domingo, 11 de janeiro de 2015

De palavras e sedução

Ela caminhava deixando que seus passos a guiassem para um lugar em que pudesse estar bem longe de si, mas por maior que fosse a distância que seus pés a levassem, lá estava ela mesma, diante de seus olhos, seja através de um reflexo numa superfície espalhada, seja na própria sombra a seus pés, que não a deixavam esquecer de si e nem do que lhe acontecera. Procurava deixar que os pensamentos voassem para não se lembrar de nada, mas os fatos ainda eram muito recentes, e a memória teimava em lhe fazer lembrar aquilo que queria esquecer. Tapava os ouvidos para deixar que o silêncio a dominasse, mas ainda assim ouvia o eco de uma voz distante que vinha se aproximando até poder ser ouvido como um sussurro ao pé de seu ouvido, o eco da voz daquele que a seduzira, e ela, ingênua, pura como era, se deixara levar por aqueles sonhos, se deixara ludibriar por aquelas melífluas palavras proferidas por aquele que despertara o seu amor, mas que nunca tivera a real intenção de amá-la.
            Seus pés, já cansados, se negavam a dar mais um passo a mais além, e ela se deixou quedar de joelhos em frente ao mar, onde as ondas quebravam bem perto, diante de seus olhos, fazendo aquele barulho sedutor, como que a chamando. Deixou-se tomar pela solidão e que os barulhos e sussurros do mar sobrepujassem os sons que ouvia dentro de sua cabeça.
            Sem que percebesse, uma única e solitária lágrima escapou de seu olho e escorreu pelo rosto, deixando um profundo sulco em sua pele. Ela então sentiu a umidade deixada pela lágrima nos caminhos que percorrera e se lembrou das dolorosas lágrimas derramadas tão recentemente. Lembrou-se de cada momento, de cada palavra, da maneira como se sentira ludibriada, de como fora seduzida e levada a entregar àquele homem o que tinha de mais precioso.
            As dores que sentia no corpo não significavam nada comparadas às dores que sentia latejar no fundo da alma. Sentia-se perdida, sem saber o que fazer para afastar as lembranças, sem saber como diminuir a dor que lhe consumia pouco a pouco e ameaçava lhe tomar por inteiro.
            Fechava os olhos e tentava se concentrar apenas no barulho das ondas quebrando bem perto, lhe chamando para um mergulho, tentando lhe seduzir, esticando seus dedos para tocá-la, mas tudo que ouvia era a voz dele, as mentiras que ele desfiava, com as quais a envolvida sem que ela se desse conta. Lembrou-se que havia resistido além da conta, mas aquelas palavras sussurradas tinham um poder muito grande, e lembrando disso teve a certeza de que a palavra gritada é a mais fraca, de que a palavra falada baixinho, quando proferida enquanto se olha nos olhos é a que tem a verdadeira força.
            Com seus olhos belos e sua voz sibilante, ele conseguira arrancar dela um sorriso, depois outro e mais outro, até que ela, já sem defesas, acabou se entregando, não aos poucos, mas sem reservas. Amou perdidamente, mas em momento algum percebeu que ele só a amava da boca pra fora, que as palavras dele eram vazias de sentimento.
            Foi, para ela, um amor platônico se realizando. O amor platônico, o sonho, mostrou-se em sua verdadeira face quando ele a procurou e, com a mesma voz sussurrada, com o mesmo olhar sedutor, mas desta vez sem o brilho, e com uma fingida dor e um leve sorriso imperceptível aos olhos, disse que não podiam mais ficar juntos, que não podiam mais se ver e disse uma poção de palavras vazias que ela não pôde ouvir, pois a dor foi tão intensa que todos os seus sentidos ficaram como que anestesiados: não via, não ouvia e não sentia cheiro, mas sentiu o abraço frio que ele lhe deu e sentiu o gosto amargo na boca.
