quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

O Presente de Aniversário

Aquele era um dia muito especial para ele, pois estava completando 10 anos, idade em que, para um menino, se deixa de ser criança e passa a dar um primeiro passo em direção àquela fase de tantas descobertas que é a da adolescência. Iniciava-se, naquele dia, uma nova fase de sua vida, em que ele passaria a ostentar o orgulho de ser um pré-adolescente. Estava ansioso, desejoso de saber o que iria ganhar de presente dos pais. Seus amigos falavam do orgulho do que tinham ganhado no dia de seus aniversários de dez anos dos pais. Um havia ganhado um videogame novo, outro, uma bola oficial, igual aos que os jogadores jogaram na última copa do mundo, um terceiro ganhara uma camisa oficial de seu time de coração, um colega de escola, um  celular de última geração, um primo, um computador, outros amigos, apetrechos eletrônicos diversos. Havia, de todas as maneiras possíveis, descobrir o que iria ganhar, mas nem seu pai nem sua mãe lhe davam pistas. Ele deu a entender o que gostaria de ganhar, mas nenhum dos dois lhe dera muita atenção. Teria que se contentar com a surpresa, em receber o presente somente na hora da festa.
            Em casa estava quase tudo pronto para a festa, a última festa de aniversário com direito a bolo, refrigerante e lancheiras, afinal de contas no seu aniversário seguinte ele completaria 11 anos e já não seria mais criança para uma festa como aquela daquele dia. As horas passavam e quanto mais se aproximava, mais ansioso ele ficava para receber os convidados e os presentes e mais ainda para abrir o embrulho que escondia o grande presente, aquele pelo qual tanto ansiava receber desde que passou a ter consciência do quão importante significava para um menino ter dez anos!
            No final da tarde e início da noite, os convidados começaram a chegar, cada um trazendo seus presentes, desejando-lhe parabéns, dando-lhe tapas carinhosas no ombro, falando o quão grande estava, etc. A cada instante, ele olhava para trás e via os pais, sempre sorridentes, como que esperando que eles viessem lhe dar o presente que haviam comprado, mas eles não davam um único passo em sua direção.
            Foram tantos os convidados que ele recebeu, foram tantos os presentes e cumprimentos recebidos que ele, por instantes, se esqueceu da ansiedade de receber o presente dos pais. Cantou-se o parabéns, ficou entretido em uma conversa com amigos e primos, distribuiu-se as lancheiras, e lá pelas tantas horas da noite, quando vários dos convidados já tinham ido embora, alguém lá de dentro gritou: “hora de abrir os presentes!”. Ele, com um enorme sorriso, correu para onde os presentes estavam todos empilhados e já se sentava no chão, acompanhado dos melhores amigos, quando seus pais lhe chamaram a atenção e lhe entregaram um belíssimo embrulho. Seu sorriso ficou ainda maior. Sentiu a caixa, que era pesada, tentando adivinhar do que se tratava, mas por mais que a apalpasse, não conseguia descobrir do que se tratava. Olhava ora para o pai, ora para a mãe, e eles só sorriam divertidos, e diziam “adivinhe o que é”. Ele disse os nomes de algumas coisas que ele gostaria de ganhar, e eles só diziam “xiii, errou!”, “’tá frio”, e coisas do tipo. Então, cansou daquela brincadeira de adivinhação e começou a rasgar o papel de presente, primeiro com cuidado, e depois de forma descoordenada e ansiosa, e quando terminou, não gostou nada do que tinha diante de si: uma belíssima coleção de livros!
            - O quê? Livros! – disse ele, com notável decepção na voz.
            - Gostou? – perguntaram juntos pai e mãe.
            Ele não respondeu, e apenas colocou no chão, num canto, os livros.
            Abriu os demais presentes, muitos dos quais lhe agradaram muito, sendo justamente coisas que ele queria ganhar, mas não estava mais tão empolgado, afinal de contas, seus pais não lhe presentearam com algo tão especial quanto ele esperava!
            Terminada a festa, quando todos os convidados foram embora, ele ficou só com os pais, e começaram a guardar as coisas e a dar um jeito na casa. Os livros, que seus pais com tanto carinho escolheram e lhe deram, foram a última coisa que ele levou para dentro, para seu quarto, para junto dos demais presentes que tinha ganhado. Colocou-os lá num canto, onde normalmente guardava as coisas que pouco usava, os brinquedos velhos com os quais não mais brincava.
            Nos dias seguintes, tão desapontado estava com seus pais que quase não lhes dirigia palavras, e mesmo os evitava. Os livros ficaram esquecidos sob aquela pilha de coisas que ele não usava.
            Meses se passaram e os presentes que ganhara foram sendo usados, alguns quebraram, outros simplesmente se acabaram ou foram para a pilha de coisas que ele não mais usava. Quando via os amigos, via que os celulares que estes haviam ganhado já estavam ultrapassados, os computadores não mais despertavam interesse, os videogames não eram ligados há semanas, as bolas de futebol haviam furado, e as camisas oficiais de times de futebol estavam sujas rasgadas e repletas de manchas. Naquele fim de tarde, ao entrar no seu quarto, jogou-se sobre a cama, sentindo-se entediado. Nenhum dos presentes que ganhara lhe despertava o interesse. Ligou a televisão, não passava nada de interessante, ligou o videogame, os jogos já não mais lhe desafiavam, ligou o computador, não havia ninguém online com quem conversar. Soltou todo o ar dos pulmões, irritado, e voltou a se jogar na cama e ficou fitando o teto. Ouvia os sons da casa, de seus pais conversando enquanto preparavam o jantar. Ele então olhou de lado e viu, naquela “pilha de velharias”, como ele mesmo a havia batizado, e viu, lá na “base da pirâmide”, aqueles livros, os quais ele nunca havia aberto. Esticou o braço e pegou o primeiro deles, de forma despretensiosa, já com uma cara de entediado até, e o abriu de forma descuidada. Respirou duas ou três vezes com os olhos fechados antes de ler a primeira frase...

