domingo, 24 de junho de 2012

O gosto da liberdade

Naqueles longos e intermináveis anos em que passou na prisão, ele contou os dias. Fazia marcações nas paredes usando uma pequena faca que guardava escondida debaixo de uma pedra sobre sua cama. A cada dia, quando o sol se punha, ele fazia a marca, até que quase não havia mais espaço nas paredes. Era um preso privilegiado, pois tinha uma cela só pra si, diziam os outros detentos e os carcereiros, num pavilhão afastado dos outros, onde ficavam trancados os que cometeram os piores crimes, mas ele não sentia possuidor de qualquer privilégio, preferindo ter que dividir a cela com mais alguns detentos, pois pelo menos teria com quem trocar algumas palavras, a estar ali, naquele minúsculo cubículo, sozinho, tendo como única companhia sua sombra. As poucas palavras que trocava eram com os carcereiros, quando estes vinham lhe trazer suas refeições ou leva-lo para um breve “banho de sol”. Ele tentava entabular uma conversa, puxar um assunto qualquer, mas os carcereiros muitas vezes o olhavam com pena e outros com ódio, e se limitavam a ficar em silêncio.
            No início ele recebia umas poucas visitas de amigos, familiares e de sua amada esposa, por quem ele esperava ansiosamente, mas aos poucos deixou de vê-los e até de receber suas cartas. Passou dias a fio sem comer de tão apreensivo que estava, andando de um lado pra outro, perguntando-se o motivo da ausência de todos aqueles que amava e que o amavam. Cansou de escrever cartas que nunca eram recebidas, até que acabaram os papeis e acabou a tinta das canetas. Ele desculpava, mesmo assim, suas ausências, imaginando como deve ser duro, lá fora, ter que aguentar todo o preconceito das pessoas ignorantes por terem um ente querido preso e ter que visita-lo. Sonhava com o dia em que, livre, iria procurar essas pessoas que o abandonaram para abraça-las e beijá-las, para fazê-las ver e sentir que estavam desculpadas e pedir-lhes desculpas, pois, sabia, todo aquele sofrimento tinha sido ele a causa.
            Mais de vinte anos contando os dias e a medida que os poucos espaços das paredes iam acabando sabia que se aproximava o dia em que seria posto em liberdade, após ter pagado pelo seu crime. Sua liberdade estava próxima, e quase podia senti-la entre os dedos, segurando-a.
            Num fim de dia, assim que o sol se pôs, fez a última marca naquela parede, e soube que no dia seguinte viriam pegá-lo para leva-lo embora. Não dormiu naquela noite, de tão ansioso que estava e os carcereiros encontraram-no já de pé, vestido e com um sorriso no rosto, pronto para ir embora, para poder sentir, após tantos anos, o gosto da liberdade. Algemaram-no pela última vez enquanto era levado pelos corredores estreitos sendo saudado por uns e insultado por outros que ainda tinham pena a cumprir. Via o céu sobre sua cabeça tão azul como ele nunca tinha visto e ouviu o canto dos poucos pássaros que se vinham pousar nos tetos dos pavilhões. Sua respiração estava pesada e ele se sentia sufocar a cada novo passo que dava. Imaginava quem o estaria esperando do lado de fora, quando atravessasse aquele imenso portão.
            Sentiu quando lhe tiravam as algemas e um dos carcereiros lhe deu um leve tapa no ombro, o mais próximo de um carinho que ele recebeu em todos aqueles anos. Viu quando o portão era aberto lentamente e quando, por fim, teve espaço suficiente para ver do lado de fora, não viu ninguém a lhe esperar. Deu alguns passos inseguros, pois suas pernas tremiam, rumo a liberdade por que tanto esperava, com a expectativa de ver alguém a lhe esperar, imaginando que um alguém qualquer tinha contado os dias do lado de fora, livre, da mesma forma que ele contava do lado de dentro, preso. Mas não havia ninguém ali. Não havia um abraço, um beijo ou uma palavra. Não havia absolutamente nada disso nem ninguém. Olhou para o alto e viu um manto de nuvens diáfanas cobrir parcialmente o céu; olhou mais uma vez para trás e viu o imenso portão sendo fechado às suas costas. Parado, ele respirou fundo duas ou três vezes, criando coragem e força para seguir seu caminho, agora que sua liberdade havia sido restituída, e ir à procura daqueles a quem não via há tantos anos.
           
