domingo, 28 de junho de 2009

Os Miseráveis - Livro da semana



Poeta, dramaturgo e romancista, Victor Hugo (1802-1885) é um dos principais nomes da literatura mundial e francesa no século XIX. Autor de livros como O último dia de um Condenado, Os Trabalhadores do Mar, O Corcunda Notre-Dame (também conhecido como Notre-Drame de Paris) e Os Miseráveis, aclamados pela crítica e público, figuram entre os principais romances da literatura mundial; adaptados, os dois últimos principalmente para cinema e teatro, inúmeras vezes ao longo do século XX.
Sua obra confunde-se com o triunfo do movimento romântico francês no século XIX e é notória por suas duras críticas e por expor muitas das mazelas que assolam a França de seu período, principalmente as “mazelas humanas”.
Em Os Miseráveis, obra que data de 1862, o autor nos apresenta ao personagem Jean Valjean, um homem humilde, que para matar a fome de seus sobrinhos e irmã, rouba um pão e é preso e mando às galés por isso. Lá, o homem depara-se com o que de mais cruel e desumano que pode existir, e muito mais do que prenderem-no, por encarcerarem-no, destroem a aquilo que ainda resta de humano, destroem a alma de Jean Valjean. Ele tenta por diversas vezes libertar-se, mas é sempre recapturado.
Após longos dezenove anos, o homem é liberdade, mas o mundo que encontra ao sair daquela prisão a que estava confinado é muitas vezes mais duro do que por trás daquelas muros intransponíveis, que ninguém conseguia escalar. Valjean depara-se com um mundo hostil e injusto, que o exclui pelo fato dele ser um ex-grilheta. Não é aceito em nenhum dos lugares onde procura abrigo, até que um humilde e santo homem o abriga em sua casa, onde lhe dá comida e uma cama confortável em que dormir. Mas a alma do homem, após tão duras provações por que passou, tornou-se negra, mas negra que a sociedade que o repudia, e ele cometeu o erro de roubar justamente aquele que havia lhe dado pouso.
O destino possui razões que são incompreensíveis para o homem, e Jean Valjean vê isso na manhã seguinte, quando foi capturado e levado de volta a casa daquela a que tinha roubado. E lá, Valjean percebe toda a magnificência daquele tão humilde e santo homem, por ele, não só não o denunciou, mas lhe presenteou com castiçais de prata, que eram o que ele possuía de mais precioso naquela casa, alegando que com aquele gesto havia “comprado a alma” do ex-grilheta. E com aquele gesto, o Bispo, Don Bienvenu fez nascer, na alma daquele, um novo homem, que a partir daquele momento iria levar a vida para fazer o bem ao próximo.
Mas o caminho que Jean Valjean terá que percorrer para fazer o bem é repleto de pedras, muito mais do que flores, e o agora bondoso homem terá que travar uma infindável luta não só contra Javert - inspetor de polícia, metódico, que tem uma verdadeira fixação pelo bem da ordem vigente, como pela justiça, e por isso levará à vida as últimas vias para levar aquele ex-grilheta ao seu devido lugar, de onde jamais deveria ter saído - como também contra si mesmo, pois em sua santa humildade, recebe de peito aberto tudo que a sociedade e as pessoas lhe impõem.
Um livro precioso, Os Miseráveis representa uma obra-prima, um marco na literatura francesa e mundial não só do século XIX, mas de todos os tempos.

sábado, 20 de junho de 2009

As Almas dos Personagens - conto


Era uma noite escura em que a lua mal aparecia no céu, encoberta por espessas nuvens de chuva. Mas nenhuma gota d’água caía do céu, como se todo o ambiente estivesse expectante por algo que estava prestes a acontecer. Soprava um vento frio e cortante e até as luzes dos postes pareciam tremer de frio, lançando sobre a rua uma luz mortiça que pouco iluminava. Em toda a rua pairava uma névoa fina e de frente a uma coisa esta parecia se adensar.
