domingo, 29 de abril de 2012

Voltar a ser menino


Eu queria voltar a ser menino, nem que fosse por cinco minutos em minha vida. Queria simplesmente ser menino, esquecer das coisas facilmente como só os meninos esquecem e manter vivas, na memória, outras. Queria não ter preocupação alguma, responsabilidade com nada, viver só e unicamente para mim, para aquele momento, e só. Queria poder ver a chuva caindo lá fora e não a temer, não me preocupar com ela; simplesmente poder abrir a porta de casa e sair, tomar um bom, revigorante e sempre rejuvenescedor banho de chuva. Eu queria voltar a ser menino para isso tudo, mas também para muito mais.
Queria poder ser livre, rir com um nada, brincar com um tudo, queria simplesmente viver. Queria ficar por uns instantes com a cabeça tão longe, pensando em algo que está tão perto. Queria poder me sentir como um pássaro no alto de uma árvore, colher uma fruta madura direto do pé e sentir o seu sabor doce como a vida. Queria poder brincar com um cachorro, correr atrás dele, depois deixar que ele me perseguisse numa corrida louca e desenfreada pela rua. Queria poder soltar pipa, jogar biloca (também conhecida como “bolinha de gude”), chupar confeito, mascar chiclete e me deliciar com outras tantas guloseimas. Queria poder ficar descalço, jogar futebol na rua, arrebentar-me inteiro numa queda de bicicleta e, quando ouvir minha mãe chamar, gritar um “já vou”.
            Eu queria voltar a ser menino simplesmente para brincar, para correr, para esconder-me e para achar-me, para ser o que eu era, para ser o que sempre fui e que nunca deixarei de ser – simplesmente menino.
            Eu queria voltar a ser menino para brincar na rua, para ter de volta, nem que fosse por um curto instante, medo do escuro à noite, medo dos trovões em noite de tempestade. Queria poder acordar de madrugada nessas noites escuras, frias e chuvosas e ir bater à porta do quarto de meus pais e pedir para dormir naquela cama enorme, entre meu pai e minha mãe, debaixo daquele cobertor, que estava sempre quentinho.
            Eu queria voltar a ser menino para, ao fechar os olhos, não pensar em nada, e ter, simplesmente, uma boa e longa noite de um sono reparador, que me deixaria pronto para o dia seguinte repleto de coisas novas, de novas, velhas e conhecidas brincadeiras.
            Eu não quero, não posso, nunca em minha vida, deixar de ser menino, porque deixar de ser menino é esquecer todos os maravilhosos momentos que vivi, que não voltarão nunca mais, que vivem eternamente em minha memória e só lá eu posso, sempre, voltar a ser o que sempre fui: um eterno menino.

