domingo, 25 de novembro de 2012

O Prisioneiro

Quanto anos já havia passado ali?, ele se perguntou ao acordar naquela manhã. Quanto anos havia perdido, tendo sido privado de sua liberdade?, ficou a se perguntar. Olhava ao redor e só via aquelas paredes repletas de marcas deixadas por outros iguais a ele que haviam sido trancafiados, ficado presos naquela minúscula cela daquela prisão, marcas usadas para marcar o tempo, tempo este que passa sempre igual, sempre tão devagar...
            Ele se levanta e anda de um lado para o outro, desesperado, perguntando-se o que será feito dele, e quando virão buscá-lo para levá-lo a que lugar, nem ele mesmo sabia. Já havia, em todo aquele tempo desde que fora feito prisioneiro, se feito as mesmas perguntas, já tinha dado os mesmos passos, já tinha sido consumido vezes sem conta pelas mesmas angústias. Olhava para o teto e ouvia ecos de passos de um prisioneiro que, por certo, estava mesma situação que ele, olhava para ambos os lados, e via as paredes, olhava ara frente e via a minúscula janela, no canto mais alto, através da qual ele sequer conseguia ver o que havia do outro lado, fora da cela, e, às suas costas, a pesada porta de ferro, que ele nunca vira ser aberta desde que fora desumanamente jogado ali. A parca alimentação e água que recebia era entregue através de uma portinhola no rés do chão, aberta duas vezes por dia, uma pela manhã e uma no final da tarde, por onde passava um prato de ferro com uma comida que ele não conseguia distinguir do que se tratava, e um copo com uma água suja, de gosto terroso. Uma vez por dia, em horários que variavam conforme o estado de espírito do carcereiro, a portinhola era aberta para recolher os dejetos do homem, que ele entregava dentro de um balde.
            Tentava se lembrar dos motivos que o levaram até ali, os momentos que antecederam a sua prisão, o julgamento, os últimos instantes de uma liberdade esquecida, mas por mais que se esforçasse, nenhuma lembrança lhe vinha a ente, como se todas tivessem sido esquecidas, agora que ele estava ali, tão privado de tudo, como que lembranças, ali dentro, fossem proibidas. Ele se sentava na cama dura de cimento com um fino colchão já gasto, repleto de sujeira e cheiros indistintos, com as mãos cobrindo o rosto e os olhos fechados com força, esforçando-se para se lembrar de algo. Mas lembrança alguma lhe vinha à mente, e ele voltava a se levantar e a andar de um lado pro outro. Não conseguia se lembrar do seu passado, do que o trouxe até ali, já não conseguia sequer se lembrar mesmo de quem era, de seu nome, do homem que um dia fora. Não conseguia se lembrar de absolutamente nada e de tanto conversar apenas com seus próprios pensamentos, sequer se lembrava de sua própria voz.
Sua garganta vivia eternamente seca com a sede lhe consumia, a fome que sentia era demasiadamente forte e seu estômago sempre doía e ameaçava explodir em dores sempre que comia aquilo que lhe era servido, mas, mesmo assim, ele comia, pois era sentir dor ou sentir fome; seu corpo inteiro doía, fruto das noites mal dormidas e do pouco espaço que tinha para se movimentar; sentia tantos e tão desagradáveis cheiros que começou a achar que tudo provinha dele, pois desde que fora encarcerado ali, nunca lhe fora dada a oportunidade de tomar um banho. Sentia calor e frio intensos, por vezes frio ao meio-dia e calores em plena madrugada.
Aquela tortura o estava matando pouco a pouco, estava lhe consumindo por dentro, fazendo-o se esquecer de tudo. Não se lembrava sequer de qual era o seu nome, não se lembrava do som de sua própria voz e não se lembrava mais qual a sua aparência. Punha, por vezes, a mão sobre o rosto, acariciando-o, tentando adivinhar suas feições, mas só o que sentia eram os pelos ásperos de uma barba que crescia diariamente que havia tomado todo o seu rosto. Passava a mão na cabeça, e só sentia o cabelo duro, sujo e malcuidado. Usando suas mãos, apalpava o corpo, e só sentia um amontoado de ossos cobertos por uma pele seca e suja como um pedaço velho de um pergaminho quebradiço.