Tudo estava mudado. As ruas pareciam ais largas e os carros corriam desenfreados de um lado para o outro naquele bairro. Ele custou a encontrar o caminho de casa, pois não reconhecia mais quase nada após tantos anos. Guiou-se pelo instinto, reconhecendo uma árvore, que havia sido poupada pelo progresso aqui ou ali, até que reconheceu uma onde tinha deixado, certa vez, uma marca. Tocou seu tronco ainda pulsante de vida e procurou com os olhos aqueles nomes que tinha escrito, deixando uma cicatriz na árvore, com a ponta de um canivete, mas o tempo os havia apagado. Sentiu um frio de tristeza lhe percorrer todo o corpo, pois imaginava que aquela marca seria eterna...
            No coração do bairro, onde vivera toda a sua infância e adolescência, de onde fora tirado para cumprir sua pena pelo crime cometido, as mudanças também tinha chegado, mas em bem menor escala. Algumas casas ele reconhecia, o campo de futebol ainda continuava o mesmo, mas a praça onde costumava, quando criança, ficar até tarde da noite até que sua mãe vinha chama-lo estava em ruínas. Dali, onde jazia o esqueleto da praça, ele podia fechar os olhos e se deixar guiar, pois seus passos o levariam até sua casa.
            Enquanto caminhava pelas ruas de seu bairro, era apontada pelas pessoas e ele sorria de volta, mas elas não reconheciam nele aquele menino que corria pelas ruas, descalço, que jogava bola naquele campo, que ficava até tarde da noite sentado nos bancos daquela praça e que fora envolvido num crime do qual ele queria esquecer e se arrependia amargamente, que lhe roubara não só sua liberdade, mas boa parte da sua vida.
            Chegou, por fim, à sua rua, que continuava praticamente a mesma de tantos anos antes. Viu a árvore em frente a sua casa e teve vontade de correr e tocá-la uma vez, abraça-la e subir em seus galhos.
            Ficou um longo tempo em frente a sua casa, sem ousar se aproximar do portão e ver se ele continuava aberto. Deu alguns passos e viu que estava trancado com uma grossa corrente e um cadeado. “Estranho”, ele pensou, “o portão de casa sempre ficou aberto dia e noite”. Olhou um lado e outro, em busca de uma campainha, mas não a encontrando, resolveu bater palmas e chamar pelos de sua família. Demorou até que alguém respondesse e viesse abrir o portão. Quando ele viu, era uma senhora idosa abrir uma brecha no portão e olhá-lo de cima a baixo.
            - Vá embora. Hoje eu não tenho nada para você – disse ela, fechando o portão.
            Ele ainda tentou impedi-la, tentando segurar o portão, dizendo que ela tinha se enganado, que não o tinha reconhecido.
            - Mas mãe, sou eu. A senhora não me reconhece?
            - Eu não tenho mais filho. Ele morreu há anos. Agora vá embora ou eu chamo a polícia, seu vagabundo.
            Ele imaginava que seria recebido de mil e uma maneiras, menos daquela. Então era aquilo que sua mãe pensava, que não tinha mais filho? Sentiu aquelas palavras como uma punhalada no peito. De cabeça baixa, ele se sentou no chão, encostado à árvore e deixou que aquela tristeza daquele primeiro contato com sua mãe se diluísse. Esperou quase uma hora naquela posição, sequer atentando para as pessoas para as pessoas que passavam à sua frente apontando e fazendo gestos de desaprovação. Levantou-se lentamente, com as pernas pesando mais do que chumbo e foi novamente até a frente do portão, para tornar a chamar sua mãe.
            Implorou e chegou a chorar, mas não havia nada que pudesse demovê-la. Para ela, ele tinha morrido, sido sepultado dentro daquela prisão e esquecido, e tornou a ameaça-lo: se não fosse embora, iria chamar a polícia.
            Abatido, ele deixou que seus passos o levassem para outras ruas, para a frente de outras casas conhecidas suas em outros tempos. Estava cansado e triste, após tão longos anos, não ser reconhecido, ser recebido daquela maneira pela sua própria mãe!