            E agora estava ali, sozinha, chorando, e a cada lágrima que escapava de seus olhos eram como se sentisse uma punhalada na alma. Deixou que a dor e as lágrimas lhe lavassem, lhe purificassem e lhe apaziguassem, e quando se sentiu reconfortada, levantou-se lentamente e entrou no mar. Lavou o rosto, deixando que o sal das lágrimas se misturasse ao sal da água do mar. Respirou fundo e olhou para o céu e para o sol, que lhe sorria lá do alto. Abriu os braços e deixou que o calor do sol aquecesse o frio que sentia na alma e assim realizasse o resgate de sua vontade de voltar a sorrir.
             Saiu do mar com o corpo e alma lavada. Seu corpo ainda estava dolorido, sim, mas na alma o processo de cicatrização daquela ferida já tinha sido iniciado, e em muito breve tudo que ficaria seriam meras lembranças e uma pequena marca, como de uma ferida que criou uma casca que caiu e que tal como acontece com os machucados de uma criança, logo foi esquecida.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Retrospectiva 2014 de leitura

Nunca um ano foi tão recheado de leituras de tão variados gêneros quanto o foi o de 2014 para mim. Para constatar este fato, bastou eu dar uma olhada para os livros que iniciei e o com qual finalizei o meu ano de leitura: Oblomóv, de Ivan Goncharov (como virou tradição minha, abrindo o ano de leituras com um grande clássico da literatura mundial) e Calvin & Haroldo – criaturas bizarras de outro planeta!, respectivamente. Entre um e outro, li clássicos da literatura mundial, best-sellers, quadrinhos, livros de filosofia, de crítica literária, de teoria literária, de história da literatura, etc. Li russos, brasileiros, japoneses, norte-americanos, gregos, contemporâneos e clássicos. Com uns, eu me identifiquei enormemente, devorando-os, saboreando palavra por palavra, mas também de decepcionei. Descobri obras extraordinárias, que eu me pergunto até hoje como pude não tê-las lido antes, e outras eu poderia ter ficado sem ler...
            Foram, no total, neste ano de 2014, 46 livros lidos, sendo que destes, um foi uma releitura, As Vinhas da Ira, de John Steinbeck, o meu livro e meu autor favorito da literatura norte-americana. Desfrutei e aprendi muito lendo filosofia, crítica e teoria literária, e dos livros desses gêneros, o que mais mexeu comigo, o que me foi mais impactante foi o Sobre o ofício do escritor, de Schopenhauer. Livro curtinho, que “dá para ser lido de um fôlego só”, como se diz popularmente, mas trata-se de uma obra tão crítica, tão pesada, tão edificante e reflexiva, que eu passei semanas para finalizá-lo. Outro gênero de leitura que muito contribuiu para a minha formação, que muito me fez refletir, e que de quebra me arrancou gargalhadas, foram os quadrinhos, com destaque para os três de Calvin & Haroldo que li ao longo do ano, mas não foram só quadrinhos engraçados e lúdicos que li neste ano. Li também a versão adaptada de Guerra e Paz, do qual não gostei nenhum pouco (está uma adaptação muito fraca, completamente superficial), e Sandman – os caçadores de sonhos, do Neil Gaiman, que é uma das mais delicadas e belas histórias de amor que já li em minha vida.
            Ponto negativo está no fato de eu nunca ter finalizado um ano me sentindo tão frustrado. Não falo da quantidade de livros lidos (um pouco abaixo dos anos anteriores), mas dos livros que não consegui ler por motivos diversos (entre eles, o maior é a falta de tempo). Foram tantos os livros não lidos que ficaria impossível listar todos, mas não poderia deixar de citar O ladrão do tempo, do John Boyne, os dois últimos da Jody Picoult, O Homem que amava os cachorros (que prometi para mim mesmo, e para a minha amiga Nicolle, que seria o segundo livro a ser lido em 2015), No silêncio entre dois suspiros, Doutor Sono, os novos livros de Amos Oz e de Ian McEwan, etc., etc. e etc.
