Não consigo
mais escrever. Não sei o que se passa comigo, que fico horas e horas a fio com
uma folha de papel em branco e uma caneta em mãos, e, quando me dou conta, vi
que os ponteiros do relógio deram uma volta completa e a folha continua ali, em
branco, mesmo eu estando de posse de um instrumento capaz de riscá-la por
inteiro. Mas não! Eu simplesmente não consegui riscá-la, não consegui empunhar
a espada/caneta e, tal qual Dom Quixote, ver, na folha em branco, um dragão e
lutar contra ele. Talvez veio a mim o que, felizmente, não chegou (ou chegou
muito tarde) ao Cavaleiro da Triste Figura: a lucidez!
Talvez seja isso mesmo: eu estou
lúcido! e, para escrever, se é necessária certa dose de desprendimento, certa inlucidez,
certa toque de fantasia, e eu não consigo mais fantasiar. Talvez esteja com a
minha fantasia aprisionada ou talvez esteja simplesmente preso por um algo que,
mais cedo ou mais tarde, sempre nos alcança e exige de nós mais do que podemos
dar: a rotina. A rotina é cruel. Ela aprisiona, toma a nossa inspiração, a
nossa disposição (física e mental) e nos rouba inteiramente o nosso precioso tempo. Da rotina ninguém consegue
fugir. No máximo a gente a vai enrolando, e ela, esperta como é, acaba se
deixando levar. Mas chega uma hora que ela nos pega, nos abraça e diz que dela
ninguém escapa! E quando se é realmente pego pela rotina, quando se está em
suas mãos, nos tornamos seus escravos e lhe damos tudo que nos é mais precioso,
e o maior castigo, justamente por termos tentado nos esconder dela, reside na
lucidez. Ela exige que sejamos, sempre, durante as 24 horas do dia, lúcidos. Não
nos é permitida sequer devaneio nem quando estamos sonhando. Os sonhos
tornam-se verdadeiras projeções de nosso dia a dia, e não é permitido, nem ali,
a entrada da fantasia.
A rotina, portanto, está
intrinsecamente relacionada à lucidez, e esta, por sua vez, age como uma carcereira
da fantasia, e com isso perde-se a inspiração, seja ela a serviço do que for. O
pintor, sem fantasia, sem inspiração, já não consegue mais pintar, e se o
tenta, suas pinceladas saem grosseiras, sem cor, sem brilho, como que
artificiais. O músico já não mais compõe, e, se tenta, o máximo que consegue
extrair dos instrumentos são barulhos idênticos aos das buzinas dos carros e
aos dos passos das pessoas correndo apressadas de um lado para o outro. O escritor,
como que cego, já não mais vê poesia. Em ambos os casos o que há comum está no
fato de que o que antes eram seus instrumentos de trabalho, agora são
verdadeiras armas contra e com as quais têm que lutar diariamente em busca da
inspiração perdida/aprisionada.
O artista, seja ele aquele que
empunha um pincel, uma caneta ou um instrumento musical, é um não-lúcido nato,
é um fantasista, é um alguém que, mesmo quando engolido pela rotina, consegue
encontrar um misero segundo, uma brecha no espaço-tempo e fugir, e nessa mera
fração de tempo construir um mundo à parte em que segundos são valiosos como
uma eternidade.
Ser artista e viver e ver a sua
inspiração limitada/aprisionada é sofrer em silêncio, é engolir o choro a cada
vez que tenta produzir e liberar a sua arte e vê que nada sai de suas mãos. Mas
ele, mesmo sofrendo, por amar e acreditar naquilo que faz, no poder de sua
arte, ainda continua, persistente, a tentar tirar leite de pedra, como se diz
popularmente, por mais que a pedra, por vezes, não lhe dê leite, no entanto ele
continua a tentar, pois crê que, mais cedo ou mais tarde, irá encontrar uma que
lhe dará de bom grado o néctar necessário à vida, à sua arte.