            Foi até a rua onde moravam alguns amigos e ficou um tempo em frente a casa de alguns, com medo de se anunciar. Tinha medo de ser escorraçado, pelos amigos, da mesma forma que fora por sua própria mãe. Chegou até a lanchonete que fora outrora gerida pelo pai de seu melhor amigo. Sentou-se num banco alto em frente ao balcão e esperou ser atendido, o que demorou um grande tempo. Seus cabelos estavam grandes, despenteados, tinha olheiras profundas e uma basta barba a fazer. Ficou olhando as pessoas indo e vindo e a intensa movimentação dentro do estabelecimento, até que seus olhos caíram sobre um homem que gerenciava o negócio, atendia aos clientes e cuidava do caixa. Reconheceu-o imediatamente, pois apesar do tempo que passou, seu amigo continuava com o mesmo jeito enérgico e com o mesmo olhar. Tentou chamar sua atenção e ele o olhou de frente, mas não o reconheceu. Fez apenas um gesto com a cabeça indicando-o para que um funcionário fosse ver seu pedido. Só então se deu conta de que não tinha um único centavo nos bolsos, e o funcionário ao notar isso, tratou de coloca-lo pra fora.
            - Mas eu preciso falar com ele – falou, apontando para o amigo, que tinha parado seus afazeres para ver quem era aquele indigente que entrara em seu estabelecimento sem dinheiro para comprar nada e estava tendo que ser expulso para não incomodar os outros clientes. O amigo ficou impassível, se o reconhecer em absoluto, por mais que ele falasse, que dissesse seu nome, que tentasse força-lo a lembrar.
            - Não o conheço – foi a única coisa que disse, virando as costas e voltando aos seus afazeres, pedindo desculpas a um cliente pelo contratempo.
            Deixou que seus passos o levassem, mais uma vez, para longe, para perto da pessoa que ele tinha certeza de que não tinha esquecido, um minuto sequer, dele.
            A casa onde ela morava continuava a mesma que ele guardava na memória. Ficou observando, vendo se alguém sairia ou chegaria. Tinha medo de se anunciar. Ficou longas e intermináveis horas, ali, parado em frente aquela casa, sem que nada acontecesse, sem ver ninguém, até que viu a porta se abrir e por ela passar um jovem adolescente, que ia para a escola e se despedia da mãe. Logo em seguida apareceu a mulher, que o homem reconheceu de imediato apesar das mudanças que o tempo tinha lhe infligido. Quando ia se aproximar dela, viu surgir um outro homem, um amigo de outros tempos que ele reconheceu, que a enlaçou pela cintura e a levou para dentro de casa.
            Não conseguindo conter em seu peito aquela tristeza que lhe tomava por inteiro, ele deu vazão a tudo que sentia através de lágrimas, que escoavam em abundância de seus olhos. Logo toda a sua face estava manchada pelos sulcos deixados pelas lágrimas em sua alma. Soluçava alto, sentindo um gosto amargo na boca e repetia de forma ininteligível a palavra “liberdade”. Tinha passado tantos e tão longos anos esperando por aquele momento, contando os dias, lembrando, para se ver assim, esquecido de tal maneira.
            Chorou por horas a fio, sentindo o gosto amargo na boca e a dor na alma, repetindo sem cessar:
            - Tantos anos, esperando por esse momento, por essa tal liberdade, para ver que seu gosto é amargo, para ver que fui esquecido até por aqueles a quem mais amei um dia. Sentia-me muito mais reconfortado quando vivia a ideia e contava os dias e horas. Agora, ao me deparar com a realidade, vi que vivi uma ilusão na qual era feliz. Pelo menos, quando estava preso ainda tinha uma esperança, e agora vejo que não adiantou de nada cultivá-la...
            Abaixou a cabeça, chorou mais um pouco e foi embora, deixando que seus passos o levassem para um destino incerto, onde poderia esquecer, pois esquecido ele já fora.