Um homem não percebia isso. Estava dormindo um sono pesado após uma noite estafante em que havia sido convidado para dar uma palestra sobre seus livros, em seguida tinha sido submetido a uma noite de autógrafos. Era um escritor de Best-Sellers, com livros publicados em diversos países, traduzidos para várias línguas, apesar das severas críticas que recebia, por seu estilo trágico, dramático, de histórias fortes e tão marcantes. E uma de suas maiores características era o pouco apreço que parecia ter por seus personagens, pois ele sempre os fazia morrer no momento crucial das histórias, como um ponto máximo de cada livro. E naquela noite tivera que responder à muitas perguntas sobre essa sórdida marca de sua histórias. Construía personagens tão belos, tão vivos, tão marcantes que pareciam sair das páginas dos livros e aparecer ali, bem ao lado do leitor, contando a história para este, sussurrando palavras em seu ouvido. No entanto, por mais vida que tivesse esses personagens, o escritor sempre acabava encontrando uma forma de ceifar suas almas.
O homem dormia o sono dos justos e não sonhava, quando foi acordado por um barulho vindo do andar debaixo de sua casa. Levantou-se assustado e lembrou-se de que estava só em casa. Sua esposa tinha viajado e seus filhos foram junto. Ficou com os ouvidos atentos, procurando escutar qualquer novo som vindo de sua casa. Como não escutou nada, tornou a deitar a cabeça no travesseiro e a se enfiar debaixo dos lençóis. Quando estava pegando no sono, escutou outro barulho, dessa vez mais alto, vindo da frente de sua casa, do lado de fora. O homem então, assustado, levantou-se e foi até a janela. Afastou um pouco as cortinas e ficou a olhar para o lado de fora, para ver o que tinha provocado aquele barulho. Demorou um pouco até conseguir ver alguma coisa, pois a neblina era muito densa a luz dos postes no meio da rua pouco ajudava. Mas pouco a pouco foi distinguindo uma forma parada bem a frente dos portões. Era uma pessoa, com certeza, e estava parada, e fazia questão de se mostrar. O homem ficou assustando, imaginando tratar-se de um assalto.
Mas era estranho, pois a pessoa do lado de fora não se mexia e parecia olhar fixamente para a janela, para ele, o escritor, que estava dentro de casa. O olhar dos dois se cruzou, e o escritor sentiu um estranho frio tomar seu corpo. Era como se já conhecesse aquele olhar. O homem, com medo, afastou as cortinas e foi até o telefone, para ligar para a polícia. Mas o telefone estava mudo e seu celular não funcionava. Sentiu, já, o suor brotar em sua face. Voltou à janela, afastou as cortinas, mas o estranho não estava mais lá. “Melhor. Deve ter ido embora”, pensou o homem. E já voltava para cama quando escutou o barulho da porta, como se alguém estivesse querendo entrar. Foi novamente à janela e olhou para fora, imaginando que ia encontrar algum conhecido, sua esposa e seus filhos, provavelmente, que tinham voltado de viagem mais cedo e tinham se esquecido de avisar, e não encontravam as chaves de casa. Olhou para a garagem, primeiramente, mas não via carro algum, e quando olhou para a porta, de onde provinha o barulho, não viu quem esperava. Havia uma estranha, parada à porta, mas não tentava abri-la. Ela olhava para cima, para a janela, mirando o homem.
O homem, sabendo que agora tratavam-se de estranhos que rondavam sua casa, foi tomado de um desespero, sem saber como reagir, se descia ou se ficava em seu quarto, trancado. Seus telefones não funcionavam e ele pensou em abrir a janela e gritar, chamando por algum visinho, pedindo ajuda. Mas achou pouco provável que alguém escutasse àquela hora da madrugada.
Caminhava de um lado para outro no quarto, passava a mão no rosto, enxugando o suor, pensando no que fazer, quando escutou outro barulho, dessa vez da porta de sua casa sendo aberta.
“Eles entraram”, pensou o homem. O tempo ruge nesses momentos, e uma descarga de adrenalina pulsa em nossas veias. Não sabemos o que fazer e sentimos o medo tomar conta de todo o nosso corpo.