domingo, 22 de abril de 2012

O último dia de um homem


O homem condenado à morte estava vivendo seu último dia antes da execução. Tinha vivido seus últimos anos trancafiado naquela cela minúscula, vendo outros prisioneiros virem, ficando o tempo e irem embora, sendo muitas vezes arrastados, numa tentativa desesperada de adiar o inadiável. No início, nas primeiras vezes em que viu os homens tornando-se crianças a chorarem, clamando por suas vidas, ficou impressionado, mas com o tempo acostumou-se, da mesma forma que se acostumara às visitas dos religiosos que vinham frequentemente visitar um ou outro condenado antes da execução, e que sempre paravam em cada uma das celas ocupadas com outros prisioneiros e perguntavam se precisavam de um consolo e de uma palavra de Deus. Ele nunca havia prestado atenção nesses homens, até aquele dia. Sempre que ouvia aqueles passos leves no corredor, virava-se na cama e ficava em frente à parede, escutando muitas vezes as lamúrias dos condenados, suas últimas palavras antes da execução.
            Nunca, em todos aqueles anos, recebeu uma única visita, pois não havia ninguém, do lado de fora, que o conhecesse, que se importasse com ele, que sequer soubesse de sua existência. No dia em que fora preso, sentiu mesmo um certo alívio, pois o levariam a uma prisão, onde ficaria isolado, com sua própria solidão, e não do lado de fora, numa rua, onde estava cercado por milhares de pessoas, mas tão só, onde a solidão se tornava ainda mais pesada. Fora julgado e condenado, e em nenhum momento se defendera, mesmo quando o juiz o havia questionado sobre os motivos que o levaram a cometer aquele crime, que embora não tenha feito mal a ninguém, era considerado inadmissível naquela sociedade. O crime havia sido premeditado, cometido propositadamente com o intuito de ser descoberto – não havia, em nenhum momento, cometido para ser um “crime perfeito” – havia deixado inúmeras pistas para que pudessem chegar até ele e prendê-lo.
            Os anos que passara preso esperando pela ordem de sua execução não foram, de forma alguma, penosos para ele, pois ali, trancado naquela cela, mesmo estando sozinho, não se sentia tão só quanto se sentia quando estava do lado de fora.
            Agora, em suas últimas horas de vida, revia tudo que havia vivido até então e sentia um vazio no peito ao constatar que não conseguia se lembrar de nada, de nenhum momento em especial que faça sentido, que tenha feito com que sua vida tivesse valido a pena. Não deixava amigos nem familiares que dele pudessem sentir saudade, e isso o deixava aliviado e triste – aliviado por que não deixaria ninguém triste quando fechasse os olhos, e triste por que ninguém iria deixar flores em seu modesto túmulo. Em todos aqueles anos ninguém o vira chorar, lamentar-se e clamar por sua vida. Ele se sentia mesmo, quem o visse notaria, um estranho brilho nos seus olhos, como que de satisfação e de estranha tranquilidade.