domingo, 17 de junho de 2012

Esquecer

Ele queria esquecer. Poder fechar os olhos e nem que fosse por uma fração de segundo, pelo tempo que existe entre uma batida e outra do coração, poder simplesmente esquecer. Queria poder livrar sua mente de todo e qualquer pensamento, ficar no mais profundo e completo silêncio, silenciar as vozes em sua cabeça para viver um instante de paz consigo mesmo. Ele queria fugir do mundo, de tudo e de todos, mas não podia fugir de si mesmo, e onde quer que fosse ele estaria junto consigo, para fazê-lo, sempre, lembrar daquilo que não podia, jamais, esquecer. Ele, por vezes, chegou a correr até cansar, desesperado, tentando fugir daqueles pensamentos, em vão. Suas pernas cansaram, seu coração batia acelerado, a respiração estava pesada, e tudo que havia cansado foi se frustrar ao constatar que não podia correr mais rápido, fugir de seus próprios pensamentos, que o tempo todo o faziam lembrar daquilo que ele queria esquecer.
            Cansado, ele desabou no chão, pois se sentia exausto, acabado física e mentalmente. Sentia como se estivesse eternamente a andar em círculo, como em uma maldição, sendo obrigado, o tempo todo, a voltar para o local de onde partira, somente para se ver obrigado a lembrar, a se ver de frente com o inevitável, que ele queria evitar a todo o custo. Com os olhos fechados ele se deixou prender, se deixou ser agarrado e levado com uma criança obediente pela mão, sendo conduzido passo a passo para o local em que se depararia com aquilo que tentava evitar, esquecer. Seus pés o levaram instintivamente, pois sabiam o caminho, como se, por mais que negasse, era para ali que deveriam tê-lo levado há tempos. Suas mãos abriam portas que ele deixava outrora trancadas, como se só em tocá-las elas se abrissem, pois há tempos o esperavam. Não via nada do que acontecia ao seu redor, pois caminhava com os olhos fechados, deixando que seus pés e seu destino o guiassem. Não ouvia os milhares de sons que explodiam em todos os cantos, pois estava atento apenas aos sons e vozes que agora pareciam sossegar aos poucos dentro de sua cabeça. Quase que sentia falta dessas vozes que o acompanharam desde sempre.
            Parou em frente a uma porta que estava trancada. Procurou em seus bolsos a chave, pois sabia que a havia guardado em algum lugar, sabendo que, mais cedo ou mais tarde, iria precisar dela para abrir aquela porta. Transcorreram minutos infindáveis, que se arrastavam como uma eternidade, até que encontrou a chave. Enfiou-a na fechadura, destrancando a porta, e girou muito lentamente a pesada maçaneta, como se, justo naquele instante, pudesse ainda fugir. Mas não ousou dar esse passo para trás. Já havia fugido demais, e precisava, naquele momento, encontrar-se com aquele de quem tanto fugira. Deu um passo pesado mas decidido para dentro daquele recinto. Contava os passos que dava, um a um, até que parou de frente a um enorme objeto que estava encoberto por um pesado pano. Abriu os olhos e viu, encoberto, o objeto que tanto evitara. Ainda se sentia seguro ao vê-lo encoberto, inofensivo. Muito lentamente esticou o braço e abriu a mão para poder retirar aquele pano. Ao fazê-lo, uma espessa camada de poeira subiu, obrigando-o a abaixar os olhos. Agora se via, finalmente, frente a frente com o objeto que evitara, que podia fazê-lo ficar frente a frente com a pessoa de quem fugira, e só o que o separava dessa pessoa era um levantar de olhos. Ainda sentia um certo medo, uma insegurança, instinto de uma autopreservação, mas não podia evitar. Lentamente levantou os olhos. Viu se delineando a forma do espelho que evitara, que o mostrava de corpo inteiro e, do outro lado, aquele de quem fugira, que tentara, em vão, por anos a fio, esquecer. Viu-se, frente a frente, consigo mesmo. Miraram-se, olhos nos olhos, despidos de todas as máscaras, sentindo todo o peso daquele reencontro.