Olhava de um lado para outro, sem saber o que fazer, quando escutou o barulho mais próximo, dessa vez de dentro de seu quarto. Seu susto foi tamanho que caiu de costas na cama. O barulho tinha vindo do seu banheiro, cuja porta estava fechada. Ele, muito lentamente, foi até lá, colocou a orelha encostada à porta para escutar alguma coisa, e não ouvindo nada, colocou a mão na fechadura e a girou lentamente. Com a porta aberta, olhou para dentro, mas não encontrou nada, nem ninguém.
“Estou ficando louco, só pode”, disse ele consigo próprio, quando escutou algo próximo, às suas costas, e ao se virar bruscamente, viu, num canto do quarto, bem próximo ao seu guarda-roupa, no canto mais escuto, um homem. Como ele tinha entrado ali, o escritor não sabia, o que tinha certeza era que tinha alguém bem ali, a poucos metros dele.
- Quem é você? O que quer? – perguntou ele, com a voz alterada pelo medo, quase gritando.
O estranho ficou parado onde estava, calado, e a única coisa que o homem conseguiu ver foi um sutil sorriso. Era um sorriso triste.
O homem então correu, abriu a porta de seu quarto e foi para o corredor, imaginando-se à salvo ali.
Escutava barulho de passos vindos de todos os lados, dentro de seu quarto, do quarto de seus filhos e do final daquele corredor, do lado oposto de onde ele estava. Apurou bem ouvidos e aguçou os olhos e viu bem ali, à sua frente, aquele mesmo homem que tinha visto do lado de fora, a lhe dirigir aquele olhar tão penetrante e cheio de tristeza.
- Quem é você? – gritou o homem, fora de si. O estranho nada respondeu, contentando-se a fita-lo com aqueles olhos tão cheios de tristeza, com uma única e solitária lágrima escapando-lhe do olho direito e escorrendo por sua face.
Com o coração batendo acelerado, forte em seu peito, o homem reuniu as forças e a coragem que ainda lhe restavam, e correu até a escada. Desceu às pressas, pulando os degraus e quando chegou ao último degrau olhou para cima e direção aonde o estranho se encontrava, mas não encontrou ninguém ali.
Respirando com dificuldade, ele olhava de um lado para outro, procurando por sinais de invasão por onde aquelas pessoas tinham entrada. Mas tudo parecia estar perfeitamente em ordens. Foi até a cozinha, onde poderia pegar algo com que se proteger, como uma faca. Abriu gavetas, mas, como é comum de acontecer nessas situações de pânico, ele nada encontrou. Abria as gavetas, remexia-as, mas não encontrava o que tanto procurava, quando escutou o choro de uma pessoa, de uma criança, vindo do canto, bem próximo a porta. Aproximou-se pisando com a ponta dos pés para ver do que se tratava e viu, quase ao alcance de suas mãos, uma menininha, toda encolhida, naquele canto escuro, chorando. Tinha os cabelos completamente despenteados e o rosto escondido pelas mãos. Não era um choro alto, mas seus soluços cortavam o coração, como se quem tivesse acabado de perder algo importante. O homem se aproximou e, embora tendo muito medo, tocou-a no ombro.
- Ei, menina, quem é você e o que faz aqui?
A menina mal se mexia. Seu choro ia se tornando cada vez mais alto.
“O que é isso, meu Deus?!”, questionou e exclamou o homem.
Começou a chover. Chovia tanto e o vento era tão forte que o homem teve a impressão de que sua casa logo seria arrastada. Com o clarão de um relâmpago, ele pôde distinguir as formas da menina, que estava à sua frente, e imaginou reconhecê-la. Ela, no exato momento em que ela a fitava, parou de chorar e levantou o rosto, banhado de lágrimas, para se deixar ver. O escritor agora a reconhecia, e teve tanto medo que saiu tropeçando, correndo, rastejando, para ficar longe daquela menina. Quando chegou a sala, viu que as janelas tinham sido abertas, assim como a porta. Nenhuma das luzes estava acesa, mas relampejava tanto do lado de fora que elas não se faziam necessárias.