            Havia dormido tranquilamente a sua última noite de sono, mas não tinha sonhado. Mais uma vez, um sono reparador, sim, mas sem sonhos. Ele não se lembrava da última vez em que sonhara, ele não se lembrava sequer se alguma vez em sua vida havia sonhado. Acordou com a expectativa de viver suas últimas horas de forma tranquila e serena, esperando pelo momento derradeiro. Fora especialmente bem-tratado pelos carcereiros, que ofereceram, inclusive, uma última refeição especial. Ele aceitou esse bom-tratamento, sentindo-se especial, cuidado, uma última e única vez na vida. Aceitou que um religioso viesse lhe visitar, mas apenas para ter um alguém que lhe falasse alguma coisa uma vez na vida, mesmo que ele nada falasse. Andou um pouco pela cela, de um lado para o outro, e chegou até a olhar pela minúscula janela, para o pátio da prisão, que estava vazio àquela hora.
            Quando ouviu passos pesados vindos pelo corredor, levantou-se bem lentamente. Viu três guardas fardados, que abriram a cela, lhe algemaram e lhe conduziram por aquele corredor mal iluminado. Ele, em momento algum, tentou fugir ou falou qualquer palavra aos guardas que o escoltavam, e os seguia docilmente, feliz mesmo – talvez aquele estivesse sendo o momento mais feliz de sua vida. Alguns presos, enquanto era conduzido por aqueles infindáveis corredores, lhe dirigiam palavras obscenas enquanto outros lhe jogavam palavras de apoio e coragem naquele último instante e outros, ainda, simplesmente ficavam calados, olhando-o com um misto de compaixão e admiração àquele homem que caminhava de forma tão firme para a sua execução.
            Passou por inúmeras portas até que chegou a uma sala branca com um enorme vidro em uma das paredes, onde pessoas poderiam ver sua execução em uma outra sala, ao lado, que estava vazia. Viu algumas pessoas presentes, além de outras guardas, mas seus olhos se fixaram em um homem: o seu carrasco, aquele que lhe libertaria daquela vida. Deixou-se conduzir e deitou suavemente na cama, onde tiras de couro prenderam suas pernas e braços. Tinha um leve sorriso nos lábios quando todos deixaram a sala, ficando apenas ele e aquele que seria o responsável por injetar em suas veias a droga que lhe faria entrar num sono profundo, do qual jamais poderia acordar.
            Quando tudo ficou em silêncio, ele olhou para o lado, através do vidro, para a outra sala, só para constatar que ela continuava vazia. Olhou dentro dos olhos do seu carrasco, que pela primeira vez tremia. De todas as execuções pelas quais fora responsável, aquela era a primeira vez que acontecia de tremer, de desejar não ser ele o responsável pela morte de um homem. O condenado sorriu e abriu a boca para falar que estava tudo bem, e pediu que ele fizesse aquilo, que lhe livrasse daquela longa, dura e solitária vida.
            Enquanto injetava a primeira dose da droga, o carrasco começou a ver o condenado cair num leve sono, quando lhe perguntou o motivo de ter cometido, há tantos anos, aquele crime, de ter deixado tantas pistas para que pudesse ser descoberto, de estar ali, sendo morto, de forma tão serena, como se tivesse passado toda a vida ansiando por aquele momento.
            - Eu fiz tudo de propósito para ser preso, julgado e condenado, pois não conseguia mais carregar sobre meus ombros o peso da solidão que sentia. Não queria, não conseguia mais viver carregando esse fardo, mas também não conseguia tirá-lo de mim, livrar-me dessa vida solitária, cometendo suicídio... – falava isso enquanto sentia o fardo de sua solidão ser retirado, pouco a pouco, de seus ombros, sentindo-se cada vez mais leve.
            O carrasco, ao ouvir aquilo, ainda tentou parar a execução, mas não havia mais tempo. O homem havia fechado os olhos e estava sorrindo.