domingo, 10 de junho de 2012

Doces lembranças, dura realidade


Após tantos e tão longos anos, voltei. Mas tal foi a minha surpresa ao me deparar com tal cena que se descortinava diante de meus olhos. Deveria ter ficado onde estava, distante, e permanecer com a imagem que guardava em minhas lembranças do que ter diante de mim aquilo que meus olhos viam e que minha razão demorava a crer. Não havia qualquer som, seja de risada, o latido de um cão ou o canto de um pássaro. Nada restava ali. Tudo estava morto. Uma única e doída lágrima me escapou do olhou e escorreu por minha face. Não tentei contê-la, escondê-la ou limpar o rosto, pois aquela era uma lágrima verdadeira, que brotava do fundo de minha alma.
            Andei distraído, contando os passos, revisitando na memória cada um daqueles lugares que não mais existiam. Tudo era desolador e me doía fundo no peito. Em minha ingenuidade, imaginava que aquele lugar ficaria eternamente a me esperar, como um refúgio, onde eu poderia me recolher e voltar a ser o que um dia fui. Mas ao ver aquilo, sentir aquela dor no peito, sentir as lágrimas que brotavam em abundância de minha alma e escorriam pela minha face, percebi que não fui ingênuo, mas sim um tolo ao acreditar naquela fantasia que só existia em minha cabeça, em minhas lembranças, pela qual nutria tanta esperança.
            Senti um frio me percorrer o corpo, apesar do calor que fazia, pois não havia, ali, mais uma única sombra onde pudesse me refugiar. Sentei-me naquele chão duro, tão pouco acolhedor e peguei um punhado de terra e deixei que ela me escorresse por entre os dedos. Não era mais a mesma terra de outros tempos. Olhei para o alto e o vi tão cinza, como tudo ao meu redor, da cor que ia se tingindo, pouco a pouco, a minha alma. Soltei um suspiro fundo e fechei os olhos, com a esperança de que, ao reabri-los, veria tudo diferente, e cheguei a escutar os ecos de outros tempos reverberando nas paredes de minha memória e cheguei até a sorrir. Não queria abrir os olhos nunca mais e sair dali como chegara, com as doces lembranças dos tempos passados que sonhava ainda poder reviver.
            Levantei-me lentamente, ainda com os olhos fechados, apoiando-me no chão com as mãos, pois me sentia fraco. As minhas pernas, que haviam me trazido até ali, haviam perdido as forças e se negavam a me levar embora, como se se negassem a me obedecer, como se desejassem aumentar ainda mais a tortura da dor que sentia naquele momento. Inspirei fundo duas ou três vezes na tentativa de sentir os cheiros que me eram tão familiares, mas o que senti foi o cheiro da poeira que pairava no ar.
            Não queria, mas precisava novamente abrir os olhos, pois necessitava, mais uma vez, me punir pela minha tolice, por ter desejado voltar aquele lugar, para comprovar a minha insensatez ao crer que a infância é eterna, que estará para sempre ali, a nos esperar, para quando quisermos regressar a ela e fugir do mundo, da rotina, do dia-a-dia.
            Como fui ingênuo, como fui tolo. Fui o responsável por destruir parte de mim mesmo, parte do que e de quem eu sou. Se soubesse que iria me sentir como estava me sentindo, jamais teria cogitado a possibilidade de voltar àquele lugar, e o teria deixado guardado para sempre onde ele jamais deveria ter saído: na minha memória. Mas agora é tarde. O estrago já havia sido feito, e só me resta chorar, dar vazão àquelas lágrimas da alma e deixar que elas banhem meu rosto e viver o resto da vida com o remorso por ter destruído uma infância ao querer reviver uma doce infância, mas, em seu lugar, ter me deparado com uma dura realidade...