O homem olhava de um lado para o outro, sem saber para onde fugir, quando ouviu a porta bater, sendo fechada. Tomou mais um grande susto. Foi até lá e tentou abri-la, mas ela estava como que fechada por fora. As janelas batiam e as cortinas esvoaçavam, devido à força do vento.
O coração daquele homem parecia prestes a explodir, quando escutou o barulho vindo lá de cima. Tinha medo, mas olhou para a escada e viu uma pessoa lá no alto, que olhava fixamente para ele. Olhava dentro de seus olhos.
Passos às suas costas, e quando ele se virou, viu mais duas pessoas, paradas à porta da cozinha, outra à sua direita e mais uma à esquerda. Para todos os lados que olhava ele encontrava algum daquelas almas, daqueles espíritos sem rumo, que tinham ressuscitado para atormentá-lo. Fechou os olhos com força, imaginando que aquilo não passava de sua imaginação, de que quando se torna a abri-lo aqueles espíritos teriam sumido.
“São só coisas de minha cabeça, pois eles não podem estar aqui, já que nunca existiram”. Quando terminou de falar isso, aos sussurros, abriu os olhos. Mas imaginava ver-se livro de todos aqueles estranhos, e o que encontrou foi muitos outros.
Nenhum deles se mexia, não esboçavam nenhum gesto. Apenas olhavam aquele que tinha lhes criado, lhes dado a vida, e que tinha ceifado-as de forma tão despropositada. Seus olhares, tão vivos, exprimiam tanta tristeza e acusavam aquele a quem se dirigiam.
“Eles não podem estar aqui... Eles não podem estar aqui...”, dizia o homem, como em uma oração.
A chuva começou a cair com mais força e os trovões a ribombarem.
O coração do homem começou a bater tão depressa e com tanta força que ele começou a ficar tonto.
- Saiam daqui! SAIAM DAQUI! – gritava ele, e arremessava tudo que estava ao alcance de suas mãos àquelas pessoas. Mas nada as atingia.
O homem começou a perder o equilíbrio, a ver as coisas rodarem em sua cabeça, até que ficou de joelho. Olhava para aquelas pessoas e pela primeira vez escutou um som saindo daquelas bocas: elas riam. Eram risos tristes, repletos de ironia. O homem começou a cair lentamente e a perder os sentidos.
A última coisa que seus olhos viram, quando já estava caído no chão, foi que as pessoas estavam ao seu redor, olhando para ele, e algumas esticavam suas mãos para tocá-lo.
- Não me toquem, não me toquem – disse ele, antes de perder os sentidos.
Acordou de manhã encharcado de suor, gritando aquele “não me toquem” e o “saiam daqui”. Passou a mão no rosto, para ver se estava realmente acordado.
“Então tudo não passou de um sonho”, pensou ele, jogando-se novamente na cama, respirando aliviado. Ria, embora não sentisse a menor vontade de rir, pois o sonho lhe parecia tão real.
Olhou ao redor, para ver se estava tudo em ordem, e não encontrando nada de anormal, levantou-se. Saiu do quarto e viu que todas as janelas e portas de sua casa estavam fechadas. Quando ia voltar ao quarto ouviu o barulho de uma porta sendo aberta. Sentiu um arrepio percorrer seu corpo, e foi ver do que se tratava. Com efeito, a porta da sua biblioteca estava aberta, mas lá ele não encontrou ninguém, apenas todos os seus livros abertos, jogados em cima de sua mesa.

domingo, 14 de junho de 2009

Sobre Seus Ombros - meu livro - trecho do primeiro capítulo

Há três dias a chuva era intensa em Natal, tanto que eram raras as pessoas que se aventuravam a sair de casa para outra coisa que não fosse para ir ao trabalho. Os dias eram curtos e as noites excessivamente longas, escuras e frias. Eram raras as pessoas que se lembravam da última vez que olharam para o céu e verem-no límpido e belo, suas estrelas com brilho intenso e a lua majestosa banhando a tudo com sua luz prateada. A chuva era acompanhada de rajadas de vento que chegavam a derrubar árvores e fazer com que barrancos deslizassem. As noites eram sempre escuras, só iluminadas por muito poucos segundos por algum relâmpago que brilhava no céu para logo em seguida apagar. Raios também cortavam o céu para caírem distante, possivelmente no alto mar, numa cidade vizinha ou em algum bairro distante, mais baixo onde a chuva era mais intensa.
