpo sentisse aquela sensação de frio cortante, da esperança que escapa, dos momentos de alegria, antes tão frescos em sua memória, parecerem lhe deixar, ficando apenas a tristeza, a dor da perda e a escuridão.
Mas ao vê-la ali, tão frágil, tão só, tão desamparada, como se aquela fortaleza que ela tinha sido até então ameaçasse desabar e mostrar-se humana, fizesse com que eu passasse a admirá-la e estima-la ainda mais. O amor e orgulho que sentia por aquela mulher, por minha mãe, aumentou, e eu soube, naquele momento, o sentimento que a tomava, então eu a compreendi, soube o significava ser Mãe.
Ela acabara receber, na sala de espera do hospital, onde meu irmão estava internado, a notícia de sua morte prematura, quando contava com apenas doze anos.
Naquela época, eu contava com apenas nove anos, e embora não compreendesse, ainda, tudo que acontecia ao meu redor, com as pessoas com quem tinha contato, sabia que havia algo de sério quando meu único irmão foi internado, devido uma doença que eu nunca soube na verdade qual era, mas que sabia que era grave, pois durante os dias em que ele esteve no hospital, eu muito raramente via minha mãe. Ela passava o dia todo fora, trabalhando pela manhã e à tarde, indo visitar Jorge, meu irmão, no seu horário de almoço, e só voltava pra casa à noite, quando, na maioria das vezes, eu já estava dormindo. Uma ou duas vezes eu a ouvi entrar sorrateiramente em meu quarto, tomando cuidado para não fazer barulho, pisando muito leve no chão, para evitar me acordar, e chegar perto de minha cama, de inclinar sobre mim, me cobrir, beijar a minha testa, desejar-me uma boa noite, afagar meus cabelos e se retirar. Também a ouvi certa noite, depois de fechar a porta de meu quarto, conversar com minha tia, com quem eu ficava dia e noite, comentar que estava exausta, que estava a ponto de explodir com aquilo tudo, que não aguentava mais aquela angustia, mas que estava confiante com as notícias que o médico lhe dera naquela noite, que Jorge tivera uma melhora e poderia, logo, logo, voltar para casa, tão logo seu quadro se estabilizasse.
Eu, lógico, naquela idade, não entendia patavina do que elas diziam, mas notava, pelo tom de suas vozes, falando aos sussurros, como se só em tocar naquele assunto significasse algo que despertava seus mais profundos e dolorosos temores, que algo de grave estava acontecendo.
Ao fim de quase duas semanas, estávamos todos no hospital, inclusive eu, pois minha mãe não tinha com quem me deixar e teve que me levar.
Lembro-me muito bem daquela tarde quando esperávamos, tensos, as notícias que o médico deveria trazer. Sabia-se que eram graves, pois sequer deixaram minha mãe ou qualquer outro parente ver meu irmão naquele dia, e todos esperávamos, impacientes, pelo homem que vi, extremamente impessoal em toda a face, mas com olhos impacientes, que percebi, não se fixavam em ninguém, que se desviavam, principalmente de minha mãe. Demoraram-se apenas alguns segundos, eu sei, mas naquele momento, naquele instante, estes passaram tão lento quanto uma eternidade, para ele falar as primeiras palavras, que mesmo antes de serem ditos, todos que estavam ali já sabiam qual eram.
- Jorge, seu filho, faleceu... Nós fizemos tudo para salvá-lo... – disse o médico. Ele falou muitas outras palavras, mas eu não pude entender nada além daquelas palavras, pois aquela sala, que antes estava tão silenciosa, logo se encheu de sons tristes, de gritos desesperançados, de queixas, de dores. E ali estava ela, minha mãe, parada, séria, sem dizer nada, como se não escutasse ou se fosse incapaz de compreender aquelas palavras ditas pelo médico que tentara salvar meu irmão.
Após um curto tempo, percebi um leve tremor em sua face, um breve e quase imperceptível movimento no queixo, depois na boca e na bochecha. Pouco depois começou a brotar uma lágrima, que rolou por sua face. Era uma só, a princípio, mas logo outras se juntaram e ela começou a chorar copiosamente. As lágrimas que rolavam por sua face eram doídas, pois vinham do fundo de seu coração. Suas pernas fraquejaram e ela teve que ser amparada por um tio meu, que por sorte estava a seu lado e foi rápido o suficiente para segura-la antes de ela desabar no chão.
Ali estava aquela mulher a quem eu tanto amava e admirava, a quem eu julgava a mais forte do universo, a mulher sempre sorridente, feliz, que parecia ter sido engolida por aquela outra, tão triste, desesperada devido a morte de seu filho, de seu primeiro filho, a quem ela tinha carregado durante nove meses em seu corpo, a quem ela alimentara, a quem ela educara, que há poucos minutos estava vivo, mas que agora...
Naquele momento, ao ver minha mãe ali, tão frágil, tão triste, eu olhei para a sala onde nos encontrávamos. Ela era pobre em termos de decoração: possuía apenas dois grandes estofados e algumas cadeiras, uma mesa de centro, onde havia algumas revistas, e uma cruz numa das paredes. Eu a contemplei por alguns segundos e perguntei a Ele "por quê?", com minha ingenuidade de criança em busca de respostas por aquilo que me eram incompreensíveis. Voltei a mim quando ouvi que minha mãe voltava a si e falava palavras desconexas, pedindo para ver o filho morto, dizendo que aquilo que ouvira não podia ser verdade. Ao vê-la daquele jeito, eu fui tomado por uma intensa tristeza e senti um frio no estômago e no coração, senti-me sufocado, faltava-me ar e senti as lágrimas brotando em meus olhos e um soluço longo, triste e doloroso me subir pela garganta. Chorei, e muito, naquele momento. Acredito até que aquela foi a primeira vez em que senti tamanha tristeza em minha vida, tamanha dor me tomar o peito, pela perda de meu irmão, mas, principalmente, por ver a dor que afligia a minha mãe.

