sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Mais um menino no sinal

Era perto de meio-dia e naquele sol escaldante, protegido por uma míngua de sombra, aguardava pacientemente um menino que o sinal de trânsito mudasse de cor e acendesse a luz vermelha para os carros pararem. Estava cansado, o suor escorria por seu rosto e estava preocupado, pois o que havia apurado naquela manhã era muito pouco. Pensou nos irmãos mais novos; pensou na escola em que deveria estar àquela hora, na aula que estava perdendo. Mas na dura realidade de menino pobre, de família muito humilde habitante de periferia de grande cidade, não havia a possibilidade de escolha: era frequentar a escola ou ajudar no sustento da casa. Adoraria poder estar na escola, aprendendo, absorvendo os conhecimentos transmitidos pelos professores daquela pequena escola localizada na zona oeste da cidade.
            Ficou tão absorvido pelos devaneios da escola que nem se deu conta que o sinal havia fechado e já estava prestes a novamente abrir. Xingou a si mesmo. Havia perdido a possibilidade de, talvez, ganhar alguns trocados. Parou de pensar nas aulas, nos professores e nos colegas para prestar atenção só e unicamente no sinal de trânsito que estava bem à sua frente e nos carros.
            O tráfico era intenso naquele cruzamento. Vendo todos aqueles carros de todas as cores e modelos, o menino se perguntou se alguma daquelas pessoas fechadas atrás daqueles vidros, protegidas do calor pelo ar-condicionado, prestava atenção nele. Muito provavelmente não. Talvez estivessem entretidas nas músicas que ouviam ou pensando nos compromissos do dia ou simplesmente preocupadas no processo de dirigir, executando os movimentos mecanizados da troca de marchas, aceleração e frenagem.
            Viu quando os carros começavam a diminuir a velocidade e olhou para o sinal. A luz verde dera lugar à amarela e ele se preparou para entrar em cena. Quando os carros pararam, ele se dirigiu à faixa de pedestres, por onde as pessoas atravessavam, cumprimentou os motoristas num gesto amplo, mas muitos dos quais nem sequer o perceberam, e começou a realizar seu número. Atirou algumas bolas para o alto e iniciou uma brincadeira de malabarismo que lhe fora ensinada, certa vez, por outro menino naquele mesmo cruzamento. Findo o número, inclinou-se, agradecendo, e só então voltou novamente os olhos para os motoristas, para perceber que mais uma vez praticamente ninguém o tinha observado. Estava já acostumado àquilo, a se sentir um alguém invisível num cruzamento em frente a um sinal, mas, mesmo assim, resolveu caminhar por entre os carros distribuindo sorrisos e pedindo algum dinheiro que algum daqueles motoristas compadecido de sua situação pudessem lhe dar. Naquela vez, apenas uma mulher, que vinha com uma criança no banco de trás, abaixou o vidro para lhe dar umas poucas moedas, que ele agradeceu ao receber. Era pouco, quase nada, mal dava para comprar pão, mas ele agradeceu imensamente. O sinal abriu novamente e ele voltou para a proteção de sua sombra.
            Olhou para a bolsa que tinha amarrada em torno da cintura, onde guardava o dinheiro. Aquele não tinha, definitivamente, sido seu dia de sorte. Iria tentar mais uma última vez e iria para casa. Talvez no dia seguinte alguém, motivado por um sentimento de misericórdia, prestaria atenção a sua habilidade no jogo de malabarismo com bolas e lhe recompensasse com algumas moedas ou talvez com alguma nota.
            Quando o sinal fechou para os carros, realizou o mesmo ritual de sempre. Cumprimentou os motoristas e começou a jogar as bolas para cima, mas algo dera errado, bateu uma mão na outra, perdeu o tempo e as bolas caíram no chão e rolaram entre os pneus dos carros. Sorriu, sem jeito, pedindo desculpas, e percebeu que dessa vez algumas pessoas o observavam mais atentamente, sorrindo ante a falta de jeito do menino, mas reconhecendo o seu esforço. Alguns abaixaram os vidros e lhe ofereceram como recompensa umas moedas, que ele recebeu de bom grado, e quando o sinal já estava prestes a fechar, quando já estava para sair do meio dos carros, ouviu a buzina de um que estava perto do final da fila. Ele levantou a cabeça e viu que um alguém lhe acenava. Correu até lá, olhando para trás, para o sinal, que já ia ficar verde. Quando chegou, viu que o motorista era um senhor de tez morena e cabelos grisalhos e, no banco de trás, vinha uma menina entretida com um objeto que ele não conseguiu reconhecer. O homem lhe entregou uma nota, algumas moedas e lhe deu algo que ele recebeu sem olhar, pois o sinal abrira. O menino correu para a calçada e voltou para a proteção de sua sombra, guardando o dinheiro dentro de sua bolsa, pensando se valeria a pena tentar mais uma última vez o seu número, mas estava muito cansado e o sol, muito quente. Melhor voltar para casa, pois aquele seu dia não estava sendo dos melhores. Quem sabe o outro teria mais a lhe oferecer do que umas pouquíssimas moedas e três notas de valor baixo.
            Quando já guardava suas coisas numa mochila rasgada, foi que se deu conta daquilo que aquele senhor lhe entregara e ele ainda não tinha atentado para o que era. Um livro! Aquele senhor lhe dera um livro! Durante todo aquele tempo em que pedia dinheiro nas ruas, em que realizava números diversos para chamar a atenção de motoristas, já recebera inúmeras coisas: dinheiro, comida, uma ou outra palavra, mas nunca ninguém lhe dera um livro. Não prestou atenção sequer as cores vibrantes da capa, não o abrira para ver as ilustrações e não chegou sequer a ler seu título, jogou-o dentro da mochila e foi embora pra casa.