domingo, 15 de abril de 2012

A História do Espantalho

Era só um espantalho. Um velho, feio e acabado espantalho, que parecia ter brotado do chão há tempos a muito esquecidos naquela velha e isolada fazenda. Tinha seus pés fincados no chão e muito pouco se movia, e somente quando tocado pelo vento, que lhe empurrava para frente e para trás. Atrás de si ficava a casa grande e velha, para onde nunca olhava, à sua frente toda a plantação, para a qual passava horas infindáveis de sua vida a contemplar, ao seus pés, o chão que lhe prendia, do qual jamais poderia se libertar, e sobre sua cabeça, o infinito céu azul, onde caminhavam em seu suave balé de voos, os pássaros que ele tanto amava, as quais desejava poder alcançar e tocar com seus longos e desajeitados dedos.
            Os pássaros ficavam sempre longe do espantalho, pois eles o temiam. Viam nele, naquela figura tão fantasmagórica e feia, um ser sobrenatural, que inspirava medo, por mais que ele (espantalho) balançasse a cabeça e fizesse gestos desajeitados, tentando dizer que não fariam mal a ninguém, que só queriam vê-los de mais perto, para ouvir seus cantos, para conversar, pois se sentia tão só, preso naquele chão.
            Viviam poucas pessoas na fazenda, e estas raramente chegavam perto do espantalho, pois também o temiam à sua maneira. Só as crianças, com suas brincadeiras de mau-gosto chegavam perto, mas para jogar pedras e bater nele com pedaços de pau. O espantalho aceitava, mesmo tendo seu corpo tão massacrado, todo aquele suplício, pois esta era a sua sina.
            O espantalho estava triste, como jamais estivera em sua longa e solitária vida, e nem um forte vendaval o fazia se mover mais do que alguns centímetros, para frente e para trás. Os fortes temporais que desabavam sobre sua cabeça naquele inverno mal o faziam mexer-se. Sentia um forte peso no peito que tomou a forma da solidão, e passava horas a olhar para o céu vazio sobre sua cabeça, pois os pássaros não ousavam sair de seus ninhos naquele tempo tão feio.
            O inverno era duro e longo, no entanto a época do ano em que o espantalho mais desgostava, por se sentir mais o peso da solidão, era a primavera, pois todo o mundo à sua volta florescia, os pássaros voltavam a dançar no céu, longe dele, e só ele ficava ali, preso ao chão, tão só.
            Naquela primavera, quando cabisbaixo, sentiu algo cair perto dele. Fixou seus olhos no chão, e contorcendo-se por inteiro, quase encostando o nariz no chão, viu que ali havia caído uma diminuta semente. Olhou para cima, imaginando que tivesse sido perdida ali por um pássaro, mas percebeu que o céu estava completamente deserto. Olhou para um lado e para o outro, imaginando que aquela semente tinha sido jogada por um alguém, mas tudo ao seu redor estava solitário e silencioso. Viu naquela sementinha uma semente de esperança e com seus dedos longos, finos e desajeitados, cavou um pequeno buraco e com toda a delicadeza do mundo, ali depositou a semente. Dias e noites ele passou ali, curvado, a observar o chão onde tinha depositado sua esperança. Protegeu-a do sol e calor excessivo do meio-dia e parou até de se pôr de pé e de ser fustigado pelo vento. Mas por mais que fizesse, nada brotava naquele chão tão estéril, e ao se dar conta disso ele chorou durante horas ininterruptas. Quando terminou o seu lamento, quando se sentia mais leve pelas lágrimas que havia chorado em sua dor pela semente de esperança perdida, se deu conta de que um pequenino broto surgia. Diminuto, sim, tão frágil, de um verde pálido, mas era um broto, do qual ele cuidou como se da sobrevivência dele dependesse a sua vida.
            Dia após dia ele a cultivou e a viu crescer pouco a pouco, até se tornar uma linda rosa. Ainda não havia desabrochado e aberto seus olhos, e ele estava ansioso para quando isso acontecesse, mas, ao mesmo tempo, temia, pois seu pobre coração não resistiria caso ela o olhasse com os mesmos com que o olhavam os pássaros e as pessoas, não resistiria se ela também o temesse.
            Foi numa manhã, em meados daquela primavera, que ele notou, pela primeira vez, um movimento na rosa. Era um movimento vindo de dentro para fora, como se ela fizesse força para se abrir. Primeiro uma pétala de soltou, depois outra e mais outra, até que a rosa desabrochou, bela e delicada, e abriu seus olhos. Ao olhar para cima, viu que o espantalho a contemplava, abobalhado com sua beleza, e ela o achou belo, e sorriu para ele. Aquele era o primeiro sorriso que um alguém dava ao espantalho, e ele sentiu seu coração pular, em júbilo, dentro de seu mirrado peito. Batia tão forte que até a rosa o ouviu, e sorriu novamente para ele, e o coração dele quase explodiu.
            A cada nova manhã a rosa desabrochava, e o primeiro sorriso que ela dava era para o espantalho, e dia após dia os dois foram vivendo naquela felicidade em que um só precisava e cuidava do outro.
            Logo outras sementes foram surgindo, e o espantalho cuidou com especial carinho de todas, da mesma forma que cuidara da primeira rosa. Vários brotos surgiram na terra, sendo regados pelas lágrimas, agora de felicidade, do espantalho, e em muito pouco tempo a seus pés surgiu um esplendoroso jardim, com rosas de todas as cores, todas igualmente belas e delicadas. Os pássaros, vendo aquele lindo jardim, passaram a não mais temer a feiura do espantalho, e passaram a admirá-lo por ter, a seus pés, tão lindas rosas.
            Assim, o espantalho se viu rodeado de flores e pássaros e passou a ser admirado por todos, por ter cultivado o mais belo jardim do mundo.