domingo, 13 de setembro de 2009

Panorama da Literatura Potiguar - artigo


É inegável a mudança que está em curso no panorama da literatura potiguar. O Estado, mais conhecido pela sua produção na área da literatura popular, com inúmeros cordelistas, com os poetas dos final do século XIX e início do XX, tendo alguns, inclusive, participado ativamente das mudanças ocorridas não só na literatura, mas na forma de ver e lidar com as artes na panorama regional e nacional, mas, em termo de nome, tem em Luis da Câmara Cascudo o seu maior ícone. No entanto, Câmara Cascudo, com sua vastíssima obra na área da pesquisa história, folclórica e antropológica, principalmente, pouco produziu no tocante a literatura propriamente dita. Possui livros, histórias belíssimas, principalmente na literatura infanto-juvenil, biografias e contos, mas sua grande contribuição foi, definitivamente, para às ciências humanas.
Mas a literatura potiguar, nesta primeira década do século XXI, está vivendo um dos melhores momentos de sua história. Da terra de Câmara Cascudo, da poesia de cordel e de grandes poetas, como Henrique Castriciano e Auta de Souza, brota uma nova leva de escritores nas mais diversas áreas. Tem-se cronistas cujos talentos são reconhecidos nacionalmente, tendo seus textos publicados em importantes canais de comunicação em todo o país, tem-se contistas ganhando cada vez mais espaço à nível regional e nacional e, também, romancistas tendo cada vez mais reconhecimento dentro e fora das fronteiras do Estado.
É cada vez maior o números de "artistas das letras" brotando das terras potiguares, tendo sua obra lida e elogiada pelos quatro cantos do Estado e ultrapassando fronteiras, chegando a todos os cantos do país. É comum ir a uma livraria, hoje, e encontrar uma extensa programação cultural, de lançamentos, palestras, debates entre escritores. A programação cultural do Estado, em apoio a produção e divulgação da literatura potiguar está cada vez mais presente, com festivais literários, feiras de livros, bienais e encontros de escritores, e ainda será realizado, pela primeira vez, neste mês, a FLIPA, um encontro e festival literário, nos moldes da famosa FLIP (de Parati, RJ), na Praia da Pipa, no litoral Sul do Estado, que representará uma oportunidade ímpar de se debater e se aproximar de grandes nomes da literatura potiguar.
No entanto, apesar do bom momento que vive a literatura potiguar, ainda há problemas que precisam ser tratados com cuidado e seriedade. Um deles é no tocante a ainda dificuldade na hora de se publicar um livro, pois o Estado ainda não conta com uma grande editora, capaz de divulgar e distribuir o livro à nível nacional, ficando isto, muitas vezes, a critério do próprio escritor. Existem, lógico, inúmeros incentivos dados por parte dos governos municipal e estadual, alguns concursos literários, mas a dificuldade, muitas vezes desestimula e chega a vencer o escritor, antes mesmo deste possuir sua obra publicada. Editoras existem, como a Sebo Vermelho, Flor do Sal e, ganhando cada vez mais força e reconhecimento, o selo Jovens Escribas, liderado pelo cronista Carlos Fialho, mas ainda é muito pouco, tamanho o ímpeto criativo de nossos romancistas, contistas, cronistas e poetas. Mas, por incrível que pareça, a maior dificuldade existente é, ainda, o pouco prestígio que se dá aos autores da terra. Faltam leitores de literatura potiguar no Rio Grande do Norte!
Ainda reina, no Estado, um incrível preconceito por parte de alguns leitores, que torcem o rosto quando ouvem a expressão "literatura potiguar", e largam o livro quando percebem que este trata-se de uma produção local, de um autor da terra. No entanto, apesar disso acontecer e de demonstrar o quão pouco se conhece do que está sendo produzido por aqui, a situação tende a mudar, pouco a pouco, um passo depois do outro, e assim os "artistas das letras" tende a ganhar cada vez mais espaço nas estantes dos leitores, não só do Estado, mas de todo o país.
A Educação Literária, a valorização da Literatura Potiguar ainda tem um longo caminho pela frente, mas os primeiros passos, tímidos ainda, foram dados.