Em casa, viu a mãe cansada, pois passara a manhã inteira a lavar e passar roupa; viu os irmãos menores brincando com outros meninos da rua. Jogou a mochila num canto do quarto e se jogou na cama, e só se levantou quando sentiu um vazio do estômago e o ouviu reclamar. Foi até a cozinha e levantou as tampas das panelas só para ver que tinha o mesmo do dia anterior, do anterior do anterior, do anterior do anterior do anterior... Soltou o ar de uma vez, pois esperava que, pelo dinheiro que conseguira em outros dias, pudesse ao menos comer algo diferente e um pouco melhor. Mas era melhor não reclamar, pois pelo menos tinha o que comer, enquanto outros meninos de sua rua nem isso tinham.
            A casa estava em silêncio. Sua mãe estava no quintal, lavando e estendendo roupa, e seus irmãos estavam do lado de fora. Foi para seu quarto e lá ficou olhando para o teto até que pegou no sono.
           
No dia seguinte, acordou com os primeiros raios de sol, tomou um banho fio, comeu um pão com margarina e bebeu um copo de café e se aprontou para sair. Antes de fechar a porta de casa, olhou para os irmãos dormindo e para a mãe, que já estava de pé, trabalhando.
            Quando chegou ao cruzamento, que abriu sua mochila, foi que se deu conta de que o livro ainda estava ali. Soltou todo o ar dos pulmões de uma vez, aborrecido, pois havia trazido aquele peso à toa. Mais uma vez, não reparou naquele objeto, pegou as bolas e esperou que o sinal fechasse para passagem de carros.
            Aquele dia foi bem melhor do que o anterior. Não deixou as bolas caírem nenhuma vez e recebeu muitas moedas, tanto que já pensava em ir pra casa mais cedo e passar antes no mercadinho do bairro para comprar algo diferente para almoçar, e quando já se preparava para ir embora, que abriu a mochila para guardar as bolas, atentou para o livro que estava ali dentro. Retirou-o da bolsa e prestou atenção pela primeira vez nele. Passou as páginas lentamente reparando nas ilustrações, mas não tentou lê-lo. Ficou tão entretido no colorido, imaginando a história que havia por trás de cada uma, no mistério que aquelas letras impressas guardavam, ansiando para serem descobertos, que nem se deu conta que um carro buzinava freneticamente tentando lhe chamar a atenção. Só quando levantou a cabeça foi que viu que uma mulher a lhe acenar, chamando-o. Ele, com o livro na mão, correu até ela, que sorridente, impressionada por ver um menino numa esquina, debaixo do sol, com um livro na mão, pegou um livro que trazia no banco de trás do carro e estendeu para ele. Junto com o livro ela lhe deu umas moedas, que ele recebeu de bom grado.
            O sinal então abriu e a mulher lhe sorriu abertamente antes de engatar a primeira marcha e seguir para seu compromisso, não sem antes lhe desejar uma boa leitura. O menino pegou os dois livros, guardou-os cuidadosamente na mochila e foi para casa.