domingo, 8 de abril de 2012

A vacina para todo o mal

Ele era um médico-cientista de renome. Sentia-se angustiado por ver tantas pessoas sofrendo, sem nada poder fazer para livrá-las daquele sentimento que, segundo ele, era o causador de todos os males. Resolveu, então, dedicar-se de corpo e alma para a busca de algo que livrasse as pessoas de tal sentimento ou que pelo menos pudesse mantê-lo sob controle. Passava dias e noites entre consultas aos seus pacientes e seu laboratório. Ficava horas a fio em frente ao seu computador, digitando e analisando dados que havia colhido ou numa mesa, com vários livros abertos e espalhados. Mas tanta pesquisa, no entanto, parecia não estar chegando a lugar algum. Fechou todos os livros e, frustrado, resolveu dormir, após passar tantas noites seguidas em claro. Naquela noite, ele teve um sonho e, quando acordou sobressaltado, tinha uma ideia fixa na cabeça: criar uma vacina capaz de expurgar todo aquele mal que afligia a homens e mulheres. Agora ele sabia o que procurava, o que devia procurar, e passou a se dedicar exclusivamente às suas pesquisas. Parou de atender a seus pacientes, deixou de falar com amigos e familiares e praticamente foi esquecido pelo mundo, mesmo por que ele também esquecera de todos e de tudo que havia além daquela janela de seu laboratório, que vivia eternamente fechada.
            Uma noite, passado muito tempo desde que ele se trancara naquele laboratório, quando até as pessoas mais próximas já não se lembravam mais dele, eis que aquela porta, fechada a tanto tempo, se abre, e por ela aparece o médico-cientista. Estava magro, pálido e fraco, tanto que se apoiava nas paredes para não cair, mas tinha um sorriso exultante nos lábios. Segurava em uma das mãos o seu precioso tesouro, o fruto de toda aquela dedicação e trabalho, um pequenino vidro com um líquido cinza escuro, quase negro: a primeira dose da vacina.
            Começou a fazer testes e mais testes, para averiguar a eficácia de sua vacina, e se sentiu satisfeito com os resultados: a vacina realmente funcionava. Proclamou para todo o mundo a sua descoberta: a vacina para todo o mal. Passou, então, por conta própria, a fabricá-la em larga escala para dar início a um processo de vacinação em massa. A expectativa das pessoas era tamanha, pois todas acreditavam nas palavras daquele médico-cientista, e cada uma queria ser a primeira a ser vacina, querendo se livrar “daquele sentimento causador de tantas dores e decepções em nossas vidas”. Todos queriam ser os primeiros a serem agraciados com a primeira dose da vacina, e o médico-cientista, então, teve que estabelecer critérios e criar uma lista a fim de saber quais aqueles que mais necessitavam ser vacinados imediatamente. Pessoas do mundo inteiro vinham procurá-lo, grandes indústrias farmacêuticas e laboratórios queriam adquirir o direito de fabricar aquela vacina, mas ele estava irredutível: somente ele poderia fabricar aquela vacina e ele, e mais ninguém no mundo, seria o responsável por aplicar, em todas as pessoas, a dose da preciosa vacina.
            No dia que estava marcado o início da vacinação, milhares de pessoas, pré-selecionadas, estavam em frente ao seu consultório. Ele não havia, ainda, anunciado quem seria o primeiro a ter a honra e privilégio de receber a primeira dose da vacina. Quando abriu a porta, foi recebido por uma salva de palmas e palavras de congratulações dos ali presentes. Pediu silêncio e agradeceu a todos por estarem ali. Falou de suas pesquisas e do quão difícil tinha sido chegar até ali, do quão trabalho tivera até chegar à “fórmula perfeita”. Tinha na mão uma prancheta com os nomes, em ordem, dos primeiros a serem vacinados. Toda a multidão ficou no mais completo silêncio.
            Ele anunciou o nome de um homem, que se adiantou e recebeu votos de felicitação, com todos invejando a sua sorte de ser o primeiro a ser “expurgado daquele sentimento que causava tanto mal”.