Cansou de tudo aquilo e levantando-se de súbito, foi até a porta, que começou a esmurrar, mas estava tão fraco, já tendo esquecido até mesmo a força que um dia tivera, que seus socos não produziam som algum quando batiam na pesada porta, só lhe provocavam dor nas mãos frágeis. Não deu importância para a dor, continuando a bater na porta. De sua boca saía um som indistinto que parecia tudo, menos uma voz humana, muito mais parecido com um grunhido ou o gemido de um animal agonizante. Quando cansou, que se deixou escorregar, ficando deitado no chão, com a cabeça colada à porta, ouviu, ou imaginou ouvir, vozes e risos do outro lado da porta. Ele tentou, num último esforço, bater mais uma vez, respirou fundo, deixando que o ar ficasse preso em seus pulmões, para tentar gritar e falar alguma coisa, mas som algum saiu, ficando o grito preso em sua garganta, fazendo-o sufocar.
Adormeceu e foi acometido por mil e um pesadelos e, ao acordar na manhã seguinte, viu que havia uma pequena abertura na porta, por onde passava uma luz fugidia, que parecia lhe chamar. Ele sentiu-se cego com aquela luz que nunca tinha visto, que lhe entrava pelos olhos, mas que não lhe iluminava a consciência. Cobriu com a mão os olhos para não ficar completamente cego e se arrastou usando cotovelos e joelhos, pois de tão fraco sequer conseguia ficar de pé.
Do lado de fora da cela, ele olhava de um lado para o outro e não acreditava no que seus olhos viam: um longo corredor, com portas de celas iguais à sua. Se arrastando, pois não conseguia andar, ele foi de cela em cela, olhar, chamando com palavras incertas e voz não humana, por um alguém ou alguma coisa que lhe dissesse onde estava e o que fazia ali, mas não obteve resposta alguma. Chegando ao final do corredor, viu que havia uma longa e estreita escada que levava para algum lugar lá no alto, de onde vinham sons de vozes que ele imaginava serem humanas. Mesmo com medo e se sentindo fraco, fez um esforço sobre-humano para se por de pé e, vencendo todos os medos, para dar um primeiro passo. Subia degrau a degrau e a medida que se aproximava do topo, a luz ficava mais forte a ponto de obriga-lo a subir com os olhos fechados, e as vozes mais altas, embora ele não conseguisse entender o que dizia, sabendo apenas que eram muitas vozes, de muitas pessoas, que estavam ali no alto. Parou inúmeras vezes para tomar fôlego e, enquanto respirava, sentiu um cheiro desconhecido, límpido, que lhe deixou ainda mais excitado, desejoso de saber, ver e sentir o que havia lá no alto. Tropeava nos próprios pés e por vezes chegou a cair e rolar alguns degraus escada abaixo, mas sempre que parava, que se recuperava, com o coração ameaçando explodir em seu peito, se punha de pé e continuava a sua subida.
A luz era cada vez mais forte, as vozes mais altas e o cheiro mais intenso, e este era o que o motivava, apesar das quedas e dores, do corpo e da alma, a seguirem subindo, pé ante pé, passo ante passo, em direção àquilo que ele não sabia com o que iria se deparar.
No alto, havia uma porta parcialmente aberta, através da qual ele mal conseguia ver o que havia do outro lado. Respirou fundo duas ou três vezes antes de por a mão trêmula sob sua superfície áspera e empurrá-la. Quando ela se abriu por completo, uma luz intensa atingiu seus olhos e ele recuou alguns passos e virou o rosto, cobrindo com as mãos os olhos feridos por aquele jorro de luz. Com os olhos fechados, feridos, ele subiu os últimos degraus e, com a porta aberta, ele deu um longo e decidido passo para fora. Foi recebido por um turbilhão de cheiros. Demorou um longo tempo para seus olhos se acostumarem e conseguirem enxergar alguma coisa do que havia ao seu redor. Quando, após um longo tempo, conseguiu abrir os olhos, viu que estava num lugar alto, às suas costas, de onde viera, descia um íngreme desfiladeiro, e à frente, um imenso planalto. Viu, ao longe, umas pessoas, que caminhavam tropegamente, tropeçando nas próprias pernas, umas longe das outras, como se estivessem uma a perseguir a que estava à sua frente enquanto fugia da que vinha logo atrás. Ele tentou gritar, chamar por uma delas, mas não tinha força na voz. Resolveu, então, num ato de insensatez, dar um passo depois outro, correr atrás de tais pessoas e sentir um pouco da liberdade correr pelas suas veias.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

A cama de nossos pais


Um dos maiores segredos do Universo, um dos maiores enigmas que os homens tem se debruçado, sobre o qual tantos sábios, filósofos e cientistas estudaram, está em descobrir por que a cama de nossos pais é sempre a melhor cama do mundo, o lugar mais seguro, quentinho e aconchegante do Universo. A cama de nossos pais é uma verdadeira ilha de calor e paz em meio ao oceano de águas profundas e geladas onde fomos jogados.