Todas as regiões da cidade eram castigadas pela fúria da natureza, várias e várias ruas da cidade estavam tão cheias de enormes poças d’água que se tornava impossível transitar por elas, em outras simplesmente não havia mais a rua, só o que havia era um verdadeiro rio de lama e sujeira, de forma que as pessoas que viviam nessas localidades foram obrigadas, pelos órgãos responsáveis e defesa civil, a deixarem suas residências, levando o pouco que tinham condições de carregar, só podendo se lamentar por tudo que haviam perdido. As pessoas se sentiam impotentes, pois não podiam lutar contra as forças da natureza, a que nunca poderiam vencer.
As grandes e principais avenidas da cidade se encontravam intransitáveis. Nesses dias tempestuosos eram raras as pessoas, motos, carros e ônibus pelas ruas da cidade.
O ano anterior tinha sido péssimo, o calor tinha sido infernal e praticamente toda a safra agrícola tinha sido perdida por muitas das cidades do Estado, mas neste ano o Rio Grande do Norte e principalmente a sua capital sofriam pelo contrário: o excesso de chuvas.
A defesa civil tinha interditado diversas casas, abrigando muitos habitantes em ginásios, colégios ou qualquer local que pudesse abrigar, com o mínimo de segurança e os com muitas vezes sem os mínimos pré-requisitos necessários para tal fim. Muitas casas foram praticamente destruídas pela enxurrada, deslizamento ou outros fatores ocasionados pelas chuvas. Bairros dos mais nobres aos mais humildes sofriam com os efeitos da tempestade. Havia bairros que estavam praticamente ilhados. Os filhos não podiam naqueles dias ir visitar seus pais, os almoços nos dias de domingo na casa dos avós tinham sido cancelados, pois muitos não podiam comparecer, já que não tinham sequer como sair de suas casas.
Aqueles eram dias tristes, especialmente para as pessoas que viviam nos bairros da periferia, onde as condições de infra-estrutura eram tão precárias, as ruas não eram sequer calçadas, de forma que uma lama espessa, amarelo-amarronzada, suja, tomava tudo, entrava nas casas e transmitia doenças às crianças que brincavam descalças no meio da rua.
Muitas das pessoas que viviam em tais bairros, quando tinham algum parente ou amigo, deixavam suas moradias e iam morar com estes pelo menos enquanto as chuvas não abrandavam, mas a maioria ficava, pois não tinham a quem recorrer e rezavam à Deus, pedindo por tudo que há de mais sagrada para que Ele os poupasse daquele infortúnio.
No bairro de Pajuçara, um dos mais distantes, situado no extremo norte da cidade, naquela hora, já perto da meia-noite, todas as casas estavam fechadas e as luzes apagadas. Até mesmo as luzes dos postes, as que ainda não tinham sido quebradas por vândalos ou tinham simplesmente queimado, estavam apagadas, exceto pela que ainda teimava em ficar acesa na esquina.
Mesmo debaixo de toda aquela chuva, sendo castigado pelo vento forte e frio, permanecia debaixo deste único poste com a luz acesa um menino. Tinha pouco mais de seis anos, tinha a pele morena, os cabelos cortados bem curtos e olhos castanhos, mas que estavam vermelhos de tanto sono que sentia naquele momento. Ele estava com muito medo e tudo que mais queria era ir para casa, se enrolar em seu cobertor, que mesmo sujo e rasgado, seria capaz proporcionar um certo conforto e calor, e dormir sossegado e sonhar com dias melhores. Mas ele não podia fazer isso pelo qual seu corpo tanto ansiava, pois ele esperava com toda a persistência de que dispunha e toda a paciência do mundo por seu pai, que tinha saído cedo, muito cedo, antes de o sol raiar, para trabalhar, e ainda não havia voltado. A criança tinha acordado há pouco e percebendo que seu pai ainda não tinha chegado, saíra de casa para esperá-lo, e desde então se encontrava naquele local, sozinho, com frio, com medo, mas consciente de que tinha que fazê-lo, pois seu pai estava muito doente e não podia levar chuva.