            O homem entrou entre expectante e cambaleante ao consultório. Estava chorando, justamente por que sofrera uma das tantas decepções provocada por aquele sentimento, mas tinha um brilho diferente no olhar, como se, mesmo com toda aquela dor que carregava no peito, estivesse feliz. O médico-cientista ainda o ouviu por longos minutos, para ter a absoluta certeza de que era aquele o homem ideal para ser o primeiro vacinado. Ao ouvir aquelas palavras, aquelas súplicas para que o livrasse daquela dor, embora seus olhos dissessem o contrário, o médico teve a certeza de que tinha feito a escolha certa. O fez sentar numa cadeira e realizou todos os preparativos. Enquanto colocava o líquido na seringa, escutava todas aquelas imprecações e lamúrias do homem, que realmente estava sofrendo, implorando para que o livrasse de tudo aquilo, daquele sentimento. O médico se aproximou dele lentamente, como que medindo os próprios passos e, enquanto injetava o líquido em suas veias, o olhava nos olhos. Percebeu que aquele brilho diferente que tinha nos olhos, aquele olhar, que embora triste naquele momento, era radiante, ia se apagando pouco a pouco, até não restar nada além de uma opacidade naquele olhos. O homem, então, parou de chorar e de se lamentar. Agora sentia-se livre, sem qualquer dor no peito, sem qualquer variação nos seus batimentos cardíacos. Levantou-se e agradeceu ao médico, que exultante o acompanhou até a porta e anunciou ao público, que ali estava esperando: “Ele está curado!”.
            Uma a uma, todas as pessoas que buscavam, em suas cegueiras, uma cura para aquele male, iam entrando no consultório, sendo vacinadas e saindo com o semblante sério, sem qualquer resquício daquele sofrimento que as levara até ali nem qualquer tipo de lembrança da felicidade que tiveram, e da qual sentiram a falta, quando o sentimento “acabou”.
            O médico-cientista estava exultante e exausto após tantas horas seguidas de trabalho ininterrupto. As semanas e meses que se seguiram foram igualmente longas e cansativas.
            Já havia vacinado quase a totalidade das pessoas do mundo e já contava as horas para quando tivesse, por fim, seu momento de tranquilidade, livre daquele trabalho, preparando-se para ser agraciado por todos por ter “salvado as pessoas e o mundo”. Mal olhava para as pessoas antes de aplicar a vacina. Chamava seus nomes, esperava que se sentassem e aplicava a dose única da vacina.
            Chamou o nome de uma mulher, a última de sua lista para aquele dia, e sem olhá-la, indicou a cadeira onde deveria sentar. Preparou a dose da vacina que iria aplicar e, ainda sem olhá-la nos olhos, enfiou a agulha em seu braço e começou a liberar o líquido da seringa em suas veias. Foi só quando já tinha praticamente terminado quando a olhou. Seu coração bateu acelerado a ponto de quase sair por sua boca ao fitar aqueles olhos tão belos, mas que pouco a pouco perdiam o brilho. Passou a sentir o mesmo sentimento que levara todas aquelas pessoas ao seu consultório, mas não a sua face má, mas a parte boa, magnífica, que o fazia sentir flutuar, que fazia seu coração bater mais forte e acelerado, que lhe abria um sorriso no rosto e lhe dava leveza à alma. Soube, só então se dava conta, do erro que cometera. Aquele mesmo sentimento, que, segundo ele, era o causador de todo o mal no mundo, responsável por tantas dores e decepções, era o mesmo que movia toda a humanidade, era o mesmo sentimento responsável por toda a felicidade do homem, era o sentimento que fazia viver, desejar, amar...
            Só então, ao ser arrebatado por tal sentimento, por se apaixonar e amar de tal maneira, pela primeira vez em sua vida, ele se deu conta de seu erro. Mas não havia mais como voltar atrás, pois a mulher havia sido vacinada e não poderia, jamais, corresponder a seu amor, e ele sabia disso mais do que ninguém.
            Quando ela saiu, que fechou a porta, ele se trancou novamente em seu laboratório e chorou. Queimou todas as suas anotações e destruiu todo o estoque que ainda restava daquela vacina, que parecia trazer tanta paz e tranquilidade, mas que destituía os homens daquele sentimento que os tornava humanos. Chorou por longos dias e noites, sozinho, e quando acabou seu lamento, resolveu remediar todo o mal que havia causado à humanidade: resolveu criar um antidoto para aquela vacina, algo capaz de dar novamente aos homens a capacidade de amar, de ser e de viver novamente aquele sentimento responsável por toda a sua felicidade: o amor.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