            Passaram-se horas sem que ele se desse conta. Sua mãe primeiro, depois seu pai, veio lhe chamar para jantar, ao que ele respondeu “vou já. Deixa eu ler só mais esse capítulo”. Quando ele deu por si, já era noite alta, seus pais já haviam ido dormir, deixando para ele o jantar dentro do micro-ondas. Ele então olhou para o livro, que já tinha devorado mais da metade com uma ânsia que desconhecia ter dentro de si, percebeu o quão maravilhoso e edificante havia sido aquele presente de aniversário que seus pais lhe deram. Foi bater à porta do quarto deles, e quando responderam que a porta estava aberta, que podia entrar. Ele então entrou e se jogou na cama dos pais, abraçou aos dois e agradeceu efusivamente o presente de aniversário que eles haviam lhe dado.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Asas

Quando nascem, todas as crianças têm asas para poder ir aonde quiserem, para fazer o que bem desejarem, pois são inteiramente livres, pois pertencem só e unicamente a si mesmas. Elas brincam livres no céu, sob os olhares estupefatos dos adultos, invejosos daquela liberdade e alegria a que é permitido só aos que possuem alma de criança.
            No céu, as crianças se sentiam inteiramente donas de si, e podiam viajar livremente nos braços dos ventos, mas havia uma em especial que era mais livre do que as outras: um menino que tinha um riso capaz de sobrepujar o barulho dos trovões nas noites de tempestade, que tinha asas tão grandes que ele as usava para abraçar a si mesmo quando estava com frio nas noites de inverno. Ele, junto com seus amigos, voavam pelos céus e chegavam perto do sol, mas só ele, ousado como era, ousava se aproximar o suficiente para sentir seu calor a lhe queimar a pele, e fazia isso com tanta frequência que sua cor era de um saudável bronzeado. Nas noites de luar, todas as crianças eram livres para ficar até tarde acordadas, e algumas, quando sentiam sono, podiam mesmo dormir planando no ar ou nos braços de uma estrela, mas diante de tanta alegria e felicidade, eram raras as que sentiam sono. Umas, mais afoitas, voavam bem alto em torno na lua, enquanto outras, mais alegres, brincavam com as estrelas, jogando-as de um lado para o outro, e os adultos, infantis, imaginavam tratar-se de uma “estrela cadente”, quando, na verdade, era apenas uma estrela que se deixava fazer de brinquedo pelas crianças.
            As crianças eram inteiramente felizes e livres, mas aquele menino era mais do que todas as outras, e primeira vez que seu sorriso lhe sumiu do rosto foi quando viu um adulto segurando uma criança, um amigo seu, pelo pé, impedindo-a de voar, prendendo suas asas num abraço apertado para que elas não abrissem. Ele então entendeu que aquele era o primeiro indício de uma obrigação a que os adultos impunham às crianças: o crescimento. Aquela foi a primeira criança que ele via dar seus primeiros sinais de crescimento a que os adultos e o mundo impunham, e ficou triste por dias a fio, sem ânimo sequer para voar. Mas logo esqueceu, como todas as crianças esquecem rapidamente das coisas, pois tinha muitos outros amigos para brincar durante os dias e noites de sua eterna infância.
            Um dia, quando estava no céu a brincar com uma nuvem, fazendo cócegas nela para obriga-la a tomar a forma de um animal, viu uma criança com os pés plantados no chão. Ele a chamou, mostrando como estavam a se divertir, ele a nuvem, convidando-a a participar da brincadeira, ao que ela respondeu com um olhar triste, mostrando que suas asas pendiam inertes. Ele ainda fez menção de ir até ela e voar com ela nos braços, ao que ela recusou, dizendo que a partir daquele momento não poderia mais voar, pois seu lugar era ali, com os pés bem firmes no chão. Ficou com uma lágrima presa na garganta, mas se aquele era o desejo daquela criança, tudo bem, ele respeitaria. Ainda havia, mesmo assim, algumas crianças livres, com enormes asas, embora não tão grandes quanto as suas, com quem poderia brincar e voar livremente pelo céu.
