domingo, 30 de novembro de 2014

Nós e nossas leituras

Desde que nascemos, somos bombardeados por informações mil, por influências mil que farão parte e nos acompanharão, lado a lado, durante aquele instante ou fase nossa vida, e que, algumas, até certo grau, far-se-ão tão imprescindíveis, deixarão marcas tão profundas que nos acompanharão até o fim de nossos dias. Fazemos escolhas, selecionamos e até deixamos que um algo nos marque mais do que um outro, mas há casos que algo nos marca tal que nem nos damos conta, naquele momento, de sua importância e até onde vai sua influência.
            Quando crianças, as nossas escolhas são fáceis. É algo entre o personagem favorito, o ídolo do momento ou que canal de televisão e desenho assistir, e essas escolhas nos acompanharão pelo resto da vida, embora só consigamos nos dar conta bem na frente, quando nos bate aquela “seção nostalgia” e percebemos o quanto tal personagem nos marcou e temos dele, o quanto rimos e nos divertimos com tal desenho, etc. Na adolescência, já temos, talvez, que ser mais criteriosos e menos impulsivos como quando criança, pois nessa fase é que começamos a desenvolver o nosso senso crítico e começamos a ter a nossa própria opinião/posição diante daquilo que temos que escolher. Continuamos a ter os ídolos, sim, como em tempos passados, mas eles adquirem outro status e importância em nossa vida. Fazemos nossas escolhas em cima de critérios rígidos que desenvolvemos (se bem que por vezes nem tão rígidos assim). Escolhemos as nossas bandas favoritas, as músicas favoritas, e, em determinada fase da adolescência, devemos fazer uma opção crucial, que pode fazer com que a nossa vida tome um definitivo rumo, que é o de que curso fazer e que carreira seguir. Também nesta fase de nossa vida é que, por sermos mais criteriosos, passamos a sentir mais as influências de nossas escolhas e das experiências marcantes que vivemos. Quando adultos, as escolhas tornam-se ainda mais difíceis, pois entra, nessa fase, o quesito responsabilidade. As influências que sofremos, embora saibamos lidar com elas (na maioria das vezes), também são muito fortes.
            Algo de que muitas vezes não nos damos conta (por motivos diversos), e que nos influenciaram enormemente em nossa trajetória de vida, são as leituras que fizemos ao longo dos anos, de quais os livros que mais nos marcaram e quais colocamos como mais importantes para a nossa formação.
            Na infância, embora muitas vezes sequer nos lembremos, devemos fazer os devidos agradecimentos às leituras dos quadrinhos, que, muitas vezes, representam uma abertura de portas para o hábito da leitura. Personagens como os da Turma da Mônica nos deixam, até hoje, mesmo já adultos formados, fascinados e despertam em nós o gosto dos tempos passados. Além dos quadrinhos, devemos prestar homenagens aos autores formadores dessa fase, como Ziraldo, Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Monteiro Lobato, entre outros tantos, que acompanharam todas as fases do nosso letramento e que foram, em muitos casos, os primeiros livros que tivemos e que tivemos o prazer de ter lido. Lemos coleções diversas, acompanhamos os personagens e nos deixamos ser guiamos pelas gentis mãos de um habilidoso e (por vezes) fantasioso escritor.
            Na fase da adolescência, os livros e leituras adquirem um outro papel e são outras as motivações que nos levam a escolhê-los. É nessa fase que muitos de nós começamos a desenvolver efetivamente o hábito da leitura, que começamos a desenvolver a disciplina necessária para o cultivo sobre como a literatura irá semear a nossa vida e nossa personalidade. Continuamos, muitas vezes, a ler quadrinhos, mas muitas vezes negamos os que temos como infantis (afinal de contas, nessa fase de nossa vida tendemos a ser suicidas, negando muito do que diz respeito aos personagens e hábitos de certas leituras desenvolvidas na infância). Lemos os super-heróis das revistas da Marvel e DC. No que se refere aos livros, começamos a nos identificar com determinados gêneros e autores. Tomamos conhecimento, num primeiro momento, de alguns clássicos, por vezes em versões adaptadas para a linguagem adequada a tal fase da vida, uma vez que os textos na íntegra, no original, nos parecem tão pouco atrativos, nos aventuramos junto com determinados personagens, como Sherlock Holmes, que, além de ajudar a desenvolver o hábito da leitura, aguça o nosso raciocínio. Também fazem parte dessa fase a leitura de “livros do momento”, que lemos por impulso e influência de outros colegas de leitura, escola ou familiares. Quando adolescentes numa fase mais avançada, já com o hábito da leitura solidificado, começamos fazer as nossas próprias escolhas ao iniciar a leitura de livros de cunho fantasioso, como as de Tolkien, ficamos com o “cabelo em pé” com as de terror do Stephen King, aprendemos com as filosóficas e lúdicas obras de Jostein Gaarder. Começamos, já, em determinada fase da adolescência, a ler obras de maior “peso”, uma espécie de primeiros clássicos que lemos na íntegra, e a partir desse momento nossa vida, como leitores, começa a mudar profundamente.
