domingo, 30 de junho de 2013

a fúria do céu



Caía uma tempestade lá fora quando acordei. O barulho do vento, o ribombar dos trovões e as luzes dos relâmpagos e dos raios acabaram por me despertar. Fiquei parado, deitado como estava, debaixo do meu cobertor, ouvindo os sons da fúria lá fora. Fazia frio e a chuva parecia que nunca mais iria cessar como se tivesse se iniciando um dilúvio naquele instante. Do lado de fora não se ouvia um único som que não fosse o da chuva caindo e dos trovões.
Tentei fechar os olhos e obrigar meu corpo a pegar no sono, mas não consegui. O cobertor me pesava sobre o corpo e o arremessei para longe. Sentia calor e não mais frio. Abri os olhos, irrequieto como estava, me mexendo de um lado para outro na cama, e a princípio não vi nada naquela escuridão, até que a luz de um relâmpago entrou pela fresta na janela de meu quarto, iluminando tudo ao meu redor como se fosse dia.
Levantei-me e fiquei andando de um lado pro outro pelo quarto, ouvindo barulho da chuva e do vento tamborilando na janela de meu quarto. Era um barulho ensurdecedor que me dava medo. Mas eis que um barulho mais alto do que toda aquela fúria do céu me chamou a atenção. Era como uma suave música, inebriante mesmo. Fechei os olhos para ouvi-la melhor e consegui distinguir o som de mil e um instrumentos sendo tocados juntos.
Abri a janela e fui recebido pela carícia das lágrimas do céu, do toque frio do vento e por aqueles mil sons que vinham de todos os cantos. Sai de casa pulando pela janela e me vi no meio daquela tempestade, com os braços abertos, tomando um banho de chuva, escutando aquele maravilhoso e pungente som, quando, subitamente, um vento me pegou pelos braços e me conduziu numa dança sem passos marcados e definidos.
Naquela dança que durou a noite inteira, no meio daquela chuva, me dei conta que toda aquela tempestade, ventos, trovões, raios e relâmpagos não significavam a fúria do céu, mas sim a sua festa, para a qual eu tinha sido convidada.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

A mulher que andava nas nuvens



Ela andava distraída nos últimos dias, alheia a tudo que acontecia ao seu redor. As pessoas próximas começaram a se preocupar e vez por outra uma tentava lhe indagar a respeito dos motivos daquela súbita mudança. Ela, no entanto, não via motivos de por que tanto alarde. Sentia-se simplesmente bem, e se andava distraída era por que algo de mais importante exigia a sua atenção mais do que a rotina do seu dia-a-dia. Ela, que sempre acordara tão tarde, andava sempre às pressas, muitas vezes atrasada entre um compromisso e outro, passou a acordar cedo, todos os dias, só para ser a primeira a ver o primeiro raio de sol a surgir no horizonte, só para ser a primeira a ouvir o saldar dos pássaros para um novo dia que estava nascendo. Passou a andar sem a menor pressa, e agindo assim passou a chegar pontualmente a todos os seus compromissos.