A Rosa e o Vento

Havia no coração daquele imenso jardim uma linda Rosa. Era uma Rosa de beleza rara, nunca antes vista por aquelas paragens. Em suas pétalas estava guardada toda a delicadeza da primavera e de seu corpo desprendia um arome doce como a vida. Ela mantinha-se fechada durante a maior parte do dia, e só desabrochava a cada manhã, para saldar o nascer de um novo dia, quando as abelhas vinham colher seu pólen, quando os beija-flores vinham beijá-la ou quando um alguém vinha tocar-lhe a face. E como era lindo o seu desabrochar! Ela desabrochava num lindo sorriso que dava beleza a toda uma primavera.
            Pessoas vinham de longe apenas para contemplá-la, e todo o jardim se floria inteiro para receber os visitantes. Nenhuma das outras flores sentia inveja, pois aquela Rosa irradiava sua beleza para todo o jardim. Pássaros vinham e ficavam empoleirados nas árvores próximas, apenas contemplando toda aquela beleza da Rosa e do jardim como um todo. Havia pessoas, no entanto, que desejavam aquela Rosa para si, e tentavam colhê-la, arrancá-las de suas raízes, e para estas a Rosa não desabrochava, jamais, e ainda as feria com seus delicados espinhos. Mas estas eram minoria. Todos desejavam, sim, aquela Rosa para si, mas não por motivos egoísticos, e se sentiam realizados só em ter o privilégio em poder contemplá-la, em poder tocá-las sem se ferir, em poder vê-la desabrochar em seu sorriso.
            Mas havia um alguém que não ousava se aproximar daquela delicada Rosa: o Vento. Ele soprava todas as manhãs, vindo do nascente, e trazia em seus braços o primeiro calor do sol e o derramava sobre as demais flores daquele jardim, mas nunca chegava ao seu coração, onde estava presa aquela Rosa. Ele dava voltas e mais voltas em torno de si, aproximando-se enquanto tentava se afastar, com medo de ferir, de alguma maneira, de agredir com a sua força e por vezes até com a sua frieza, a Rosa. Tinha medo de, com seus braços longos e dedos desajeitados, acabar por arrancá-la de suas raízes e não poder jamais tornar a plantá-la em solo fértil. Assim ele vivia, todos os dias, em sua angústia.
            Passava noites soprando uma brisa fria, angustiado, esperando pelos primeiros raios de sol, só para pegar um pouco de seu calor e poder passar pelo jardim, para chegar perto da Rosa, sem nunca tocá-la. Adorava ver, ficava extasiado, quando via o seu primeiro desabrochar, o seu primeiro sorriso da manhã, e ficava, em seu devaneio, imaginando que ela sorria para ele.
            À Rosa, no entanto, nada passava despercebido. Sabia, sentia que o Vento a evitava. Não entendia bem o porquê daquilo e tentava, de todas as formas, cultivá-lo. Todas as manhãs era para ele que ela sorria, pois ele representava o nascer de um novo dia. Quando ele soprava frio, ela liberava o seu calor. Mas não havia forma do Vento entender seus jeitos, interpretar seus sorrisos e sentir o seu calor.
            Um pássaro, lá no alto, no céu, viu a angústia da Rosa e do Vento, que nunca se encontravam, que custavam a entender um os gestos do outro. Desceu num voo rasante e pousou ao lado da Rosa e a viu tão triste, fechada dentro de si mesma, como jamais estivera. Tocou-a com seu bico, ao que a Rosa não reagiu e fechou-se ainda mais. A Rosa estava triste e deixou cair uma única solitária pétala em forma de lágrima. O Pássaro, então, pegou a pétala e a jogou no meio do caminho por onde soprava o Vento. O Vento tropeçou naquela pétala e a reconhecendo, olhou para o lado e viu a Rosa fechada e percebeu que aquela pétala-lágrima caída tinha sido por ele. Aproximou-se lentamente em seu sopro e roçou seus dedos na face da Rosa, que se encolheu ainda mais, mas ao virar seu rosto para cima, ao ver que era o Vento aquele que lhe tocava, desabrochou seu lindo sorriso.
            Desde então o Vento não soprou mais frio e passava horas a fio naquele jardim, soprando e acariciando com seus dedos a delicada pele das pétalas da Rosa, que vivia agora a sorrir.
Os Quatro Cantos do Mundo passaram a sentir o aroma delicado daquela Eterna Primavera que foi o do encontro da Rosa com o Vento, e todos os ventos, de todos os cantos, sopraram e espalharam por todas as flores de todos os jardins.