            Na fase adulta, por vezes, já com a leitura fazendo parte de nosso dia a dia, nos deixamos levar e desafiar pelas mais diversas leituras. Por vezes, quando cansados, para não ficar sem ler nada, pois isso é algo que não conseguimos, nos aventuramos numa leitura de entretenimento, nas páginas de um bom (e bem selecionado) best-seller, que irá nos “arejar a mente”, que irá nos distrair e nos envolver com uma cativante e empolgante história. Deixamo-nos, também, envolver com a leitura de romances históricos, nos vemos “com a boca seca” com as histórias de suspense e mistério de Allan Poe, nos aventuramos nas narrativas detetivescas de Conan Doyle e Agatha Christie, lemos crônicas diversas, romances que nos tocam e marcam, mas é nos edificantes clássicos que nos deleitamos e nos sentimos, como leitores, mais completos.
            É na fase adulta que realmente tomamos conhecimento das chamadas altas literaturas e deixamos que elas lancem profundas marcas na maneira como passaremos a compreender o mundo. Lemos os essenciais gregos através dos épicos de Homero e sentimo-nos tragados pelas obras do teatro, escritas há tantos séculos, mas que influenciaram fortemente a nossa cultura e que continuam, mesmo (devido) com o passar dos anos, tão atuais. Nos deparamos com os italianos como Virgílio e Dante, este tão importante para não só a literatura, mas pelo forjamento de uma ideologia religiosa que prevaleceu durante tantas séculos e que tem forte influência, ainda hoje, no pensamento ocidental. Os ingleses dispensam apresentações e comentários. Afinal de contas, o que falar sobre Shakespeare, Dickens, Jane Austen, as irmãs Brönte (cada uma mais genial do que a outra), Walter Scott, Joyce, Oscar Wilde, Virgínia Woolf, entre tantos outros? Sobre os franceses, quais citar? Dumas, Victor Hugo, Stendhal, Zola, Balzac, Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, Rabelaire, etc. fora La Fontaine, Perrault, autores de obras que fazem parte de nosso imaginário. E o que falar de Saint-Exupery, autor de uma obra que é eternamente nova a cada vez que a lemos? Não podemos deixar de mencionar o espanhol Cervantes, o alemão Goethe ou os portugueses Camões, Pessoa, Eça de Queiroz e Saramago. Os norte-americanos, apesar de como nação representarem um império que é com justeza criticado, na literatura nos deram autores formidáveis, principalmente no século XX, como Fitzgerald, Hemingway, Steinbeck e Salinger, foram os contemporâneos Paul Auster e Phillip Roth. E os russos, que marcam profundamente a alma de todos aqueles que se aventuram em suas narrativas densas e marcantes? Puchkin, Gogol, Leskov, Dostoievski, Turguêniev, Tolstoi, Gorki, Tchekhov, Pasternak, Nabokov. Existem tantos outros, de tantas outras nacionalidades, como Kawabata, Gabriel Garcia Marquez, Mia Couto, Jorge Luiz Borges, Kazantzakis... e que brasileiros mencionar? Falamos tantos, elogiamos tanto tantos autores estrangeiros e acabamos por relegar os nossos gênios da literatura. Machado de Assis é o maior deles, fato indiscutível, mas a nossa literatura não se limita só e unicamente a ele. Temos também os formidáveis Gregório de Matos, Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Aloisio de Azevedo e os romancista dos movimento romântico brasileiro, temos o “príncipe dos poetas”, Olavo Bilac, temos os fenomenais pré-modernistas como Augusto dos Anjos, Lima Barreto e Monteiro Lobato, temos os modernistas de primeira fase e os geniais poetas e romancistas da segunda, surgidos principalmente a partir da década de 1930, como Carlos Drummond, Cecília Meireles, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado e Érico Veríssimo, há os que começaram a se distanciar do modernismo, representando um novo momento da nossa literatura, como Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Ariano Suassuna, Nelson Rodrigues, Fernando Sabino, Lygia Fagundes Telles.
Como se vê, somos quase que um quebra-cabeça formado por mil e uma leituras que vamos fazendo, colecionando ao longo de nossa vida, que ora nos influencia mais, ora um pouco menos, mas que foram, todas, essenciais para a nossa formação humanística.
            Algumas pessoas usam o ditado popular “diga-me com quem andas, e te direi quem és”, mas nós, leitores, podemos parafrasear tal pensamento e dizer algo do tipo “diga-me o que lês, e te direi quem és”!