            Outro fator que me chamou a atenção (que não sei se é algo positivo ou não) é o fato de, em 2014, eu não ter tido uma “unanimidade” de melhor livro do ano. Se em 2013 eu tive O Arroz de Palma a receber os louros de “melhor livro”, em 2014 eu não tive, em minhas leituras, uma obra que tenha se destacado tanto assim. Li o segundo livro do autor, Doce Gabito, que é MUITO BOM, em busca daquele que seria “o livro do ano”, e o livro é, na minha opinião, mais maduro do que o anterior, que tem um andamento narrativo mais bem definido, com mais personagens mais bem desenvolvidos, mas que não é tão surpreendente quanto O Arroz... e acabou ficando o Gabito entre os cinco melhores livros de 2014, mas o pódio ficou com O Melhor do Teatro Grego, publicação da editora Jorge Zahar que consiste numa reunião de quatro peças significativas do teatro grego; Marcoré, de Antônio Olavo Pereira, obra de literatura nacional extraordinária; e Sobre o ofício do escritor, de Schopenhauer. Para fechar o meu “top 5” de 2014, ocupou o lugar o livro O último dia de um condenado, de Victor Hugo. Merecem menção os livros Misery, de Stephen King, que é fodástico (fico me perguntando como pode um escritor prender e deixar o leitor tão tenso numa história que contém basicamente DOIS personagens e UM cenário!), o A Estrela de Prata, de Jeannette Walls, os dois de Sue Monk Kidd e o magnificamente bem escrito, reflexivo, poético e melancólico Quarto de Hotel, de meu grande amigo Adauto Carvalho.
            Li alguns livros bons, mas dos quais esperava bem mais, com destaque para Os Demônios, de Dostoievski, que, dos romances do escritor russo que eu li, foi o menos empolgante e intenso e Vinte mil léguas Submarinas, que é muito extenso e cansativo, repleto de detalhes e descrições que atestam a genialidade e conhecimento técnico do escritor, mas que, como foi o caso de excesso, acabou “travando a leitura”. Outros livros, de outros gêneros, me fizeram “salivar” quando li as sinopses e comentários, mas que me deixaram um tanto quanto decepcionados quando (e enquanto) os li, como O Fio da vida, que tem um início esplendoroso, mas que se perde um pouco, que passa a “desempolgar” da  metade para o fim, O trem dos órfãos, que tem duas personagens interessantes, com boas histórias, mas que poderiam ter se cruzado (as histórias), o que acaba não acontecendo, o Constelação de fenômenos vitais, e o Flor Negra, que tem um pano de fundo histórico interessante, mas como literatura, deixou um pouco a desejar. Mas estas “decepções” fazem parte de nossa vida como leitores. Por vezes o problema é o momento, que não é propício para a leitura daquele livro em específico, e em outras ocasiões é a expectativa que depositamos naquele livro...
            Este ano, se eu fosse defini-lo em uma palavra, eu o faria com a palavra Grego. Isso mesmo: grego! Foi 2014 o ano da leitura dos gregos para mim, como outros anos foram o ano dos russos, o ano dos franceses, o ano dos brasileiros. Li, além das tragédias (de Ésquilo, Sófocles, Eurípides e Aristófanes), o Fábulas, de Esopo, e o Poética, de Aristófanes, livros que me fizeram perceber ainda mais o quão somos filhos e herdeiros dos gregos, o quanto aquela civilização lançou bases para a nossa filosofia, cultura, literatura e pensamento e o quanto continuam atuais.
            Foi, também, 2014, um ano em dediquei um especial espaço de meu tempo para as leitura de ordem técnica e acadêmica. Além dos já mencionados Schopenhauer e Aristóteles, li Bakhtin, Auerbach, Alfredo Bosi, Tânia Carvalhal e Douglas Tufano.

            O que me aguarda o ano de leitura de 2015 eu nada além do fato de se iniciar no dia 1º de janeiro, com a leitura de um grande clássico da literatura mundial, um russo, pra variar, e se encerrará em 31 de dezembro, com algum livro ou autor especial (para “fechar o ano com chave de ouro”). Mas de uma coisa eu tenho certeza: independente de quantos forem os livros, serão edificantes e eu os saborearei palavra por palavra de suas histórias, me identificarei com seus personagens e perderei noites de sono (seja dormindo mais tarde ou acordando mais cedo) de tão instigado que ficarei com as histórias.