sábado, 12 de setembro de 2009

Viagem à Aurora do Mundo - Livro da Semana


Érico Veríssimo, escritor gaúcho, nascido em 1905, é um dos principais nomes da literatura brasileiro do século XX e um dos mais importantes de todos os tempos. Sua vasta obra conta com títulos aclamados pela crítica e público, como Olhai os Lírios do Campo, Clarissa, Senhor Embaixado , Incidente em Antares e, a que talvez seja sua maior obra, O Tempo e o Vento.
Além de romancista, Veríssimo é autor, também, de livros de contos, novelas, ensaios, diários de viagem, como Gato Preto em Campo de Neve e A Volta do Gato Preto, nos quais relata suas impressões das viagens que fez aos Estados Unidos, e um significativo número de obras voltadas para um público infanto-juvenil, como é o caso de Viagem à Aurora do Mundo.
Em Viagem à Aurora do Mundo, a história tem como principal objetivo não a literatura em si, mas sim o conhecimento que o leitor pode obter, de maneira fácil e e agradável, acerca da história do mundo, assim como da evolução dos animais que habitam e habitaram o planeta.
Seu personagem principal é Dagoberto Prata, um romancista que, após receber duras críticas ao seu novo livro, resolve se recolher à São Silvestre, uma pequena cidade de clima agradável e pacata. Lá, o escritor encontra a paz de que necessitava para se reestabelecer, até que estranhos comentários lhe chamam a atenção para o casarão que fica na parte mais afastada da pequena cidade, isolado do resto da cidade. São inúmeros os comentários existentes a respeito das pessoas que habitam tal casarão, que é conhecido como "Vila do Destino".
Dagoberto Prata, movido pela curiosidade, resolve ir até o casarão e lá encontra, como que saída das páginas de seu último livro, uma linda mulher, por quem se apaixona. Não se contendo em apenas observá-la, o romancista pula o muro da residencia para se aproximar dela, sem atendar para o perigo que tal ato poderia gerar. É descoberto enquanto a observava e é levado para dentro do casarão, onde conhece todas aquelas pessoas, tão misteriosas e de quem pouco se sabe na pacata São Silvestre.
Dentro da "Vila do Destino", Dagoberto Prata toma conhecimento de que pessoas daquele grupo de pessoas que ali se encontrava estava empenhada em uma misteriosa pesquisa, na construção de uma fantástica máquina capaz de passar num grande quadro de cristal toda a História do Universo como um verdadeiro filme. Com essa máquina, os personagens preparam-se para embarcar numa fantástica viagem à aurora do mundo.

domingo, 6 de setembro de 2009

é possível uma pessoa iniciar sua "vida de leitor" com a leitura de livros clássicos da literatura mundial?