domingo, 3 de junho de 2012

O perfeito mundo de pedra e metal


Naquele mundo tudo era feito de pedra e metal. As pessoas viviam enclausuradas dentro de suas armaduras e jamais se mostravam umas às outras. Eram armaduras que escondiam tudo, até os olhos das pessoas ficavam protegidos por viseiras. Estavam, todas, tão habituadas a viverem daquela maneira que se tornaram distantes e completas estranhas umas às outras. Ninguém trocava um gesto de carinho com ninguém, os olhares jamais se cruzavam e mesmo as palavras eram raras e escassas naquele mundo.
            Era um mundo áspero, hostil à vida e a qualquer gesto da menor que fosse a delicadeza. “Nada frágil é capaz de sobreviver nesse mundo”, disse, certa vez, um governante, e todos tomaram aquelas palavras como lei. “Toda e qualquer fraqueza será combatida e expurgada”, também dissera. E assim foi feito, e o mundo foi se moldando segundo aquelas palavras e as pessoas se acostumaram àquele modo de vida.
            Naquele mundo o sol mal esquentava e as chuvas eram rigorosamente programadas, os ventos eram controlados e a primavera fora banida. No céu havia eternas nuvens cinza que mal permitiam a passagem da luz do sol durante o dia, e não deixavam com que se entrevisse, à noite, a lua e as estrelas. As cores foram proibidas e no céu há tempos não ousava surgir um arco-íris.
            As pessoas, tão mecanizadas estavam, tão enraizadas dentro de suas armaduras, julgavam viver num mundo perfeito. Até certas palavras, naquele mundo, foram esquecidas, e os sentimentos, os poucos que ainda restavam àquelas pessoas, eram reprimidos. Felicidade era uma palavra que fora abolida, na verdade esquecida, pois não se havia qualquer noção do estado de espírito, do sentimento que ela exprimia.
            Assim, todos viviam naquele mundo tão perfeito, cada qual sem qualquer tipo de preocupação além de seguir as suas rotinas.
            Dentro das grandes cidades, entre aqueles gigantescos prédios, nas longas avenidas, as pessoas corriam de um lado para o outro, muitas vezes se esbarrando umas nas outras, sem ao menos prestarem atenção que, ao seu redor, não havia nada que denotasse a existência de qualquer tipo de vida. Não havia árvores, não havia animais de qualquer tipo. As relações humanas eram mecanizadas.
            Tudo naquele mundo era lógico, programado e perfeito. Nada saia fora do programado, dos horários, da rotina, até que um dia um homem, mesmo naquele mundo hermético, higienizado, adoeceu. Talvez tenha sido só um mal-estar, uma indisposição, mas como ele não estava acostumado a lidar com uma situação daquelas, por uma debilidade e certa lentidão provocada pela “doença” (palavra esta que também tinha sido abolida naquele mundo), fez tudo de forma mais lenta do que o normal. No trabalho, tinha sido o último a chegar, coisa que ninguém percebera, e o último a sair. Nas avenidas e vias públicas, por onde todos andavam tão apressados, ele caminhava devagar, como que contando os passos, equilibrando-se para que sua fraqueza e indisposição não o levassem ao chão. Num espaço vazio, numa ruela estreita, entre dois prédios, ele se recolheu enquanto recobrava um pouco de suas forças. Estranhou ver aquele espaço ali, como que esquecido, incongruente naquele mundo onde tudo era tão perfeito, calculado e no seu devido lugar, tão perfeitamente encaixado. Sentou-se no chão, recolhendo-se nas sombras dos dois prédios, e observou a rua iluminada à sua frente, as pessoas em suas armaduras indo e vindo, sempre tão apressadas, e só ele, ali, sozinho, a observá-las. Era como se só ele, em todo o mundo, estivesse a observar o mundo ao seu redor. Quando se sentiu um pouco melhor, apoiou sua mão no chão, para tentar se levantar, e foi só então que se deu conta de que bem ao seu lado havia algo que ele desconhecia, algo tão minúsculo e frágil que ele quase esmagara com sua mão sem se dar conta. Abaixou-se por inteiro, de forma que quase se deixa no chão, para que seus olhos ficassem da altura do minúsculo ser. Não sabia o nome daquilo, e mesmo a temendo, pois a desconhecendo, não sabia o mal que aquilo poderia lhe causar, a pegou, meio sem jeito, mas com toda a delicadeza de que era possível, a retirou do solo e a depositou num compartimento de sua armadura e a levou para sua casa.
            Só ao chegar a sua casa foi que ele se deu conta de que não sabia o que fazer nem onde colocar aquilo que trazia tão protegido dentro de sua armadura, e a manteve segura na mão por um longo tempo, a contemplar tamanha delicadeza e beleza. Tinha uma cor clara e bela, diferente do cinza metalizado por que estava cercado. Não lembrava o nome daquele ser, não se lembrava do nome que se dava àquela cor, mas aquilo o fez sentir algo diferente, como um palpitar dentro de seu peito. Pensou que seu peito fosse explodir e largou o diminuto ser no chão. Quando o bater em seu pito se normalizou, assim como sua respiração, voltou a pegar aquilo que tanto o maravilhava e intrigava. Desejou tocá-la e sentir seu toque na mão, mas aquela armadura o impedia de ter qualquer sensação do mundo externo. Foi então que resolveu cometer uma insensatez: retirou a luva de sua armadura para poder tocar, com a ponta do seu dedo, o delicado corpo alongado e delicado, uma haste que terminava numa profusão de pequenos braços que se abriam para o mundo, como se o pequeno ser se desnudasse para poder ser contemplado. Mas só tocar não foi suficiente, ele queria sentir mais daquele ser, e mesmo com todo o medo que sentia, retirou seu capacete e ao fazê-lo, suas narinas foram invadidas por um aroma doce e delicado que era desprendido do ser. Jamais havia sentido nada parecido, jamais tinha tocado (e sido tocado) por algo tão delicado; jamais tinha sentido um aroma tão inebriante. Olhou-a de mais perto (sabia, sentia, de alguma maneira, que o ser era feminino).
            Sentiu uma necessidade de compartilhar aquela descoberta com outras pessoas, de apresenta-la ao mundo. Mas antes de apresenta-la era preciso nomeá-la. Ficou horas a ruminar sobre que nome daria aquele diminuto ser. Foi acometido como que por uma lembrança, e a chamou de Flor.
            Havia redescoberto, naquele perfeito mundo de pedra e metal, um ser frágil que havia brotado entre dois prédios, algo tão delicado que havia abalado as estruturas de seu mundo e que, quando fosse reapresentado às pessoas agiria da mesma forma com cada um que a visse, contemplasse, tocasse e sentisse o seu doce aroma.
            Ele não sabia, ainda, mas aquela flor era a primeira que brotava de uma primavera que há tempos não surgia naquele mundo; de uma primavera vigorosa que iria florescer e dar vida, cores e aromas não só ao mundo em si, mas principalmente a todas aquelas pessoas que viviam (ou imaginavam viver) encarceradas dentro daquelas intransponíveis armaduras de metal.