            Desde que o mundo é Mundo e foi criado o quarto dos filhos, para que os pais possam ter uma noite de sono sossegada em seus quartos, é que as pobres crianças sentem-se verdadeiras órfãs, pois muitas vezes existe uma parede quase intransponível que os separa da cama de seus pais, e desde esses imemoriais tempos que estas crianças dão seu jeitinho para atravessar a aparente inexpugnável muralha que os separa de seu objetivo. E a maneira encontrada é simples: bater a porta do quarto, tendo sempre um coberto enrolado ao corpo e um travesseiro debaixo do braço, alegando estar com medo do escuro, dizendo que tem um bicho-papão debaixo da cama, quando, na verdade, o que há, no máximo, é um playmobil esquecido na última brincadeira ou aquela sandália ou sapato que a gente nunca encontra na hora que mais precisa. E então vem nossa mãe, é normalmente ela quem abre a porta, e olha para nós, da forma como só as mães nos olham.
            - O que foi, menino? – pergunta ela.
            Então nós desenrolamos a nossa história, a nossa desculpa, quando, na verdade, só o que queremos é um pouco do espaço mágico daquela cama.
            Quando nossa mãe está, finalmente, se convencendo da veracidade da nossa história do bicho-papão e do escuro que quer nos tragar para sua profundeza, ouvimos a voz de nosso pai, que acorda de repente e quer saber o motivo de estarmos ali, parados à porta do quarto. Ele nos manda voltar para nosso próprio quarto, para dormir em nossa própria cama e, já com olhos chorosos, damos o primeiro passo para trás, eis que nossa mãe, sempre ela, nos salva e nos dá passagem, de forma que nos jogamos sobre sua cama e muitas vezes antes mesmo dela se deitar, já estamos dormindo um sono tão pesado que nem mesmo um carnaval fora de época, se passasse em frente a nossa casa, seria capaz de nos acordar. E ficamos ali, naquela cama tão grande, entre nosso pai e nossa mãe, impedindo que eles se abracem, desejando apenas o abraço de ambos.
            Muitos são os que se debruçam sobre essa complexa questão primordial para a existência de qualquer ser humano. Os matemáticos, por exemplo, alegam que o ângulo do colchão de nossos pais com relação ao travesseiro faz com que aquele seja um local tão propício para um sono agradável; os físicos, por seu lado, falam de calor; os poetas tentam, em vão, com seus versos explicar a relação existente entre os filhos e a cama de seus pais; os psicólogos chegaram a conclusão de que, nesse caso, nem Freud explica;os biólogos falam que esse é um de nossos instintos primitivos; os geógrafos, que esse é nosso norte; os historiadores, bem, esses não chegaram a um consenso, ainda. Enfim, todos falam, falam e falam, mas nenhum chegou a questão primordial.
            Eu, por meu lado, acredito que essa é uma questão por demais complexa, que por mais que nos debrucemos sobre ela jamais chegaremos a um consenso, que é uma questão puramente afetiva.
            E de tanto falar nisso, enquanto escrevo esse texto, ouvi um barulho vindo debaixo de minha cama. Olho para o quarto escuro e começo a tremer de medo e resolvo sair de meu quarto, e ir para o de meus pais. Lá, quando eu bater a porta, provavelmente virá minha mãe abri-la e me olhará com uma cara estranha, como se dissesse “o que que tu ‘tá fazendo aqui, menino?” e eu, enrolado a meu lençol, tendo o travesseiro debaixo do braço, olharia para ela como se respondesse que o que fazia ali era óbvio, que vinha dormir na sua cama, onde não me deitava há tempos. Ela me lançaria um olhar indiferente, daria de ombros e me daria passagem. Quando me deitasse na cama, antes de pegar no sono, ainda escutaria meu pai reclamar, dizendo:
            - Esse menino aqui de novo? Você já está grande demais, rapaz. Vai dormir na sua cama!
            Mas antes que ele terminasse de falar isso, eu, do alto dos meus vinte e poucos anos, já estaria dormindo.

domingo, 11 de novembro de 2012

Eterno nostálgico

Eu sou um eterno nostálgico, desses que passa horas a fio, parado, rindo sozinho de uma saudável e agradável lembrança; sou desses que são capazes de se acabar em lágrimas ao se dar conta de que aquele fato, lembrado com tanto carinho, que não vai mais voltar, que por mais que a gente se esforce, não consegue voltar no tempo para vivê-lo novamente, para fazê-lo de forma diferente, ou simplesmente para fazê-lo exatamente igual.