O Amor de Yoni - Livro da Semana



Pode um livro ter seus personagens como meros coadjuvantes e o tema ser, mesmo assim, magnificamente bem escrito, envolvente, capaz de prender o leitor da primeira à última página? Sim, pode, e o médico Leonardo Barros, logo em seu primeiro romance, O Amor de Yoni, lançado no ano passado, conseguiu isso.
O Amor de Yoni é um livro de cunho erótico, em que o autor, inseriu elementos humorísticos, de psicologia, filosofia, comportamento humano e física quântica, elemento este contado de uma forma inusitada. Com base nesses elementos, o autor explora as diversas facetas que o amor erótico pode se expressar: “na crueldade e na auto-flagelação de Belinda; no tesão egocêntrico e violento, cheio de sentimentos reprimidos e fixações de Fábio; na incerteza de Silvio; na procura de amor abnegado, independente de sexo, por Cecília; no amor verdadeiramente incontestável de Júlia e Lindolfo, entre outras coisas”, como diz o próprio autor.
Nesse o livro, o autor nos apresenta várias histórias independentes que se entrecruzam para mostrar diversas nuances do desejo sexual. Algumas são histórias comuns, cotidianas, outras menos, não aceitas pelos padrões sociais.
O Amor de Yoni é um livro bem escrito, envolvente, e que, apesar do cunho erótico-sexual, em nenhum momento desliza para a vulgaridade, pois com uma linguagem impecável, repleta de termos próprios de um vocabulário nordestino, em outros momentos de termos de natureza técnica, o autor conduz a história, com notável habilidade com as palavras, de forma leve, prazerosa e divertida.

sábado, 6 de junho de 2009

A Lagarta e a Borboleta - conto


Subia muito lentamente pelo tronco de uma árvore, arrastando de forma desajeitada o seu corpo, uma lagarta. Ela ia em direção à parte mais alta, a copa da árvore, onde nasciam as folhas mais verdes, onde as frutas eram mais suculentas e vistosas, onde o sol era mais quente e a brisa mais amena.
A lagarta contorcia-se toda em sua jornada, avançando passo ante passo, arrastando seu corpo inteiro. Via pássaros e insetos voando ao seu redor, e sentiu um imenso desejo de ter asas para chegar logo ao topo da árvore. Mas a natureza havia lhe feito daquela maneira. Jamais havia visto sua própria imagem, mas se sentia bem da forma que era, se sentia bela e feliz.
Já se aproximava da parte mais alta da imensa árvore, quando olhou para o lado e viu algo com que jamais havia sonhado. Era algo mais radiante que o sol, mais delicado que uma flor e mais perfeito que o amanhecer: uma borboleta. Possuía as asas de um azul intenso e profundo, como o mar no início de primavera, tinha linhas multicoloridas, tão delicadas e claras como nuvens no início da manhã, seus olhos dourados tinham o brilho intenso do sol, seu corpo, tão delicado, parecia feito pelas mãos precisas do mais perfeccionista artesão. A lagarta ficou encantada com o bater das asas da borboleta, com seu voo, num verdadeiro balé em torno das folhas verdejantes da árvore. Desejou, com um ardor que jamais havia sentido, ter asas para se aproximar daquele ser tão belo, tão perfeito, tão livre.
De tanto olhar para a borboleta com os olhos arregalados, deslumbrados por nunca terem visto algo tão belo, quase ficou cega. De tanto chamar pela borboleta, em vão, quase perdeu a voz. De tanto desejar, quase fica louca. E quando, já sem esperanças de ser notada, quando estava parada, a borboleta, impelida por um forte vento, se aproximou de onde a lagarta estava. Seu voo, agora sem direção, era como o de um papel jogado ao vento. Vinha voando em círculos, cada vez se aproximando mais da lagarta, até que a viu. Seus olhos, tão belos, se arregalaram de pavor pelo que viam. Soltou um grito de pânico que feriu não só os ouvidos, mas o coração da lagarta. E bateu as asas e voou para longe, onde os olhos da pobre lagarta jamais a alcançariam.