Tomado por um estranho sentimento que não sentia há tempos, não saiu de casa no dia seguinte. Quando sua mãe lhe perguntou se estava se sentindo bem, ele apenas sorriu e disse que sim. Ela foi lavar roupa e ele foi para o quarto, onde tinha deixado sua mochila. Abriu-a delicadamente e de lá retirou o primeiro livro. Mesmo balbuciando, pois seu domínio de leitura era precário, conseguiu ler o título do livro, as primeiras palavras e frases, e logo se viu imergido naquela história fantástica. Quando o fechou, que olhou ao redor de si, viu que tinha muito de diferente-igual ao personagem do livro e sentiu uma imensa gratidão por aquele senhor que lhe dera aquele primeiro livro. Mal tomou novamente fôlego, pegou o segundo livro e o leu de supetão tomado por uma imensa alegria.
            Aquelas leituras, aquele momento em que esteve a sós consigo mesmo e com todo aquele mundo de personagens, trouxe consigo um sentimento de liberdade que jazia esquecido no peito do menino.
            Saiu de casa às pressas, pegou o primeiro ônibus que viu e chegou ao cruzamento onde ficava todos os dias sem fôlego, mas em êxtase. Naquele dia não fez uma única vez seu número de atirar bolas para o ar. Ficou o tempo todo com o olho nos carros para ver se reconhecia aquele carro cujo motorista lhe abrira a janela há dois dias e lhe entregara um livro que ele não prestara atenção, mas que só naquela manhã ele tinha notado o seu valor. Ficou olhando para todas as janelas para ver se via novamente aquela mulher de sorriso tão aberto
            Não viu nenhum dos carros, não encontrou nenhum daqueles olhares que desejava reencontrar, mas não ficou triste. Voltou para casa estranhamente pensativo. Chegando lá, viu que sua mãe tinha preparado algo especial para o almoço, e só então se deu conta de que dia era aquele: seu aniversário! E ele sequer tinha se dado conta.
            Recebeu das mãos da mãe um embrulho, que ele prontamente rasgou e viu uma mochila e alguns cadernos. Agradeceu imensamente os presentes e a abraçou.

Não foi para aquele cruzamento esperar que o sinal fechasse no dia seguinte, no outro e no outro, mas toda manhã saía de casa nas primeiras horas da manhã, como sempre fazia, mas com destino à escola. Sentia uma imensa alegria ao ouvir o sinal sonoro indicando o início das aulas e uma leve tristeza quando soava o do fim.
            Um dia sua aula havia terminado mais cedo e foi caminhando em direção ao ponto de ônibus. Passou naquele cruzamento tão seu conhecido quando viu um carro parado ao final da fila. O motorista o reconheceu e buzinou para lhe chamar a atenção. O menino abriu o sorriso e acenou, agradecendo. O sinal abriu o homem seguiu seu trajeto enquanto o menino continuou caminhando pelas calçadas, com a alma leve, com um pensamento vagando livremente. Seguia em silêncio, por mais que tudo ao seu redor fosse barulho, e ao atravessar uma rua, ouviu o barulho de um buzina. Olhou para o lado e viu aquela mulher sorridente e lhe acenar. Ele retribuiu seu sorriso e colocou a mão sobre o peito, como que para indicar o nome da escola, e ela acenou positivamente.
            Aqueles encontros, naquele dia, talvez tivessem sido mero acaso. Talvez aquelas duas pessoas se conhecessem, talvez não, mas fato é que ambos foram providenciais na vida daquele menino. Aqueles atos, simples, abriram os olhos e deram uma outra perspectiva de vida àquele pequeno malabarista, lhe deram uma outra possibilidade de crescimento na vida, e a forma que ele encontrou para expressar sua gratidão foi de reler aqueles livros vezes sem conta, em especial no dia de seu aniversário.
           