            As pessoas não notavam as mudanças positivas ocorridas nela. Se por acaso a viam sorrir, diziam que ela ria para o nada, como uma louca, mas se esqueciam de ver que ela sorria de volta para uma criança, para uma flor ou simplesmente por que estava feliz ou por que se sentia viva. As pessoas não viam, não compreendiam os seus motivos, e atribuíam a sua nova forma de ver e sentir a vida a um mal-estar súbito, a uma loucura que a tinha invadido e tomado de supetão. Ela, alheia a tudo que lhe falavam pelas costas, sequer escutava as palavras de censura que lhe eram jogadas. Preferia dar a devida atenção, escutar o que realmente tinha importância: o canto dos pássaros, o barulho do vento e até o da chuva que caía ao fim da tarde.
            Ela, só por andar despreocupada com os assuntos tão banais, que não mereciam grandes preocupações, fora tachada de louca; por não se preocupar e se prender a uma rotina, de desleixada; por prestar atenção às coisas simples da vida, de “aérea”. Chamaram um médico, que a examinou minunciosamente e, ao término, uma constatação: havia poesia em excesso em sua vida. Parecia, segundo as palavras do médico, que a poesia da vida tinha lhe atacado e era a causa de sua estranheza. As pessoas começaram, então, uma busca desesperada por uma cura, por algo que a trouxesse de volta à vida normal.
Submeteram-na a um rígido tratamento de controle de sua sanidade. Trancaram-na em um escritório e lhe deram pilhas e mais pilhas de documentos para analisar, mandaram que preparasse milhares de relatórios e participasse de inúmeras reuniões. Ela aceitava tudo aquilo passivamente, sem reclamar. E, ao sair do trabalho, à noite, completamente esgotada física e mentalmente, sentia-se triste, por não ver mais o sol no céu, mas percebeu que havia algo se não tão grandioso, igualmente belo: a lua e as estrelas. Passou, então, a, sempre que saía do trabalho, por mais cansada que estivesse, olhar para o céu e vê-lo salpicado de estrelas e a contemplar a esplendorosa lua, que brilhava majestosa, solta no firmamento.
As pessoas, vendo que não havia cura para aquela poesia pela vida por que ela fora tomada, passaram a vê-la como “uma pessoa sem cura”. Deixaram, então, que vivesse a sua vida como bem entendesse. No entanto, antes de tomarem tal decisão, ainda a rotularam de “a mulher que andava nas nuvens”, só por que ela tinha por hábito olhar para o céu, pelo menos uma vez por dia respirar fundo duas ou três vezes, e deixar que aquela paz, que aquela paz da vida lhe absorvesse por inteiro.

