quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

O Livro do Rei dos Gatos

A pequena Karolinne andava segurando firmemente na mão protetora de sua mãe. Tinha medo de se perder no meio daquela multidão, com pessoas andando apressadas de um lado para o outro. Sua mãe caminhava apressada, pois ainda tinha muito até o final daquele dia, e vez por outra, quando a pequena menina diminuía o passo para observar algo que lhe chamava a atenção, a mulher a puxava bruscamente.
            Era meio dia, horário em que as pessoas estão mais apressadas, seja para correrem para casa a fim de fazerem uma breve refeição e retomarem em seguida para a segunda parte de sua jornada de trabalho, seja para fugirem do sol inclemente, buscando desesperadamente por uma sombra. O barulho das ruas era ensurdecedor, com carros buzinando, com o barulho dos motores, com as lojas anunciando as ofertas em alto-falantes, com as pessoas falando alto para poderem se fazer ouvir, e a menina, cansada, era quase arrastada por sua mãe, que queria fugir o quanto antes daquele caos urbano de centro de cidade. Karolinne estava com calor e ao ver um carrinho de sorvete, pediu para sua mãe comprar um. A mulher, a princípio relutante, pois não queria se atrasar, negou o pedido da filha, mas não conseguiu resistir aqueles lindos e brilhantes olhos suplicantes.
            - ‘Tá bom, Karol! Vou comprar seu sorvete, mas fique exatamente aqui – falou a mulher, deixando a filha sentada num banco enquanto ia comprar o que a filha pedira.
            A menina, comportada, ficou exatamente como e onde a mãe mandara, sentada e protegida sob sombra de uma frondosa árvore, vendo a mulher se fundir à multidão. Ficou balançando suas perninhas curtas, olhando as pessoas caminhando apressadas, indo de um lugar para o outro. Olhava, vez por outra, para o céu, que estava de um azul claro, belo, naquele horário, sem nenhuma nuvem. As folhas da árvore não se moviam um centímetro sequer e a menina sentia o suor deixando grudados fios de cabelo no alto da cabeça. Fechou os olhos e sentiu uma suave e fria brisa lhe envolver. Quando abriu os olhos, viu, parado, a poucos metros de onde estava, um gato cinza lhe olhando nos olhos. A menina achou estranho um gato ali, despercebido entre tantas pessoas. Sorriu para ele e o chamou com sua mãozinha, mas o gato não deu um único passo em sua direção, mas balançou o rabo e se virou. Com um andar suave, começou a passar por entre as pernas das pessoas, que sequer o notavam. A menina, curiosa, olhou para o lado, para onde sua mãe tinha ido, e a viu ainda na fila para comprar o sorvete, e olhou para onde o gato sumira, e viu apenas a ponta de sua cauda. Não pensou duas vezes e saltou no chão e correu em direção ao gato, chamando-o. Passou esbarrando nas pessoas, que desviavam dela e gritavam às suas costas “cuidado por onde anda, menina!”. Perdeu de vista duas ou três vezes o gato, mas logo encontrava seu rastro, a ponta de seu rabo dobrando uma esquina ou outra. Corria o máximo que lhe permitiam suas pernas curtas. Passou por becos estreitos por onde só andavam umas poucas pessoas, atravessou ruas antigas pelas quais ela não lembrava de ter passado, até que se viu sozinha num beco aparentemente sem saída. Com a certeza de que tinha se perdido, sentiu as lágrimas lhe vindo aos olhos e a garganta ficar apertada com um soluço, quando viu, pouco a sua frente, o gato, que estava como que lhe esperando. Ele miou e se virou, atravessando as grades de uma enorme casa. A menina correu até onde estava, implorando para que o bichano a esperasse, mas ele não lhe deu ouvidos.
            Karolinne parou em frente a um casarão abandonado, com erva daninha cobrindo toda a entrada e com as grades enferrujadas. Sentiu certo medo, pois casarões daquele tipo lhe lembravam os fantasmas e bruxas que habitavam casas daquele tipo nas histórias que li e nos filmes que assistia, mas ao ver o gato entrando por aquela porta, seu medo se dissipou e ela empurrou o portão enferrujado, que abriu facilmente, dando-lhe passagem. Ela correu até a porta, que estava parcialmente aberta, e a empurrou para poder entrar, e tal não foi a surpresa ao ver, ao invés de um interior deteriorado, de uma casa velha como sua fachada deduzia, uma imensidão de estantes e livros, tudo organizado, bonito, convidativo a um passeio nas páginas e melífluas palavras de um autor.