não existe uma resposta definitiva, uma espécie de lei que nos permita responder a este questionamento com uma aboluta certeza e convicção, pois cada leitor é UM leitor.
embora eu ache que determinados livros, tidos como clássicos, são "intragáveis" se forem lidos sem uma certa bagagem e conhecimento literário e de mundo, quando não se tem ainda desenvolvido o hábito da leitura, acredito que por outro lado existem determinados títulos perfeitamente adequados para se iniciar a pessoa, o leitor em questão, no hábito da leitura. acredito que a leitura de determinados autores, como o Alexandre Dumas, pai, pode ser perfeitamente indicada para se iniciar o leitor não só no hábito da leitura, mas inicia-lo na leitura dos clássicos. além dele, autores como Robert Louis Stenvenson também pode ser perfeitamente indicaco, Walter Scoot, em sua obra mais conhecida, Ivanhoé, também, além de Arthur Conan Doyle, que não é só um autor clássico de leituratura policial e de mistério, mas tornou-se uma grande referencia, um grande clássicos da literatura mundial, além de muitos outros de linguagem fácil, agradável e com a natureza da história com tons de aventura e mistério.
eu poderia me deter aqui por horas a fio, indicando livros e autores clássicos que poderiam ser utilizados como uma "iniciação à leitura", mas não cabe à ocasião fazer isso.
em contrapartida com tudo o que disse de favorável, existem livros e autores clássicos que não são, em absoluto, recomendáveis para se iniciar uma pessoa no hábito da leitura. lógico que há exceções, mas, de maneira geral, eu não os indicaria quando o leitor não tem "conhecimento de mundo" suficiente para se debruçar sobre determinadas obras e autores. é o caso de grandes clássicos, talvez dos maiores da literatura mundial, como "Dom Quixote", "A Divina Comédia", "Os Lusiadas", obras de Shakespeare, "Eneida", entre outros.
no entanto, apesar dessas obras, referencia na literatura mundial, sejam indispensáveis para a formação cultural e intelectual de um leitor, não se deve, em hipótese alguma, menosprezar livros e autores da literatura contemporanea no início da "vida de leitor".
é mérito de alguns autores, como J.K.Rowling, por exemplo, em sua aclamada série "Harry Potter" ter iniciado milhões de leitores em todo o mundo. o livro em si, pode não ser literariamente nenhuma obra-prima, mas possui o mérito de prender o leitor, de instigar sua curiosidade, de mante-lo vidrado a primeira a última página de cada livro da série. depois de "Harry Potter", o leitor, já mais madura, com certeza irá procurar outros livros do mesmo gênero, fantasia, e talvez acabe esbarrando com os de um autor referencia dentro desse gênero, tido como o clássico, como J.R.R.Tolkien. e depois da leitura deste, aí um mundo literário, apenas, é pouco para tal leitor.
existem casos de leitores que iniciaram suas "vidas de leitor" lendo Paulo Coelho (como é o meu caso), mas que, após a leitura desse autor, buscaram outros mundos, outros autores, outras obras, tornando-se mais seletivos e entrando, pouco a pouco, no mundo dos clássicos.
o importante, talvez, não seja com quem você comece, mas sim o fato de começar a ler. depois que se inicia, aí, cada um, por si só, dependendo de seus gostos, de suas predileções literárias, irá procurar seu próprio mundo.
no entanto, uma coisa é indiscutível: a pessoa, não importa que caminho tome, acabará, mais cedo ou mais tarde, topando, em seu caminho, com um livro, com um autor "clássico", que lhe abrirá um mundo com novas perspectivas de leitura.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Malefícios de uma TV a Cabo - crônica