Como uma árvore


Eu queria ser uma árvore e ter raízes fundas, enterradas na terra. Os pássaros iriam criar seus ninhos e meus braços e seriam como meus pensamentos e sonhos. Eu iria cultivá-los e, quando estivessem suficientemente maduros, prontos, abririam suas asas e voariam para bem longe, para voltarem aos meus braços quando estiverem realizados, para criarem seus novos ninhos. O vento iria levar minhas palavras mudas, mas, mesmo assim, palavras, que chegariam aos quatro cantos do mundo. Seria admirado pelo meu tamanho, visto de baixo para cima, tão grande, pelos seres que andam com os pés plantados no chão, e visto de cima para baixo, tão pequeno, pelos pássaros no céu.
            Eu queria ser uma árvore, ser sólido, não como uma rocha, sem vida, mas com uma vida pulsante em todo o meu corpo, desde a raiz até a última folha em minha copa. Sentir e ser vida, como poucos os seres viventes na terra o são, e ver, lá do alto, todo o mundo se descortinando a meus pés, podendo tocar as nuvens com as pontas de meus dedos.
            Eu queria ser uma árvore para ser um berço de vida, um berço de amores, quando os casais apaixonados viessem até mim e deixassem, marcado em minha pele, seus nomes, como votos de um amor eterno, que eu carregaria, como testemunha, até quando eles não mais se lembrassem de tais votos. Ser eterno como os votos desse amor, mesmo quando não existisse mais amor, mesmo quando as pessoas desse amor não mais existissem.
            Eu queria ser uma árvore, para ser único, para ser tão especial para tão poucos e para tantos; para ser sombra, mas também para ser fonte de calor, para ser fonte de vida, para me vergar ao vento e a nada me subjugar; para ser o primeiro a sentir as primeiras gotas d’água da chuva que cai do céu e sentir seu toque frio e quente, escorrendo por todo o meu corpo, até caírem, finalmente, no chão, indo se enterrar fundo, na terra, próximas às minhas raízes.
            Eu queria ser uma árvore para que todos viessem, em dias de chuva, se abrigar por entre meus galhos, protegendo-se; para que, em dias de sol, viessem se proteger sob meus braços, na minha sombra. Ser como um abrigo, como um amigo, um alguém em quem se confia, um alguém a quem se ama.
            Eu queria ser uma árvore para ouvir todas as vozes. Ser o primeiro ouvir o canto dos pássaros a saudar um novo dia, ser aquele a quem se confia os segredos mais íntimos, os sonhos mais secretos e os maiores devaneios, e ser a silenciosa palavra de consolo.
            Eu queria ser uma árvore, para ser forte em aparência, mas para ser frágil em minha essência. Ser fúria ao enfrentar bravamente as tempestades, mas ser paz em cada final de dia, quando o sol se põe no horizonte e é em mim que ficam seus últimos raios, em quem fica gravado o último brilho de seu olhar antes de se deitar lá longe, em quem fica seu último calor antes de deixar-nos a sós com a escuridão da noite.
            Eu queria ser uma árvore e ser eterno. Eterno como o amor declarado pelo casal apaixonado, eterno como é o ciclo do dia, como despertar do sol todas as manhãs e o canto dos pássaros a saudá-lo e eterno como o viver, como são as marcas que deixamos na vida daqueles que encontramos, como sementes a cultivar que plantamos, que um dia lançarão raízes fundas e crescerão como frondosas árvores.