Mesmo já tendo passado tantos anos, mesmo ele já sendo, agora, um adulto, aposentado, ele continuava a ler aqueles livros infantis, e quando se deu conta de quão egoísta era, pegou-os, guardou-os dentro de uma mochila e saiu de casa. Dirigiu por ruas desconhecidas, passou por inúmeros cruzamentos até chegar àquele tão familiar, que mesmo tendo mudado tudo ao redor, continuava estranhamente familiar. Quando o sinal fechou, viu um menino se dirigir até o centro da faixa de pedestre e começar a atirar as bolas para cima. Quando ele terminou, ele sorriu, buzinou, chamando a atenção do menino, abriu o vidro do carro e lhe entregou a mochila onde estavam guardados os bens mais preciosos que alguém havia lhe dado naquela esquina. O menino agradeceu, mas quem agradeceu mais ainda foi o homem que um dia fora um menino igual ele, no mesmo sinal, fazendo as mesmas coisas, ganhando os mesmos trocados, e que agora estavam intrinsecamente unidos pelos mesmos livros.

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Por que literatura?



Todos os dias quando acordo, eu fico a me perguntar “por que literatura?”. Eu poderia ter escolhido me dedicar, por exemplo, à medicina, assim passando a conhecer o corpo humano a fundo; ou poderia ter escolhido o direito, para entender o homem em sociedade. Escolhido a literatura, pois só ela é capaz de possibilitar o conhecimento não do corpo, mas sua alma, ele nos apresenta o homem não em sociedade, mas o homem consigo mesmo. Mas se engana quem pensa que a literatura é só isso. A literatura tem inúmeras serventias, dependendo de como se olha para o livro e de seu estado de espírito. Podemos encontrar, sim, um elaborado e complexo sistema filosófico, podemos encontrar uma visão revolucionário do homem pelo homem ou do homem em sociedade, mas podemos, por vezes, simplesmente nos deleitar com um livro pelo livro, experimentando momentos de um imensurável prazer no ato da leitura. A leitura pode nos levar a mil e um lugares sem precisar nos tirar do lugar.
                Todas as vezes que pego um livro, eu me pergunto o que posso vir a encontrar entre suas páginas, entre um parágrafo e outro, eu me pergunto se tal obra é atual, por exemplo. A descoberta é sempre única e o livro é sempre atual. O que falar, por exemplo, de um livro como os de Homero, atuais, que inspiraram termos de medicina (tendão de Aquiles) ou informática (o vírus de computador chamado “cavalo de troia”), que, mesmo numa conversa informal entre amigos, sempre, sempre tem um que fala que recebeu um “presente grego”, se referente ao presente mais astuto da história e da literatura mundial. Não só Homero, mas todos os gregos antigos, mesmo sua civilização tendo vivido seu auge há quase três mil anos continuam atuais, sendo constantemente revisitados em todas as artes, como cinema, música, artes plásticas e literatura, mas também no nosso dia-a-dia, no nosso imaginário, sendo mais presentes em nossa vida do que a gente é capaz de se dar conta. Mas não só Homero e os gregos são atuais, são importantes. O que podemos falar, por exemplo, de Dante, cuja criação transcende ao literário e artístico, tendo influenciado fortemente nossas crenças, tendo mesmo moldado o pensamento de Céu e Inferno de nossa sociedade ocidental, sejamos nós cristãos ou não? O que falar de Dom Quixote, que é, na minha opinião, o personagem que melhor sintetiza o homem moderno? E de Shakespeare, um dos maiores escritores de todos os tempos, tido como um dos principais cânones da literatura ocidental?
                A literatura é tão fantástica e atual que há personagens/criações, que se tornam maiores que seus escritores/criadores, chegando mesmo a ofuscá-los! O exemplo maior disso é quando falamos no nome Conan Doyle. Quantos conhecem esse nome assim que o falamos? Mas todos conhecem o nome Sherlock Holmes! O maior detetive do mundo nós reconhecemos imediatamente, sabemos citar suas frases, sabemos falar de como resolveu alguns notórios crimes, admiramos o seu raciocínio lógico, etc., a ponto de acreditarmos em sua existência (“como assim, ‘sua existência’?”, sempre tem alguém que fala! “Sherlock Holmes não existiu?”, ela sempre pergunta). O caso Doyle-Holmes é, talvez, o mais conhecido de todos nesse aspecto, mas há muitos outros, de personagens que são tão fortes e marcantes na história que sua existência ultrapassa os limites e páginas do livro em que são narradas as suas proezas.