A lagarta, de tão triste que estava, por se ver repelida daquela maneira por alguém a quem tanto amava, deixou-se cair do tronco em que estava agarrada e pousou entre uma folha e um fino galho que se projetaram tal qual uma mão a segurar algo precioso e frágil que caía.
A lagarta chorou tanto que suas lágrimas cobriram todo o seu corpo, encharcando-o. Seus olhos doíam, seu corpo já não tinha mais forças para se levantar. E lentamente foi caindo num estado de torpor, como num sono tranquilo, com um sonho repleto de milhares de anjos.
As lágrimas secaram, e em torno do corpo da lagarta formou-se uma crosta fina como uma teia de aranha, mas dura como o aço. E lá ela repousou, repousou e repousou... Até que, dias depois, a crosta começou a rachar, primeiro superficialmente, depois mais profundamente, e de lá surgiu, como que por milagre, a ponta de algo muito fino, tão fino e suave como a mais suave seda, que foi se agigantando, se abrindo, se mostrando. Surgiu uma asa. Depois veio outra. As duas asas, abertas, de maneira desconexa, começaram a bater uma na outra, como que para se libertarem da prisão em que estavam até bem pouco tempo encarceradas. A crosta se partiu em pedaços e de lá apareceu, em todo seu esplendor, uma linda borboleta, tão linda, perfeita e delicada quanto a primeira. Mas esta que nascia possuía cores mais intensas em suas asas, que eram de um vermelho intenso, tendo em suas pontas tons de um amarelo-alaranjado como o sol ao final da tarde. Os olhos da borboleta eram de um tom azul escuro e profundo, como o do céu de noite sem luar.
A nova borboleta, livre e bela, bateu suas asas de maneira insegura, pois ainda não sabia voar. Temia uma queda daquela altura em que estava. Mas eis que uma lufada de vento a arrebatou e lhe lançou para longe da árvore em que estava pousada. Então ela bateu novamente as asas e sentiu a brisa sob elas, erguendo-a, levando-a para o alto, tão alto quanto a árvore, tão alto que a borboleta imaginou ser capaz de tocar o céu, voar por dentro das nuvens. Bateu suas asas e voou livre pelo céu, para dançar o balé das borboletas.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Natal, cidade escolhida como uma das sedes da Copa do Mundo de 2014 - artigo


Foi com uma certa dose de medo que recebi a notícia de que minha querida cidade havia sido escolhida como uma das subsedes para receber jogos da Copa do Mundo de Futebol, a ser realizada no Brasil, no tão distante e ao mesmo tempo tão perto ano de 2014. Esse sentimento de medo e apreensão é perfeitamente compreensível quando se pensa, quando se tem a noção de que todos os olhos do mundo inteiro estarão voltados para o evento, para a cidade, na exata hora em que será dado o pontapé inicial da partida.
Fico a imaginar se, na hora marcada para o início da partida, os times estarão em campo, pois acredito que, devido aos problemas no transito caótico da cidade, o mais provável é que os ônibus que trazem as delegações estejam presos num engarrafamento ou se estão impossibilitados de chegar até o estádio, por conta das chuvas, que interditam as principais avenidas da cidade. Se esse caso acontecer, o mais provável é que os jogadores saiam do ônibus e, para não perderem a viagem, decidam, ao invés de uma partida de futebol, jogarem uma de pólo aquático bem ali, ao lado do estádio, sob o viaduto, na imensa piscina que se forma bem no meio da avenida na época das chuvas. Ou talvez eles nem cheguem tão longe, e decidam ficar por ali mesmo, no bairro de Mirassol, de frente ao Carrefour, naquele campo de futebol, que fica inteiramente submerso, com as águas da chuva na altura dos travessões, e os times decidam participar das provas da Copa do Mundo de Natação. Se isso acontecer, é bem provável que vejamos, lado ao lado, no Piscinão de Mirassol, uma prova tendo, lado a lado, Michael Phelps, representando os Estados Unidos, e Cesar Cielo, representando a pátria Tupiniquim, disputando com Eto’o, Drogba, Rooney, Ibrahimovic, Messi, Cristiano Ronaldo, Kaká ou algum astro do futebol mundial. E isso tudo sendo transmitido para todo o mundo. Imaginem só a repercussão favorável que isso irá gerar: uma cidade, que foi escolhida para sediar jogos da Copa do Mundo de Futebol, receber provas de natação desse nível e partidas de pólo aquático. Isso é que é improviso e organização: do futebol a outras modalidades esportivas! E isso é só o começo, pois logo, logo, irão querer colocar a cidade como sede de etapas importantes nas provas de rali, pois devido ao lamaceiro nas ruas, após as chuvas, temos o piso ideal para a prática desse esporte. Fora as provas de maratona aquática, uma modalidade a que todo natalense, residente na cidade, está mais do que acostumado.