Cansado da mesmice dos programas de televisão e da péssima qualidade da programação, um homem, responsável como era, pensando em sua família, resolveu fazer uma assinatura de uma televisão a Cabo, com milhões de canais disponíveis, com Sinal de Alta Definição, com canais de outros países, tantos que recebeu até como bônus, inteiramente grátis, para assistir durante dois meses, a programação de uma Rede do Afeganistão e outra da Zâmbia!
Agora o homem, ciente do bem que tinha feito à sua família, podia sair de casa, para ir trabalhar, descansado, pois sabia que seus filhos menores assistiam aos melhores desenhos pela manhã, sua esposa prepara uma belíssima refeição, assistindo ao melhor programa de receitas da televisão mundial, uma de suas filhas assistia à programação vespertina, recheada de boa informação e cultura, enquanto o filho mais velho podia assistir aos seus seriados favoritos e à noite a família inteira se reunia de frente à televisão para assistir a um filme. Além disso, sua esposa podia assistir ás melhores novelas, sua outra filha podia assistir à programação de documentários sobre o mundo animal até seu cunhado deu para lhe visitar todas às terças-feiras para assistir àquele programa que, pelo jeito, só passava em sua televisão.
E o que era só satisfação na primeira semana, logo se tornou uma preocupação, pois o homem percebeu que sua televisão ficava ligada vinte e quatro horas por dia. Era comum ele acordar de madrugada e quando se dirigia à cozinha para pegar um copo d’água ver um de seus filhos assistindo a reprise do programa que tinha perdido na manhã anterior ou simplesmente assistindo-o novamente!
A fama de sua televisão, dos canais que havia assinado era tamanha que logo todos em seu condomínio vinham assistir televisão em sua casa, de forma que era comum, agora, ele chegar a sua casa e se deparar com o vizinho de frente saindo, enquanto a de cima vinha chegando, e o de lado sentando-se no seu lugar favorito do sofá.
Houve uma ocasião, até, que ele teve que pedir licença para entrar em sua própria casa, de tanta gente que tinha lá para assistir às notícias sobre uma nova beldade do mundo pop da última semana.
Ele não conseguia assistir aos programas que mais gostava, pois a televisão estava sempre ocupada e ele não conseguia sequer chegar perto do controle remoto, pois este era um verdadeiro motivo de disputa, gerava grandes discórdias, e conquistá-lo era o mesmo que chegar a tomar a bandeira do adversário numa batalha campal.
Mas a gota d’água foi quando ele chegou em casa e viu o seu vizinho, aquele com quem mal falava, abrir a sua geladeira e pegar uma cerveja, aquela latinha que ele tinha deixado dentro do congelador na manhã para que, quando chegasse em casa, à noite, ela estivesse bem gelada, como ele gostava, e mais ainda quando a síndica do condomínio lhe pediu para que ele trouxesse mais pipoca. Ele respirou fundo duas ou três vezes, contou até mil, mas não houve jeito de segurar o ódio que sentia naquele momento ante tamanho descaramento, com pessoas tão folgadas quanto aquelas, e gritou, em altos berros, para que todos saíssem de sua casa imediatamente. Mas a única coisa que conseguiu foi a resposta de uma pessoa, que pediu que ele falasse mais baixo, pois queria escutar o que o apresentador do programa falava, e de outro, que perguntou se ele poderia esperar só até o final do programa, depois iria embora.
Não se contendo em si, o homem pegou uma a uma, aquelas pessoas, e as levou para fora de sua casa e quando achou que tinha terminado, viu que ainda faltava um: aquele seu vizinho mala, que só escutava som no último volume e que sempre que o via lhe alugar horas e horas para falar sobre política-religião-economia-futebol, lhe perguntar, ao ver a sala vazia:
- Onde está todo mundo? Eu perdi o melhor do programa?
O homem, então, já inteiramente sem paciência, o expulsou de sua casa, sem que o outro soubesse o motivo daquela falta de educação. E ainda falou, quando teve a porta fechada à sua cara:
- Que homem mais mal educado! A gente não pode mais nem assistir televisão em paz, na casa dele!
Bufando, o homem convocou todos em sua casa para anunciar que iria cancelar a assinatura da TV a Cabo.
Houve muito choro e promessas para que ele não fizesse aquilo, mas o homem estava irredutível, e ligou imediatamente para a assistência técnica, pedindo para que um técnico viesse imediatamente à sua casa para levar embora o equipamento e cancelar a assinatura.
Cansado, o homem se jogou no sofá e enquanto esperava pelo técnico, ligou a TV, justamente na hora em que começava o jogo de seu time de futebol do coração. Começou a assistir ao jogo e se esqueceu do mundo ao seu redor, tanto que nem escutou a campainha, e sua esposa teve que vir abrir a porta e ver de quem se tratava.
- Amor? – chamou ela.
Ele nem olhou, de tão entretido que estava com o jogo.
- Amor?
- Oi?
- O rapaz da TV a Cabo está aqui.
- O que houve? Algum problema?
- Você mandou chamá-lo.
- Ah, foi mesmo! Manda ele voltar aqui depois, quando acabar esse jogo – disse o homem. Levantou-se de um salto, para comemorar, pois seu time acabara de marcar um gol.
A esposa, então, dispensou o técnico, e o homem continuou a assistir televisão, esquecendo-se completamente do que tinha acabado de acontecer, tomando a decisão de, assim que acabar o jogo, ligar para fazer a assinatura para assistir a todos os jogos de seu time no campeonato daquele ano.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