                A literatura, além de ser fantástica em vários aspectos, é visionária e influencia inúmeras áreas do conhecimento. Para percebermos e ter uma real noção disso basta que vejamos e estudemos um pouco de Dostoievski, cuja obra era adorada e chegou, mesmo, a influencia o filósofo Nietzsche e teve um papel relevante nos estudos e desenvolvimento da teoria da psicanálise de Freud. Para vermos um aspecto visionário e crítico, por exemplo, da literatura, basta lermos os dois principais e mais conhecidos livros de Orwell. Temos a literatura crítica, aquela que denuncia a hipocrisia da sociedade e dos tipos humanos que a compõe, como no caso de obras como as de Flaubert, Tolstoi, Zola, Victor Hugo, entre outros. Além disso, a literatura é resgate e retrato da história e da vida das pessoas, independente de onde e em que época vivem, e exemplos disso estão na obra de Graciliano Ramos, que foi o autor brasileiro que melhor retratou a dura realidade e vida do sofrido povo nordestino, daquele povo que vive nas mais áridas regiões assoladas pela seca de nosso país. Percebemos isso também na leitura de Charles Dickens, que melhor do que ninguém retratou a dura vida das pessoas nas cidades de seu tempo.
                Temos a literatura fantástica, aquela que nos faz sonhar, que nos cativa e nos enfeitiça, como a de Gabriel Garcia Marquez; temos aquela poética, lírica e delicada ao extremo, como a de Kawabata; temos aquela que nos desafia e nos faz ser como o detetive responsável pela solução de determinado crime, como a de Agatha Christie; temos aquela que nos deleita com a plasticidade da linguagem, como a de Mia Couto; temos até aquela que nos causa calafrios, aquela que nos dá medo de pegar o livro à noite, como as de Stephen King, Bram Stocker, Lovecraft ou Allan Poe.
                A literatura não é só umas duas dúzias de nomes e de obras, literatura é um número infinito de autores, obras, personagens e universos mil que estão bem ali, ao nosso alcance, para serem descobertos, para nos convidar a entrar e caminhar num universo fantástico, que pode ser um descrito nas ruas de nossa cidade, na Paris, Londres ou Moscou do século XIX, em Narnia, na Terra Média, na Lua, no fundo do oceano ou seja lá em que local ou tempo for... Em se tratando de literatura, se pode tudo!
                Nas engana-se quem pensa que a literatura só acontece “lá fora”. Temos, aqui, em nosso país, autores extraordinários que nos fazem bater no peito e ter orgulho de ter nascido e de viver nas mesmas ruas, bairros, cidades ou apenas no país em que viveram Machado de Assis (o maior escritor brasileiro de todos os tempos!), Guimarães Rosa, Álvares de Azevedo, Monteiro Lobato, Érico Veríssimo, Jorge Amado, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, José de Alencar, Chico Buarque, Olavo Bilac, Augusto dos Anjos, Lima Barreto, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, entre tantos e tantos e tantos outros... E ainda tem os que não são brasileiros, mas são tão próximos, são tão irmãos, que os lemos como se o fossem, como os casos de Fernando Pessoa, Camões, Eça de Queiroz e Saramago.
                A literatura faz tanto parte de nossa vida que a gente nem mesmo se dá conta. Ela está em mil e um filmes que assistimos (repare na quantidade de filmes adaptados ou inspirados na história de amor, uma das mais famosas do mundo, de Romeu e Julieta), seja ele mais cult e intelectual, seja ele um voltado para o entretenimento, aventura, fantasia, suspense ou mistério (vide os baseados nas obras de Tolkien, O senhor dos anéis e O Hobbit, olhe os fantásticos filmes baseados na série de livros de Harry Potter), temos os seriados que amamos acompanhar episódio a episódio (como o Game of Thrones, baseado na obra de George R. R. Martin). Está, também, presente e inspirando as mais diversas artes.
                Quando eu paro e penso nisso tudo, na importância que a literatura tem para a nossa história, no quão presente está em nossa vida, que me dou conta do que já li e do que ainda tenho para ler e descobrir e que me aproximo de uma resposta que me seja realmente satisfatória para a pergunta que sempre me faço: “por que (e para quê) literatura?”

domingo, 3 de maio de 2015

Foi num fim de tarde...