sábado, 22 de junho de 2013

O homem que não tinha tempo



Ele tinha muita pressa. Corria sem parar de um lado para o outro, impaciente. Não conseguia conceber a ideia de esperar um pouco para que as coisas dessem certo: queria tudo “pra ontem!”, como costumava dizer. Para ele, “desperdiçar tempo é desperdiçar dinheiro”, e ele nunca tinha tempo algum para nada, nem para usufruir de todo o dinheiro que tinha conseguido acumular ao longo dos anos, fruto de seu trabalho e da falta de tempo. Contava os segundos. Tudo seu era rigorosamente cronometrado, desde as horas de sono, o tempo do banho e até o tempo dedicado para fazer amor com sua esposa; esposa com quem ele nunca saia à noite ou numa tarde de domingo, com quem ele vivia há anos, mas nem ele mesmo sabia há tanto tempo estavam juntos (logo ele, que tinha “o tempo nas mãos”).
            Seu tempo ia passando rápido, e ele sempre a reclamar que não tinha tempo para nada. Seus filhos foram crescendo sem que ele se desse conta. Um dia, haviam nascido, passado algumas noites chorando (incomodando seu precioso tempo dedicado ao sono), e na hora seguinte estavam já adolescentes, entrando na universidade, para em seguida já serem adultos, constituindo suas próprias família, e só percebeu isso, que seus filhos não moravam mais na mesma casa que ele, quando, por um acaso, ele estava em casa, num feriado, quando não tinha nada para fazer, que os chamou. Ninguém respondeu. A enorme casa onde morava estava vazia. Tornou a chamar um a um pelos nomes, e a única resposta que teve foi o silêncio. Abriu a enorme e pesada porta do seu escritório e olhou pelo longo corredor. Nenhum eco de um único passo! Voltou contrariado para dentro do escritório, quando bateu os olhos numa série de porta-retratos. Neles havia fotos de todos os principais momentos da vida da família: a esposa grávida, os meninos pequenos, os primeiros passos, os aniversários, fotos de escola, viagens na adolescência, formatura, casamentos, entre outros tantos momentos retratados. Em todas as fotos havia algo em comum: em nenhuma delas, ele estava presente. Lembrou-se, então, das desculpas que dera para cada uma daquelas ausências: não tinha tempo para estar presente.
            Sentia, agora, o peso da idade, dos anos acumulados sobre os ombros e do tempo perdido. Fechou os olhos e jogou todo o peso de seu corpo desabando na poltrona, que protestou contra aquele repentino golpe. Numa mesa ele viu uma foto de sua esposa, uma foto antiga, de quando se conheceram. Estava linda, com seu sorriso radiante naquele dia, e ele sorriu ante essa lembrança. Chamou-a pelo nome, depois pelos apelidos carinhosos com que a tratava. Ela não apareceu. Tornou a chamar, quase gritando, com insistência, até perder a voz. Quando cansou, deu por si e os ecos de uma lembrança, de palavras, começaram a vir à sua mente. Nessas palavras, que lhe chegaram vindas de tão longe, lhe davam conta da morte repentina de sua esposa. Ele estava envolvido, como sempre, em importantes negócios, e não chegou a tempo do velório e enterro. Apareceu em casa vários dias depois, e mesmo muito triste pela perda de sua companheira de tantos e tão longos anos, só ficou uns breves minutos no cemitério, em frente a sepultura da esposa, esperando em silencio que, de alguma forma, ela lhe dissesse algumas palavras que lhe desculpassem por mais essa falta cometida pela falta de tempo. Sentiu-se decepcionado, como que tivesse perdido um precioso tempo ali, e não obtivera resposta alguma.
            Com os olhos marejados das lágrimas que nunca tivera tempo de dar vazão, levantou-se e, às cegas, caminhou pelos amplos e vazios aposentos de sua casa. Viu os quartos dos filhos como nunca havia visto antes, passou por enormes salas que nunca eram usadas, pela cozinha ampla tão com cheiro de vazia e entrou no seu quarto e se sentou na cama que dividira com a esposa. Ali chorou copiosamente, como nunca antes havia chorado em sua vida. Quando o pranto cessou, levantou-se e caminhou a esmo pelos cômodos da casa, todos repletos de ecos de lembranças às quais ele não tinha, pois não estivera presente pela simples falta de tempo para coisas tão banais (e essenciais) da vida!
            Em sua caminhada pela casa vazia, seus passos acabaram por levá-lo até um enorme espelho. Ele então levantou a cabeça e se mirou nele. Não reconhecia aquele homem que via no reflexo do espelho. Aquele rosto não era o seu, aqueles cabelos, aquelas rugas, aquela expressão cansada, aqueles olhos... nada naquele que via no espelho representava ele! Mas ao se mirar melhor, percebeu que aquele no reflexo do espelho era ele, sim, muito mais velho, tendo sofrido a ação do tempo e dos anos passados, pesados, sobre seus ombros. E enquanto se olhava no espelho, percebeu uma sombra se aproximando lentamente, e foi só então, quando viu sua face, se deu conta de que o seu tempo tinha findado, de que naquele momento, realmente, não lhe restava mais tempo.