O Garoto no Convés - livro da semana


Acaba de ser lançado O Garoto no Convés, o novo livro do escritor irlandês John Boyne, que ficou mundialmente conhecido com O Menino do Pijama Listrado, livro este que chegou, inclusive, a ser adaptado para o cinema em 2008. Nesta obra, o autor foi consagrado pelo seu estilo peculiar e delicado na escrita, com linguagem muitas vezes tão simplória que parece, mesmo, ser contada por uma criança. Na história de O Menino do Pijama Listrado, apesar do tema (holocausto) reabrir feridas e chocar ainda muita gente em todo o mundo, o autor conseguiu, de maneira magistral, dar um clima de inocencia e delicadeza, que permeia toda a história, com a amizade entre duas crianças, dos meninos, que não sabem o que é nazismo, preconceito e holocausto, pois são apenas duas crianças, dois amigos.
Em seu novo livro, O Garoto no Convés, John Boyne continua com sua maneira singele e delicada de contar histórias, sendo que adicionada de uma carga emocional e dramática muito mais densa do que a encontrada em O Menino do Pijama Listrado.
Em O Garoto no Convés, nos deparamos com John Jacob Turnstile, um garoto sem pai nem mãe, cuja única "família" que conhece é a dos meninos com que mora e o Sr. Lewis, um homem que o acolheu e lhe dá uma cama para dormir e comida, pelo que o menino é grato, apesar da exploração a que está sujeito. O menino vive a perambular pelas ruas de Portsmouth, cometendo pequenos furtos, até que, dois dias antes do Natal, sua vida muda completamente.
John Jacob Turnstile, que recém-completou quatorze anos, tem uma espécie de "freguês predileto", um cavalheiro que sempre vai a uma livraria e, enquanto escolhe os livros, distraído, o menino consegue, sempre, lhe furtar alguma coisa. Mas naquele fatídico dia, o cavalheiro nota o menino, e resolve entabular conversa com ele. O homem fica impressionado com a conversa do menino, que diz já ter lido livros e tem como sonho conhecer a China, lugar longínquo que tomou conhecimento através dos livros que leu. Ao fim da conversa, quando o cavalheiro dá as costas, o menino lhe furta o relógio, que parecia ter sido posto de maneira descuidada no bolso da calça justamente para ser levado, e sai caminhando tranquilamente pelas ruas da cidade, como se nada houvesse acontecido. No entanto, apesar de não ter sido pego em seu ato pelo cavalheiro a quem acabara de furtar o relógio, o menino foi visto por pessoas na rua, que o prenderam. Um guarda, que estava nas proximidades, pegou-o e mesmo sob a alegação do cavalheiro, que o desejava deixar livre, levou-o a julgamento numa cidade vizinha, por um juiz que já o tinha julgado, e punido, em ocasiões anteriores.
John Jacob Turnstile é levado a julgamento e recebe uma pena exemplar, que não chega a ser condizente com o delito que cometeu, e ele terá que passar doze meses encarcerado. Mas quando está para ser levado para cumprir sua pena, o cavalheiro de quem furtara o relógio apela ao juiz e consegue uma "mudança na pena", caso o garoto aceite: ele será embarcado num navio prestes a zarpar e irá trabalhar como criado do capitão, e após a viagem, quando retornar, será estará livre. John Jacob Turnstile, sabendo que está ali uma maneira de se ver livre da pena que lhe foi imposta e também uma forma de enfrentar, na viagem, inúmeras aventuras, tal como ele imaginava que eram recheadas a vida no mar, aceita a proposta, e embarca no Bounty, um navio que irá leva-lo aos confins do mundo. No entanto, o menino logo percebe que a vida em alto-mar não é exatamente aquela que ele imaginava que fosse encontrar, cheia de aventuras.
Um livro emocionante e magnificamente bem escrito, O Garoto No Convés é uma história marcante, que, apesar de todos os dramas, de toda a carga emocional de que está repleto, é contado de uma forma tão delicada e sutil que envolve o leitor da primeira à última página.