Era fim de tarde e a anciã estava sentada, como sempre fazia àquela hora, vendo o pôr do sol. Sentada em sua cadeira de balanço no canto mais afastado da varanda de sua casa, ela, enquanto contemplava tão raro-comum momento, olhando ao longe, revivia os momentos passados de uma simples felicidade.
O pôr do sol, para ela, era a hora em que tudo acontecia. Foi num fim de tarde, quando ainda era uma adolescente, que vira o homem de sua vida pela primeira vez, e que só vários meses após aquele primeiro encontro, no exato instante em que o sol de deitava no horizonte, que eles se beijaram pela primeira vez. Foi num fim de tarde em que o sol demorava a se pôr, como que para contemplar a felicidade dela, que se casou, e nove meses depois, quando o sol se pôs, que deu a luz ao primeiro filho, cuja primeira visão foi a da luz do sol de fim de tarde que entrava pela janela entreaberta.
Teve vários filhos, todos nascidos à mesma hora, que levava, quando crianças, para brincar à sombra de uma árvore, para sentirem a brisa vespertina que soprava vinda do oceano e para, no exato instante em que o sol se punha, ficarem em silêncio só pelo prazer de verem o sol fechar os olhos lentamente no horizonte.
Era sempre ao final de cada tarde que ela se sentava para ver o pôr do sol enquanto esperava o marido chegar do trabalho, sempre trazendo presentes para ela e para as crianças, e foi num dia, no único dia naqueles longos anos de felicidade, em que se atrasou, chegando no início da noite, que trouxe consigo a notícia de que estava doente. Os dois choraram juntos, e prometeram um para o outro lutar juntos até o fim, e nunca deixarem um ao outro a sós, não importa o que acontecesse.
Lutaram, choraram, sorriram e tiveram esperanças, e foi num dia, num fim de tarde, em que tinham esquecido de por que um dia estiveram tristes, que ele se foi, junto com o sol que fechava os olhos para dar lugar a noite. Foi nessa noite de ventos frios em que a nuvem encobriu a lua e as estrelas, que ela chorou sozinha e que soube que nunca estaria a sós, pois ele estaria para sempre com ela e viria visitá-la ao final de cada tarde, e ficariam calados, de mãos dadas, vendo o sol se pôr.
Ele foi enterrado, ao final da tarde seguinte, embaixo de uma árvore na parte alta do cemitério, num pequeno morro, para que pudesse contemplar, todo dia, o espetáculo que a vida oferecia diariamente a todos que tinham sensibilidade para ver o momento.
Ela voltou calada durante todo o trajeto do cemitério até sua casa, onde se trancou no quarto por vários dias, só abrindo a janela para ficar junto e segurar a mão de seu marido enquanto contemplava o pôr do sol.
Foi num fim de tarde que recebeu a notícia do filho dizendo que ela ia ser avó, de um outro que tinha arranjado um emprego em outra cidade e de um terceiro que tinha passado no vestibular.
Foi enquanto o sol se punha que uma filha, que ainda muito jovem tinha saído de casa para ganhar a vida, trabalhando numa cidade distante, voltou para que ela conhecesse sua primeira neta. Ela sentou a criança em seu colo, que imediatamente olhou ao longe, para onde o sol se punha, e ficaram as três, mãe, filha e neta, a contemplar a beleza do instante.
Enquanto contemplava o pôr do sol foi que recebeu a notícia da morte trágica de um dos filhos, que ficou sabendo da doença de um irmão e que chorou de saudade dos tempos e das pessoas amadas.
Era em cada fim de tarde, de alegrias e tristezas, de lágrimas e sorrisos, que ela se sentia em paz. Era o silêncio do canto dos pássaros de cada fim de tarde que a reconfortava, que fazia de cada momento eterno, que fazia a vida valer a pena, que ela sentia como que o tempo parar ou passar lentamente, como a luz do sol que vai se apagando pouco a pouco.