            Andou pelos corredores atulhados de livros, com estantes do chão ao teto dos mais variados títulos e se perdeu e se achou um sem número de vezes, deixando-se guiar apenas pelo instinto. Passava a mão nas lombadas dos livros e vez por outra tirava um ou outro para folhear. Um livro lhe chamou a atenção, e ela sentiu uma força irresistível vindo dele, como se ele estivesse clamando para ser lido. Karolinne o retirou da estante. Era um livro comum entre tantos outros livros iguais na sua aparência, tinha uma capa dura e não era tão volumoso, era repleto de belas ilustrações e a história era a de um Rei Gato. Só então, ao ver o título do livro, foi que ela se lembrou que tinha esquecido completamente do gato que seguira, que a conduzira até ali. Fechou o livro de supetão e levantou a cabeça e se espantou a ver não só um gato, mas vários ao seu redor, e entre eles, aquele gato cinza que a trouxera até ali. Sentiu o coração acelerar ao se ver cercada por tantos gatos, mas aquele que havia seguido deu um passo á frente dos demais, abriu a boca, mas ao invés de soltar um miado, falou suavemente.
            - Não tenha medo, Linda Menina. Nós não lhe faremos nenhum mal. Eu só lhe trouxe até aqui para que você encontrasse entre esses tantos livros que aqui estão, aquele que nos é o mais precioso, o que tem a mais bela história, e queria que você o lesse para nós.
            A menina ficou estática, pois nunca tinha visto um gato falando. Olhou para os outros e os viu sentando-se e assentindo, esperando para que ela abrisse novamente o livro e iniciasse a leitura. Eram tantos gatos, de todos os tamanhos, cores e idades, todos expectantes, observando-a detidamente. Um a um, os gatos começaram a abrir a boca e falar, pedir, suplicar para que ela lesse aquele precioso livro para eles, e ela sorriu ao ver tantos gatos falando.
            - Tudo bem. Eu irei ler pra vocês! – disse ela.
            Os gatos soltaram gritos e miados entusiasmados ao ouvirem aquilo. Ela então se sentou e abriu o livro no colo, e os gatos logo a cercaram. Alguns se empoleiravam em seus ombros para melhor verem as letras graúdas e as imagens, uns esticavam os pescoços para melhor verem e seguirem a história, enquanto outros simplesmente ficavam perto, deitando-se e fechando os olhos para melhor imaginarem e viverem aquela fantástica história.
            Karolinne ficou longas horas lendo a história do lendário Rei dos Gatos, que havia sumido há séculos, mas que deixara um importante legado e uma infinidade de súditos que deveriam aguardar pelo seu retorno, que aconteceria quando aquele livro fosse lido por mil e uma meninas especiais, que acreditassem naquelas palavras e lessem aquele livro para mil e um gatos nos dias seguintes à descoberta do livro, na janela de sua casa, e espalhassem aquela história para todos os gatos do mundo, e quando isso acontecesse, que todos os gatos soubessem da história do Rei dos Gatos, ele retornaria e seu reino seria restabelecido, e todas as pessoas do mundo não mais ouviriam os miados dos gatos, mas sim suas verdadeiras vozes.
            A menina terminou a história e respirou fundo duas ou três vezes e ficou completamente em silêncio antes de se dar conta de que estava novamente sozinha entre aquelas estantes. Dos gatos, todos que antes estavam ali, somente um, aquele que a trouxera, permanecia. Ela então se deu conta de que um longo tempo já tinha se passado, de que sua mãe devia estar preocupada com seu sumiço, e saiu correndo daquela casa, levando consigo o livro debaixo do braço.
            Seu instinto a guiou pelas mesmas ruas e becos que tinha percorrido antes, até encontrar o mesmo banco sob a mesma árvore. Correu até lá e ao se sentar, viu sua mãe vindo em sua direção com um sorvete.
            - Trouxe de baunilha, seu sabor favorito – disse a mulher, entregando para a filha o sorvete.
            Karolinne olhou para a mãe, e só então se deu conta de que o tempo não tinha passado. Se perguntou se aquela aventura, aquela perseguição ao gato, a leitura, a história e o livro tinham realmente acontecido.
            - O que é isso? Onde você achou esse livro? – perguntou sua mãe, apontando para o livro que estava embaixo do braço da menina.
            - Esse livro? Ah, eu achei! – falou ela, dando a resposta mais óbvia que toda criança daria numa situação daquelas. A mulher apenas sorriu, passou a mão na cabeça da filha e esperou que ela terminasse de tomar seu sorvete.
            Foram para casa, mas sem pressa de chegar, com Karolinne protegendo seu precioso tesouro.