E se não for a chuva ou o trânsito, temos inúmeros outros problemas, que podemos tentar contornar com o famoso “jeitinho brasileiro”, que foi aperfeiçoado e elevado ao cubo pelas autoridades natalenses. Como por exemplo, problemas relacionados a saúde pública. Imaginem só a situação de um europeu ou norte-americano que venha assistir aos jogos de seu país e, por uma fatalidade, tenha comido muita carne de sol, feijão verde, arroz de leite e macaxeira frita e, devido a problemas de ordem gastrointestinal tenha que recorrer a um dos hospitais públicos e pegar uma fila no Clóvis Sarinho para que um médico o atenda e diga que “é só uma virose”, isso sendo otimista, pois podem acontecer coisas bem mais sombrias dentro das paredes daquele hospital.
Natal, sem dúvida, é uma cidade de povo hospitaleiro, que recebe seus visitantes com os braços abertos, com um sorriso no rosto, e é bem provável que, caso um turista, que por ventura se perca pela cidade e peça ajuda a algum natalense, este abra a porta de seu carro e leve o outro até seu destino (isso, se um engarrafamento não impedi-lo no meio do caminho).
Fora isso tudo, ainda existe a possibilidade de, na hora marcada para o início da partida, a estádio não contar com todos os lugares ocupados, uma vez que os ingressos custarão “os olhos da cara” e as pessoas residentes na cidade, por mais que desejem prestigiar o evento, não terem condições financeiras para assistir aos jogos, tendo que recorrer, assim, a boa e velha televisão, sintonizada em algum canal de rede aberta. E ainda corre-se o risco de, os poucos que conseguirem comprar suas entradas, não poderem comparecer por estarem de capa, devido a dengue.
Definitivamente, Natal, por mais maravilhosa que seja, é uma cidade que, hoje, não está preparada para sediar nenhum grande evento esportivo ou seja lá que tipo de evento venha a ser, de grande porte, que necessite de uma grande infra-estrutura relativa ao transporte, segurança e saúde pública.
Fora isso ainda existe a questão dos gastos, que não serão poucos, para se construir o novo estádio (chamado de Arena das Dunas). Tudo bem que muito do que foi gasto com o evento se reverterá para melhorias da população após os jogos. Mas isso tudo não poderia, e deveria, ser feito independente da cidade ser ou não uma das subsedes da Copa do Mundo de 2014?!
E fora isso... bem, eu vou deixar desse negócio de “fora isso”, senão vão pensar que estou fazendo terrorismo e podem até acabar desistindo da escolha e eu ser rotulado de único natalense insatisfeito com a escolha e acabar tendo a fachada de minha casa pichada (o que é comum acontecer) ou as janelas apedrejadas.
De qualquer forma, desejo boa sorte a cidade e competência por parte dos gestores, para que a nossa cidade surpreenda não só ao mundo todo, mas, principalmente, ao próprio natalense, que vive aqui, pois são estes os que precisam sentir os resultados, na prática, das melhorias na infra-estrutura que são impostas pela FIFA para que uma cidade venha a sediar jogos de uma Copa do Mundo.