terça-feira, 11 de junho de 2013

O silêncio das montanhas


Desde o lançamento do livro Cidade do Sol, ocorrido em 2007 (no Brasil), temos nos sentido meio órfãos de Khaled Hosseini. Apenas dois anos antes, tínhamos sido arrebatados pelo primeiro livro do autor, O Caçador de Pipas, e nesse segundo livro, nossa ansiedade era tamanha, que não tivemos a oportunidade de saboreá-lo, acabando, pois, por devorá-lo. Foram esses, dois livros muito intensos, com carga emocional muito forte, com personagens muito bem construídos, com dramas muito reais. Depois desse segundo livro, ficamos a viver num estado letárgico, numa expectativa, numa ansiedade-comedida-silenciosa, até que ouvimos rumores (a princípio, eram apenas informações passadas de boca a boca, em que ninguém tinha nada de mais concreto para nos transmitir) sobre o lançamento de novo livro do autor. Nós, leitores órfãos, começamos, então, a deixar transparecer a nossa ansiedade. A cada nova notícia oficial que era vinculada, nossas expectativas aumentavam cada vez mais. Divulgaram o título, e ficamos imaginando qual seria o enredo; divulgaram uma primeira sinopse, ficamos ainda mais ansiosos. Passamos, então, a contar os dias para o lançamento do livro (torcendo para que não acontecesse nenhum atraso de um diazinho que seja!), até que finalmente os livros estavam ali, ao alcance de nossas mãos, nas mesas e prateleiras de todas as livrarias.
            Os órfãos correram às livrarias para serem os primeiros a adquirirem seus exemplares e serem os primeiros a ler e a opinar sobre o livro. Eu, por mais ansioso e expectante que estivesse, preferi esperar uns dias, para ouvir as primeiras opiniões e também para terminar de ler o livro que estava lendo. Fiquei feliz com algumas opiniões, mas também triste, pois vi no semblante de algumas pessoas, leitores desde sempre de Hosseini, certo “desapontamento” com esse novo livro. Alguns destes falaram que “o livro era bom, mas nem tanto”, que ele “tinha se perdido”, que ele “não era o mesmo autor que escreveu O caçador de pipas e Cidade do sol”, que ele “não era o mesmo Hosseini de outros tempos”, e coisas do tipo. Eu fiquei “com o ouvido em pé” ante tais críticas, e mais curioso ainda para ler tal livro. Mas seguirei um pouco minha ansiedade, esperando que a “poeira baixasse um pouco”, para ouvir, só então, as opiniões melhor formada de algumas pessoas/ leitores.
            Chegou, finalmente, a hora. Peguei o livro, mas para não incorrer no risco de ser injusto num julgamento sobre a obra, preferi deixá-lo “apurando” na minha estante, enquanto terminava a leitura de um outro livro. Quando senti que chegava o momento para lê-lo, que me sentei (deitei) em meu sofá, respirei fundo duas ou três vezes, e mergulhei de cabeça nas páginas e palavras mágicas de Hosseini.
            O Silêncio das Montanhas é, realmente, um livro muito diferente dos anteriores, e concordo em parte com a opinião de alguns que dizem que “nem parece Hosseini...”, no entanto, mesmo não sendo o mesmo, o autor, esse tão nosso (des)conhecido consegue nos surpreender enormemente. Nesse livro, Hosseini nos apresenta uma face sua que talvez tenha passado despercebida nos seus outros livros. Em O Silêncio das Montanhas transborda um lado mais lírico e suave do autor. Continuamos, é bem verdade, a nos deparar com o cenário tão nosso conhecido, com o lado imensamente belo do Afeganistão, dos valores sagrados da terra, do belo orgulho do seu povo, de seus apegos e suas belezas, mas também nos deparamos com histórias tristes, solitárias, com grandes e mais complexos dramas, o que nos faz viajar no tempo e voltar alguns anos (e livros) atrás e nos faz reviver o prazer da leitura de O Caçador de Pipas e A Cidade do Sol.
            À medida que mergulhava e permanecia submerso nas inúmeras histórias de O Silêncio das Montanhas, fui percebendo o fundamento das críticas de alguns leitores e entendendo parte de suas decepções. Esse novo livro do Hosseini, é como uma teia de fatos que se relacionam, uma teia de personagens, mundos e histórias que parecem soltas, diferente dos livros anteriores, em que há uma história e um foco mais centrado na vida de determinado personagem, em dramas específicos. Nesse, a história é conduzida mais solta, sem um foco específico dentro da história. Sim, há um fato em comum que liga a vida de todos aqueles personagens, há um drama em comum que mudou a vida de todos eles em determinado momento de suas vidas, e isso, essas ligações, faz com que reconheçamos o nosso tão familiar Khaled Hosseini.
            O Silêncio das Montanhas é um livro lírico, bem diferente dos outros livro do autor, é bem verdade, mas que possui a marca tão familiar, tão nossa conhecida de Khaled Hosseini. É uma obra que possui o tradicional pendor para o poético das imagens, uma saudável nostalgia da antiga Cabul que as palavras do autor exalam e um lado humano, que chora, que sente dor, mas que ri e que ama intensamente a vida.
            O Silêncio das Montanhas é um livro que guarda muito do “antigo Hosseini”, mas que tem acrescido muito de um novo autor que surge, que cativa, que envolve e que nos mantém mergulhados da primeira à última página do livro, que nos mantém presos da primeira à última história.