Eu sou um eterno nostálgico, desses que não cansa, nunca, de rir novamente, novamente e novamente de uma coisa passada há tanto tempo, que, embora sendo o mesmo fato, cada vez que eu o lembro, o faço de maneira diferente, o sinto de maneira diferente, o revivo de maneira diferente em minhas doces lembranças; sou desses que é capaz de se arrepiar a cada vez que revê e revive determinada lembrança, que sente um arrepio percorrendo todo o corpo quando ouço determinada música que me faz lembrar de determinada e tocante lembrança.
Eu sou um eterno nostálgico, desses que por vezes são extremamente egoístas, que não gosta de compartilhar com ninguém uma doce lembrança, mas, por vezes, sou desses que tem vontade de, às 3 da madrugada, ligar para o amigo com quem se viveu tal momento, só para podermos revivê-lo e rirmos juntos.
Eu sou um eterno nostálgico, desses que vive eternamente com um pé no passado, desses que vive intensamente o presente com a esperança de que, no futuro, quando o presente for passado, poder me lembrar de tal tempo com uma especial, intensa e saudável saudade.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Asas

Quando nascem, todas as crianças têm asas para poder ir aonde quiserem, para fazer o que bem desejarem, pois são inteiramente livres, pois pertencem só e unicamente a si mesmas. Elas brincam livres no céu, sob os olhares estupefatos dos adultos, invejosos daquela liberdade e alegria a que é permitido só aos que possuem alma de criança.
            No céu, as crianças se sentiam inteiramente donas de si, e podiam viajar livremente nos braços dos ventos, mas havia uma em especial que era mais livre do que as outras: um menino que tinha um riso capaz de sobrepujar o barulho dos trovões nas noites de tempestade, que tinha asas tão grandes que ele as usava para abraçar a si mesmo quando estava com frio nas noites de inverno. Ele, junto com seus amigos, voavam pelos céus e chegavam perto do sol, mas só ele, ousado como era, ousava se aproximar o suficiente para sentir seu calor a lhe queimar a pele, e fazia isso com tanta frequência que sua cor era de um saudável bronzeado. Nas noites de luar, todas as crianças eram livres para ficar até tarde acordadas, e algumas, quando sentiam sono, podiam mesmo dormir planando no ar ou nos braços de uma estrela, mas diante de tanta alegria e felicidade, eram raras as que sentiam sono. Umas, mais afoitas, voavam bem alto em torno na lua, enquanto outras, mais alegres, brincavam com as estrelas, jogando-as de um lado para o outro, e os adultos, infantis, imaginavam tratar-se de uma “estrela cadente”, quando, na verdade, era apenas uma estrela que se deixava fazer de brinquedo pelas crianças.
            As crianças eram inteiramente felizes e livres, mas aquele menino era mais do que todas as outras, e primeira vez que seu sorriso lhe sumiu do rosto foi quando viu um adulto segurando uma criança, um amigo seu, pelo pé, impedindo-a de voar, prendendo suas asas num abraço apertado para que elas não abrissem. Ele então entendeu que aquele era o primeiro indício de uma obrigação a que os adultos impunham às crianças: o crescimento. Aquela foi a primeira criança que ele via dar seus primeiros sinais de crescimento a que os adultos e o mundo impunham, e ficou triste por dias a fio, sem ânimo sequer para voar. Mas logo esqueceu, como todas as crianças esquecem rapidamente das coisas, pois tinha muitos outros amigos para brincar durante os dias e noites de sua eterna infância.
            Um dia, quando estava no céu a brincar com uma nuvem, fazendo cócegas nela para obriga-la a tomar a forma de um animal, viu uma criança com os pés plantados no chão. Ele a chamou, mostrando como estavam a se divertir, ele a nuvem, convidando-a a participar da brincadeira, ao que ela respondeu com um olhar triste, mostrando que suas asas pendiam inertes. Ele ainda fez menção de ir até ela e voar com ela nos braços, ao que ela recusou, dizendo que a partir daquele momento não poderia mais voar, pois seu lugar era ali, com os pés bem firmes no chão. Ficou com uma lágrima presa na garganta, mas se aquele era o desejo daquela criança, tudo bem, ele respeitaria. Ainda havia, mesmo assim, algumas crianças livres, com enormes asas, embora não tão grandes quanto as suas, com quem poderia brincar e voar livremente pelo céu.