            Passadas algumas semanas, ele, num voo solitário num início de manhã, percebeu que havia menos crianças do que o normal, e olhou para baixo e viu um massacre acontecendo diante de seus olhos: adultos ignorantes prendiam as asas das crianças para que elas não pudessem mais voar, e outros iam ainda mais longe e arrancavam as asas para que nunca mais elas pudessem ser livres. Dessa vez, ele chorou, e suas lágrimas caindo eram como uma tempestade a desabar sobre a cabeça dos incautos que faziam aquilo com as crianças, prendendo-as no chão.
            Algumas crianças, mesmo livres, começaram a não conseguir mais voar tão alto e pouco a pouco foram perdendo, naturalmente, capacidade de voar, e estas, quando punham seus pés no chão e não tinham mais forças nas asas, choravam tão alto que até as estrelas no céu se compadeciam de suas novas condições, presas ao chão. Outras, para evitar perderem suas capacidades de voar, suas preciosas liberdades, tentavam viver uma vida dupla: na terra, como todos, e no céu, livres; mas a estas logo as obrigações do dia-a-dia, as infindáveis rotinas prendiam, a ponto de elas se esquecerem de como se faz para voar, e suas asas caíam inertes ao longo do corpo.
            Uma a uma, as crianças começavam a ficar presas ao chão, umas por que eram obrigadas, com os adultos obrigando-as a se plantarem no chão, enquanto outras tinham as asas as asas brutalmente arrancadas, para que nunca mais pudessem voar livremente no céu.
            Todas aquelas crianças que um dia foram livres não mais voavam, com a exceção daquele menino, que agora brincava sozinho. Ia de uma nuvem a outra, brincava de esconde-esconde com o sol, conversava, à noite, com a lua e ainda jogava, vez por outra, uma estrela de um lado para o outro. Quando olhava para baixo e via um de seus antigos amigos, agora transformados em adultos, chamava por eles, mas eles, tão ocupados em suas rotinas, ou não ouviam, ou não escutavam ou chamado, ou fingiam não ouvir aquele chamado, e seguiam sempre em frente, com a cabeça baixa e os pés bem firmes plantados no chão.  Ele, mesmo percebendo que mais que chamasse os outros não olhariam para cima, continuava a chamar até cansar. E quando eles não podiam mais ser vistos, seja porque entravam em um ônibus, carro ou se trancavam num escritório ou dentro de casa, sentia-se cansado e triste e perdia, por um instante, a vontade de voar, e em uma ocasião quase foi pego por um adulto, que desejava lhe podar as asas.
            Sentia-se só, agora que não tinha uma outra criança com quem brincar e compartilhar as alegrias e sorrisos, e essa solidão foi lhe pesando dia após dia a ponto de tal peso lhe impedir de voar tão alto como gostava. Um dia, não aguentando mais tal peso, resolveu se deixar cair lentamente, tal qual uma pluma que se deixa levar ao sabor do vento. Pousou suavemente no chão e dobrou delicadamente suas asas e começou, a partir daquele dia, a viver como uma pessoa comum, a seguir uma rotina, a ter suas responsabilidades.
            Passaram-se muitos anos e ele cresceu, como toda criança cresce, e, tão ocupado como estava em viver a vida, se esquecia do menino que um dia fora. Nunca olhava para o céu, seja durante o dia seja à noite, e sua pele, antes bronzeada, perdeu a beleza da cor e o viço.