Naquela noite e nas noites seguintes, assim que todos iam dormir, ela abria a janela de seu quarto e no silêncio da noite, esperava que um gato qualquer passasse por ali, e quando isso acontecia, ela abria o livro e lia a história do Rei dos Gatos. Quando terminava, o gato soltava um miado de aprovação, pulava o muro e ia embora, e ela fechava o livro e ia dormir. Fez isso por muito tempo, por exatas mil e umas noites seguidas, lendo a história e difundindo-a para mil e um gatos. Quando terminou a milésima primeira leitura, fechou o livro e o guardou na sua prateleira de livros.
            O tempo passou, e Karolinne já não era mais uma pequena menina como outrora, e muitas coisas que vivera na infância já eram apenas, agora, vagas lembranças. Havia se tornado uma bela mulher e tinha uma linda filha. Karolinne estava apressada, como sempre andava nos últimos tempos, e caminhava esbarrando nas pessoas pelo centro da cidade, carregando pela mão a filha, que reclamava do calor e do cansaço.
            - Mãe, eu quero um sorvete – pediu a menina.
Karolinne, contrariada, queria ir para casa, onde tinha muita coisa a fazer, mas a filha realmente estava cansada e adorava sorvete. Levou-a até um banco de praça e pediu para que ela ali ficasse, e foi comprar o sorvete da filha.

Enquanto estava na fila para comprar o sorvete, viu a menina se levantar e sair correndo. Pensou, por um instante, em gritar, chamando-a, pois ela poderia se perder, quando viu o que havia chamado a atenção da menina: um gato, o mesmo gato que ela seguira outrora. Ela sorriu por dentro, tomada um turbilhão de lembranças. Comprou um sorvete para si mesma e ficou esperando que filha retornasse, para só então comprar o dela e ver, reconhecer, o livro que ela traria para casa e leria para os gatos, através da janela aberta, pelas mil e uma noites seguintes.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Retrospectiva 2015 de leitura

Nunca é fácil olhar para trás e ver todos os livros lidos no ano anterior. Sempre que faço as minhas retrospectivas de leitura, tenho a certeza de que não li o que e quanto deveria, fico com aquela sensação de ter usado erradamente meu tempo ao ler determinado livro que não me proporcionou prazer algum nem me acresceu em absolutamente nada, fico emocionado ao relembrar a história e personagem de tal obra que me marcou profundamente...
            No geral, infelizmente 2015 não foi um ano tão proveitoso no que tange às leituras como anos anteriores. Muitas coisas interferiram, entre elas a mal escolha, em dados momentos, dos livros , o que me gerou maior lentidão na leitura, uma vez que as leituras não estavam sendo tão empolgantes e prazerosas quanto eu esperava e precisava, e por conta de trabalho, estudos e um monte de outros fatores extra-leitura. Mas mesmo assim, foram, aos trancos e barrancos, 43 livros, no entanto, 1 foi abandonado (porque tive que devolver – tratava-se de um livro que havia pego emprestado) e 3 lidos parcialmente (a maior parte – diga-se de passagem), tendo iniciado o meu 2015 com a leitura de Vida e Destino, de Vassili Grossman, obra muitíssimo interessante sob o prisma histórico, mas que no que tange a literatura se mostrou um tanto quanto “não das melhores”, e finalizou com Meio Sol Amarelo, de Chimamanda Ngozi Adichie, o melhor livro de literatura africana que já li em minha vida, uma grantíssima surpresa que me foi reservada justamente para o “apagar das luzes” do meu ano de leitura.
            No que se refere aos melhores livros, nunca um ano de leituras foi tão difícil de definir aquele que rotulo como “o melhor do ano”. Além do Meio Sol Amarelo, obra que não canso de recomendar, elogiar e recomendar a leitura, destaco também No silêncio entre dois suspiros, de Ayad Akhtar, além dos clássicos que me deixaram em êxtase, O Quinze, de Rachel de Queiroz, do poderosíssimo Carta ao Pai, de Kafka, dos gregos Antígona, de Sófocles, Hipólito, de Eurípides, e do estupendo e divertidíssimo Lisístrata, de Aristófanes, e seguindo no mesmo gênero do teatro, destaco também o Fedra, do francês Racine, fora o filosófico e extraordinário O Lobo da Estepe, de Hermann Hesse. No outro extremo, destaco entre meus piores livros do ano, que me decepcionaram enormemente, que não recomendo a ninguém, estão A Última Imperatriz, de Da Chen (o mesmo autor de A Montanha e o Rio) e A Fazenda, de Tom Rob Smith, além do vencedor do Nobel de Literatura Patrick Modiano com o livro Remissão da Pena, livro que não empolga, que não tem um personagem cativante, que não tem uma narrativa que prenda, enfim, que não tem graça e que não me proporcionou em momento algum um momento de prazer e deleite literário, e do famigerado Ateneu, de Raul Pompéia, que foi uma leitura arrastada, chata e cansativa.
            Entre tantos livros, em 2015 fui da leitura de tirinhas de Snoopy e Calvin & Haroldo, que adoro, passando por Hamlet e por obras de Machado de Assis, tanto em sua face romântica com Helena quanto numa fase mais adiantada, com O Alienista, visitando os russos com Gogól com a novela A Briga dos dois Ivans, Maiakovski com  Percevejo, Dostoievski com Bobók e No Campo de Honra do Isaac Bábel. Li também obras de cunho histórico como o indispensável História Concisa da Rússia, de Paul Bushkovitch; obras de cunho teórico-crítico-literário, como livros de Harold Bloom e Massaud Moisés. Fora esses, ainda arranjei tempo para ler John Boyne, O ladrão do Tempo e A Casa Assombrada, para conhecer Lima Barreto com Triste Fim de Policarpo Quaresma; e meu primeiro Simenon, com Maigret e a Mulher do Ladrão.