Somos, como seres dotados de consciência e senso crítico, fruto de nossas experiências de vida, e as leituras feitas estão entre as experiências que mais se mostram essenciais na nossa formação humanística, tendo elas sido realizadas lá atrás, como primeiro contato e experiência de leitura, seja via um livro ou revista, seja a leitura que acabamos de finalizar ontem, de um livro escrito na semana passada ou de um cujas palavras foram grafadas numa primeira edição há tantos séculos.

domingo, 16 de novembro de 2014

Escrevezinhar

Escrever é como cozinhar: envolve todo um longo processo, que executamos com imenso carinho, que vai desde a escolha do prato a ser preparado, escolha dos ingrediente ao paciente preparo e arranjo do prato para que seja melhor apreciado e degustado.
            O escritor, assim como o cozinheiro, precisa escolher bem o prato de acordo com a situação e os convidados que vai receber, se bem que de vez em quando, é bem verdade, surgem imprevistos, e é necessário se agir rápido, sem pensar muito. Às vezes o cozinheiro, assim como o escritor, não está muito inspirado, mas cozinhar, assim como escrever, se faz necessário, e ele prepara algo simples, como um feijão com arroz e bife, que vai saciar a fome imediata, mas vai, ao mesmo tempo, deixar nele a impressão de que poderia ter feito algo diferente, algo mais, como ter dado ao texto-prato um toque diferente, como ter posto um tempero capaz de surpreender os degustadores.
            O cozinheiro, assim como o escritor, escolhe bem os ingredientes necessários à preparação do prato-texto. Apalpa, sente a textura, cheira, vê se estão maduros, se estão “no ponto” para o preparo, coloca-os cuidadosamente na sua cestinha de supermercado, depois os passa no caixa e os organiza cuidadosamente numa sacola. Já em casa, quando vai iniciar o preparo do texto-prato, retira, um a um, os ingredientes, na ordem que vai utilizá-los. Descasca cuidadosamente os vegetais-palavras, corta com precisão as carnes, dando ponto finais às frases e vai vendo, pouco a pouco, o seu prato, mesmo ainda cru, tomar forma.
            O escritor, assim como o cozinheiro, não pode ter pressa no cozer de seu prato-texto. Não adianta querer acelerar ou atrasar a comida-texto. Se ele deixar passar do ponto, corre-se o risco do texto queimar, e se o retirar antes da hora, o texto não vai ter apurado devidamente os sabores dos condimentos e corre-se o risco, até, de, na pressa, o ter retirado ainda cru. Há textos-pratos que podem demorar até meses para serem preparados, pois, por vezes, falta um ingrediente específico que só pode ser colhido/encontrado em determinada época do ano e em determinado local. O cozinheiro, assim como o escritor, fica no dilema de seguir ou não no preparo do prato-texto, mas sabendo que ele, quando pronto, valerá a pena, opta por esperar, e enquanto o ingrediente que dará o sabor ao texto-prato não vem, ele seguirá preparando aperitivos, deixando os seus convivas entretidos a saborear pratos diversos, até que Voilà! surge ele, passando pelas portas da cozinha, equilibrando nas mãos uma travessa com tão belo e apetitoso prato, e os convivas, ao verem o esmero com que foi preparado, têm a certeza de que valeu a pena cada segundo daquela espera.
            O cozinheiro, assim como o escritor, é um ansioso, e olha com especial atenção as feições daqueles que provam seu texto-prato, analisando cada reação, de aprovação (ou não!), e só consegue soltar o ar de seus pulmões quando o outro, depois de mastigada a primeira garfada, exprime, com sinceridade, a sua opinião sobre o prato-texto. Se aprovada a comida-história, o escritor-cozinheiro, respira aliviado, satisfeito, mas se não, fica a rememorar cada passo dado no preparo, fica a se perguntar se usou os ingredientes na medida certa, fica sem saber se faltou uma pitada de sal, deixando o texto insosso, ou se colocou uma palavra a mais, fazendo com que o prato tenha passado do ponto, ficando salgado.
            O escritor, assim como o cozinheiro, é um solitário nato. Por vezes até tem uns alguéns por perto, opinando de que deveria escrever sobre isso, preparar um assado de tal maneira, explorar melhor esse personagem, deixar mais tempo a comida no fogo a fim de melhorar apurar os temperos, e essas ajudas são bem-vindas, sim, por mais que ele, por vezes, diga tê-las rejeitado, mas ele se sente, realmente, bem, quando sozinho, quando se sente rei do reino da cozinha ou de seu escritório, onde reina soberano, estando de posse de sua coroa e cetro, papel e caneta ou panelas e facas.

            Ambos, cozinheiro e escritor, são artistas. Um, prepara pratos finos para saciar a fome do corpo do homem, o outro, lapida palavras e as prepara num texto coeso e saboroso para saciar seu intelecto. São ambas as artes quedas quais o homem precisa para sobreviver, mas que precisa aprender a melhor apreciar, comendo devagar, garfada por garfada, lendo devagar, palavra por palavra.