            Mas um dia, quando voltava de seu trabalho para casa, parou subitamente, como que se tivesse ouvido algo ou alguém a lhe chamar. Era noite e não havia uma única nuvem no céu e ele, ao olhar para cima, ao ver tantas estrelas e a lua a brilhar majestosa no firmamento, e foi então que um turbilhão de lembranças lhe tomou de assalto e ele sorriu e chorou ao lembrar do menino que um dia fora e do qual havia se esquecido. Olhou para as costas e viu as asas abrindo lentamente e sorriu ao perceber que elas ainda estavam vivas e possuíam vigor suficiente para levá-lo ao céu. Respirou fundo duas ou três vezes e deixou suas asas livres para baterem e lhe levarem de volta aos braços do céu. Sentiu seus pés iam pouco a pouco se soltando do chão e ele pôde se tornar o primeiro homem, adulto, a poder voar. Seguia suas rotinas e tinha suas responsabilidades do dia-a-dia, sim, mas sempre que, cansado, voltava para casa, parava, olhava para o céu e ao ver as estrelas e a lua, podia voltar a ser o menino livre que um dia fora, e voar livremente pelo céu, privilégio este que só é dado aos que possuem uma eterna alma de criança e aos que fazem devido uso de suas asas.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Pescaria (d)e lembranças

Sempre considerei “brincar de lembrar” uma espécie de pescaria. A gente joga uma isca qualquer, querendo pegar um grande peixe, e espera pacientemente. A isca para pegar uma boa memória tem que ser bem escolhida, podendo ser uma música, um cheiro, um sabor ou simplesmente um silêncio, algo que nos remeta a determinada memória que queremos fisgar, e ficamos ali, pacientemente (se bem que nem sempre tão pacientemente assim!), parados, pensativos, reflexivos, por vezes ficamos agitados, andando de um lado para o outro, querendo, a todo custo, atrair a lembrança. Mas não adiantar obrigar um peixe a morder a isca para ser fisgado por um anzol, assim como não adiantar obrigar uma lembrança a nos tomar. A lembrança, tal qual o peixe, chega a nós quando quer, do jeito que quer e morde a isca se quiser.
            Às vezes o mar não está para peixe, assim como nossa cabeça não está para lembrar, por mais que nos esforcemos, que coloquemos iguarias finas, elixires divinos para os peixe e estimulemos de mil e uma maneiras diferenças a memória, nada morderá a nossa isca, e teremos que nos recolher frustrados, sem termos conseguido sequer fisgar uma memoriazinha ou lembrancinha. Mas por vezes, basta jogar uma isca que mil e um peixes querem mordê-la, basta ficar em silêncio para ser tomado de supetão e se ver envolvido por milhares de lembranças, tantas que a gente não consegue se segurar e deliciar apenas uma.
            Quando a gente joga uma isca, não sabe o que vai pegar. Temos a esperança de que pegaremos um peixe grande, belo, que dará um grande almoço ou jantar, do qual nos orgulharemos e pelo qual seremos lembrados sempre que alguém, numa conversa qualquer, falar a palavra pescaria. Mas nem sempre, em nossa pescaria, pegamos aquilo que almejamos, podendo morder a isca um peixe feio, mirrado, que somos obrigados a jogá-lo de volta na água e tentar a sorte novamente em seguida, e por vezes calha até do mesmo peixe voltar a morder a isca, e nós novamente o soltamos; e há ocasiões em que pegamos um peixe até bonito, mas que, cozido, tem um sabor... Com as lembranças acontece a mesma coisa: desejamos fisgar uma lembrança doce, que nos embale em seus braços, que nos faça sorrir “sozinhos”, que nos coloque para dormir e que povoe nossos sonhos, no entanto, há lembranças que nos acometem que não são tão doces assim, que não nos fazem sorrir e que tem o gosto, por vezes, amargo, que não nos despertar qualquer tipo de saudade. Mas lembrar e pescar é assim mesmo: não só belos, grande e saborosos peixes vivem no mar ou rio, assim como não só de doces e agradáveis lembranças estão repletas a nossa vida.

            Mas apesar de todos os riscos, de ser mesmo uma verdadeira arte (e nem todo mundo é artista), de se exigir muita paciência e perseverança, vale a pena jogar uma isca e esperar pacientemente que algum peixe-lembrança a morda, para que possamos sentir a pressão da linha, com ele querendo fugir, mas que, agora que está preso, o faremos vir a tona, para apreciá-lo, senti-lo vivo em nossas mãos.