            Pois é, apesar de não ter sido um ano tão recheado como anos anteriores, foi, no fim das contas, um bom ano de leitura, com uma boa multiplicidade de obras nas quais mergulhei e das quais extrai muita coisa boa, desde o simples grego antigo da Era de Ouro do teatro aos complexo Calvin, Charlie Brown e Snoopy.

1º de janeiro: o melhor dia do ano

Para mim, o melhor dia do ano é 1º de janeiro. Começo a contar os dias, em angustiante espera, desde o dia 2 de janeiro, observando o movimento da Terra em torno do sol, na ansiedade para que chegue logo o primeiro dia do ano seguinte só para poder ter o mundo inteiro só pra mim. Sim. O mundo inteiro.
            No dia 31 de dezembro, como já é de praxe, grande parte das pessoas sai, vai comemorar a chegada do ano novo em praias, organizam festas em família, ficam acordados até mais tarde, etc., de forma tal que nas manhãs do dia 1º a impressão que se tem, ao sair nas ruas, ao abrir uma janela, é a de que a humanidade foi extinta e só sobrou você na face da Terra. Não existe barulho algum de carros, não existem vozes de pessoas falando alto, não existem barulhos de portas e janelas sendo abertas e fechadas, ninguém faz questão de ligar o som em volume máximo para compartilhar aquela música odiada por todos, exceto por aquele que quer compartilhá-la com todos, etc. Enfim, manhã do primeiro dia do ano é o momento de paz e silêncio total, tanto que é justamente neste dia que podemos nos dar ao luxo de ficar e sentir realmente o silêncio em toda a sua plenitude. Podemos ouvir o uivo do vento, podemos ouvir a orquestra sinfônica dos pássaros que, felizes, podem encher os pulmões sem vergonha de suas notas harmoniosas atrapalharem os barulhos alheios. Podemos até sair na rua para uma caminhada/corridinha matinal sem nos preocuparmos com os carros que passam apressados ao nosso lado, chegando ao máximo até de ouvir o som de nossos próprios passos no asfalto da avenida!
            Sei que estou sendo um tanto quanto egoísta, sim, em ter o mundo inteiro só pra mim, mas em que outro dia do ano tenho esse privilégio? Pelo menos tenho o mundo só pra mim (e me vanglorio disso) até o início da tarde, que é quando aquele mal-educado da rua de frente acorda e liga o som com o intuito de compartilhar com o bairro inteiro aquela música que somente ele, em toda a sua insanidade, acha que as pessoas querem ouvir. Com esse ato o mundo começa a acordar (de ressaca) e o mundo volta a ser mundo, com todos os seus barulhos, e eu me vejo na obrigação de compartilhá-lo com os demais viventes deste planeta. Só fico triste pelos pássaros, que passam a ser obrigados a cantar baixinho para não incomodar o barulho das  pessoas...