domingo, 1 de abril de 2012

A Espera

Todos os dia, no mesmo horário, aquele homem saia de sua casa e ia se sentar naquele banco de praça, para ver o pôr do sol. Todos os dias, mesmo quando chovia e o sol se escondia atrás das nuvens, ele estava lá. Sentava-se no mesmo banco e ficava longos e infindáveis minutos ali, parado, esperando. Depois que o sol se punha e as luzes nos postes eram acesas, ele olhava para o céu e procurava pela lua, soltava o ar de seus pulmões, desapontado, e voltava para casa. Todos os dias havia mais de meio século, no mesmo horário, no mesmo local, com o mesmo olhar.
            Tinha filhos, mas todos já casados, cada um morando na sua própria casa, os quais nunca tinham reparado nesse hábito do pai. Sua esposa havia morrido há anos, e embora achasse estranho tal hábito do marido, nunca o questionou do por quê daquilo. Ele morava sozinho, e só esporadicamente era visitado por algum familiar, que ficava pouco tempo e sempre saía antes da hora do pôr do sol, ou só aparecia à noite, quando a lua já brilhava no alto, solitária, no céu.
            Ele já estava cansado e seus passos não eram mais os mesmos, seguros, que foram em outros tempos. Andava devagar, arrastando os pés, mas não deixava de, dia após dia, se sentar naquele banco daquela praça, com os olhos voltados para onde o sol se punha. Quando a chuva o apanhava desprevenido, enquanto se dirigia à praça, ele não se importava em se molhar. Ficava debaixo d’água e voltava para casa completamente encharcado. Mesmo quando estava doente, com febre, ele ia, ainda que ficasse menos tempo do que o habitual.
            Um dia, após tantos longos anos vivendo sempre aquela rotina, ao se sentar naquele banco, dando-se conta do quão em vão foi aquela espera, ele expirou fundo e, olhando para o horizonte, lá longe, onde o sol minguava, ele chorou. Foram lágrimas dolorosas, solitárias, que ele vinha guardando durante todo aquele tempo. Seus ombros tremiam e ele não conseguia articular uma única palavra. Suas lágrimas escorriam pelo rosto enrugado e caiam em seu peito. Quando as lágrimas secaram e ele, por fim, se acalmou, se deu conta de que o sol já tinha sumido no horizonte e a lua brilhava no alto do céu. Ele a olhou e ficou a contemplá-la, se perguntando se a pessoa por quem tanto esperava também estava, naquela hora, contemplando a mesma lua, se ela se lembrava da promessa que havia feito, tantos anos atrás. Talvez estivesse a olhar para o céu, como ele, vendo aquela lua, mas não devia mais se lembrar do que havia prometido, pois, se lembrasse, não o teria feito esperar em vão por todos aqueles anos. Levantou-se e contemplou o banco por uma última vez e olhou para a árvore próxima, onde tinha escrito, certa vez, seus nomes, imaginando que aquela marca, aquela cicatriz que deixara na pele de árvore seria tão eterna quando o seu amor. Mas a cicatriz se apagou, sumiu com o tempo, e o seu amor, a ilusão de seu amor, permanecera eterna, o mesmo amor que sentia no dia em que ela se despediu dizendo que voltaria, que viria para seus braços, na hora do pôr do sol, e que ele podia esperá-la olhando para o lado que o sol se punha. Ela não veio no dia seguinte, nem no outro, no outro nem no outro. Passaram-se semanas, meses, anos e décadas, e ela não apareceu. Ele se deixou levar pela mão, certa vez, por uma mulher, com quem se casou, teve filhos, mas que nunca amou como aquela a quem tinha amado pela primeira vez. A outra, com quem havia se casado, o amava, e seu amor lhe bastava. Ele também a amou, à sua maneira, durante todos os anos em que foram casados, até o dia em que ela fechou os olhos, mas nunca a amou no horário do pôr do sol.
            Agora estava de pé, olhando aquela árvore, para o local onde tinha escrito seus nomes, que tinham se apagado com o tempo e ele não havia se dado conta. Agora via que sua espera tinha sido em vão. Chorou, mais uma vez, deixando escorrer pelo seu rosto aquelas lágrimas silenciosas que lhe brotavam da alma. Deu as costas à árvore, à praça, ao banco e ao horizonte, onde o sol se punha, e voltou para casa.
            No dia seguinte não voltou, nem no outro, no outro e nem no outro, pois como sua espera tinha terminado, pois sua espera tinha sido em vão, não tinha mais motivo para voltar ao mesmo local, no mesmo horário, em que tinha esperado durante todos aqueles anos. Não mais voltou a abrir os olhos. Na manhã seguinte ao dia em que tinha dado às costas ao horizonte, foi visitado, enquanto dormia, por uma mulher, que pegou suavemente sua mão e o conduziu para o alto, onde poderiam contemplar o pôr do sol por toda a eternidade, juntos.
            Ele, enquanto era levado, olhou para ela, para dentro de seus olhos, e disse:
            - Mas eu te esperei todo esse tempo, e você nunca veio!
            - Eu vim, todos os dias, e ficava ao seu lado, olhando o mesmo sol. Eu era a presença, a esperança do reencontro, todo dia, que fazia você voltar no dia seguinte – respondeu ela.
            Ele tinha tantas perguntas, tinha tanta coisa a falar, mas ela não deixou. Cobriu seus lábios com os dedos da mão direita, pedindo silêncio. Chorou, pedindo desculpas.
            Os dois, de mãos dadas, agora andavam lado a lado, em direção ao nascer do sol.