            Passadas algumas semanas, ele, num voo solitário num início de manhã, percebeu que havia menos crianças do que o normal, e olhou para baixo e viu um massacre acontecendo diante de seus olhos: adultos ignorantes prendiam as asas das crianças para que elas não pudessem mais voar, e outros iam ainda mais longe e arrancavam as asas para que nunca mais elas pudessem ser livres. Dessa vez, ele chorou, e suas lágrimas caindo eram como uma tempestade a desabar sobre a cabeça dos incautos que faziam aquilo com as crianças, prendendo-as no chão.
            Algumas crianças, mesmo livres, começaram a não conseguir mais voar tão alto e pouco a pouco foram perdendo, naturalmente, capacidade de voar, e estas, quando punham seus pés no chão e não tinham mais forças nas asas, choravam tão alto que até as estrelas no céu se compadeciam de suas novas condições, presas ao chão. Outras, para evitar perderem suas capacidades de voar, suas preciosas liberdades, tentavam viver uma vida dupla: na terra, como todos, e no céu, livres; mas a estas logo as obrigações do dia-a-dia, as infindáveis rotinas prendiam, a ponto de elas se esquecerem de como se faz para voar, e suas asas caíam inertes ao longo do corpo.
            Uma a uma, as crianças começavam a ficar presas ao chão, umas por que eram obrigadas, com os adultos obrigando-as a se plantarem no chão, enquanto outras tinham as asas as asas brutalmente arrancadas, para que nunca mais pudessem voar livremente no céu.
            Todas aquelas crianças que um dia foram livres não mais voavam, com a exceção daquele menino, que agora brincava sozinho. Ia de uma nuvem a outra, brincava de esconde-esconde com o sol, conversava, à noite, com a lua e ainda jogava, vez por outra, uma estrela de um lado para o outro. Quando olhava para baixo e via um de seus antigos amigos, agora transformados em adultos, chamava por eles, mas eles, tão ocupados em suas rotinas, ou não ouviam, ou não escutavam ou chamado, ou fingiam não ouvir aquele chamado, e seguiam sempre em frente, com a cabeça baixa e os pés bem firmes plantados no chão.  Ele, mesmo percebendo que mais que chamasse os outros não olhariam para cima, continuava a chamar até cansar. E quando eles não podiam mais ser vistos, seja porque entravam em um ônibus, carro ou se trancavam num escritório ou dentro de casa, sentia-se cansado e triste e perdia, por um instante, a vontade de voar, e em uma ocasião quase foi pego por um adulto, que desejava lhe podar as asas.
            Sentia-se só, agora que não tinha uma outra criança com quem brincar e compartilhar as alegrias e sorrisos, e essa solidão foi lhe pesando dia após dia a ponto de tal peso lhe impedir de voar tão alto como gostava. Um dia, não aguentando mais tal peso, resolveu se deixar cair lentamente, tal qual uma pluma que se deixa levar ao sabor do vento. Pousou suavemente no chão e dobrou delicadamente suas asas e começou, a partir daquele dia, a viver como uma pessoa comum, a seguir uma rotina, a ter suas responsabilidades.
            Passaram-se muitos anos e ele cresceu, como toda criança cresce, e, tão ocupado como estava em viver a vida, se esquecia do menino que um dia fora. Nunca olhava para o céu, seja durante o dia seja à noite, e sua pele, antes bronzeada, perdeu a beleza da cor e o viço.
            Mas um dia, enquanto voltava de seu trabalho para casa, parou subitamente, como que algo estivesse a lhe chamar. Era noite e não havia uma única nuvem no céu e ele, ao olhar para cima, ao ver tantas estrelas e a lua a brilhar majestosa no firmamento, e foi então que um turbilhão de lembranças lhe tomou de assalto e ele sorriu e chorou ao lembrar do menino que um dia fora e do qual havia se esquecido. Olhou para as costas e viu as asas abrindo lentamente e sorriu ao perceber que elas ainda estavam vivas e possuíam vigor suficiente para levá-lo ao céu. Respirou fundo duas ou três vezes e deixou suas asas livres para baterem e lhe levarem de volta aos braços do céu. Sentiu seus pés iam pouco a pouco se soltando do chão e ele pôde se tornar o primeiro homem, adulto, a poder voar. Seguia suas rotinas e tinha suas responsabilidades do dia-a-dia, sim, mas sempre que, cansado, voltava para casa, parava, olhava para o céu e ao ver as estrelas e a lua, podia voltar a ser o menino livre que um dia fora, e voar livremente pelo céu, privilégio este que só é dado aos que possuem uma eterna alma de criança e aos que fazem devido uso de suas asas.