Foi naquele fim de tarde em que contemplava o sol como da primeira vez, que viu seu marido se aproximar chorando, e ela o recebeu sorrindo, de braços abertos. Os dois ficaram lado a lado: ela em sua cadeira de balanço e ele de pé, que contemplaram o pôr do sol pela última vez que, quando o sol fechou seus olhos naquele fim de dia, ela também fechou os seus, e ficou para sempre com aquela luz dourada em seus olhos.

quarta-feira, 25 de março de 2015

Dez anos de livraria e uma certeza: não sou um bom vendedor

Nunca fui um bom vendedor. Estranho essa certeza ter me vindo à mente justamente agora, quando estou prestes a completar 10 anos de livraria (é, amigos... o tempo voa, e como voa...). Talvez Rose, tendo descoberto isso num piscar de olhos há dez anos o que eu só vim a descobrir agora, não me contratou para trabalhar com vendas, vaga que eu pleiteava, mas sim para atuar “na retaguarda da livraria”, em seu estoque, onde eu teria mais contato com os livros que estavam chegando diariamente à nossa loja. Mas eu sou teimoso e todo santo dia exigia o máximo de minha eficiência dentro do estoque para acabar com minhas obrigações só para poder ficar umas horinhas ou míseros minutinhos no salão da livraria só para poder experimentar a adrenalina e desafio do que é ser vendedor.
            Rose, com sua sensibilidade, percebeu que eu não levava jeito para vendas, mas sim para um trato e uma relação diferenciada com o livro, e, por isso mesmo, resolveu me promover antes do término de meu contrato de experiência. Foi aquele primeiro sábado, 2 de julho de 2005, um dos dias mais felizes de minha vida. Eu corria de um lado pro outro pela livraria, atendendo um leitor e outro, orientando, ajudando, localizando livros, fazendo indicações de leitura e, o mais curioso de tudo, apesar de, naquele dia, ter alcançado um record em valores de venda, não vendi, no sentido restrito da palavra, um único livro. Eu fiz e continuei fazendo muito mais do que vender livros nos dias, semanas, meses e anos que se seguiram.
            Cheguei, na metade dessa longa-curta empreitada de dez anos, a marcas expressivas, como, por exemplo, ao número de R$1.000.000,00 em vendas de livros, no início de 2009, o que me rendeu um bom prêmio, placa e homenagens, e não vou dizer que nunca tenha atuado como vendedor, pois atuei, sim, mas me orgulho de dizer que foram raros esses momentos e que tenho, hoje, plena consciência de que atuar diretamente com vendas não é o meu forte. Sempre bati as metas propostas sem precisar, nunca, me desesperar, correndo atrás de clientes, mesmo porque, eu nunca fui de ter clientes, mas sim amigos leitores, pessoas com quem troco experiências e impressões de leitura.
            Nesses dez anos eu já fiz muitos amigos, e um orgulho que tenho é que não fiz inimizades (tudo bem que há uma pessoa ou outra que entrou – e que entra – na livraria e não foi – não vai – com a minha cara; tudo bem que me dei e me dou melhor com uma pessoa do que com outra, mas inimizade mesmo, não fiz, assim como não sou de fazer em lugar algum), prova disso é a boa relação que cultivo diariamente com todas as pessoas com quem convivi e convivo diariamente. Posso até não falar diariamente com todo mundo, pode até fazer um considerável tempo que não dou um “oi” para um ou outro, mas que, mesmo com as não-palavras-ditas, sei que a amizade continua intacta. Meu respeito e admiração por Andreza continua intacto e cresce mais e mais a cada dia, as boas lembranças dos tempos do convívio diário com Alessandra continuam em mente, a saudade dos papos-cabeça com Ivson por vezes aperta, o carinho e o respeito por Alessandro e Leonardo nem se fala... Foram e são tantas as pessoas com quem tive a imensa honra e privilégio de conviver nesses dez anos que é impossível citar todas num único texto, mas, mesmo não verbalizando seus nomes, todas são lembradas diariamente por mim ao sair de casa todo santo dia para mais uma jornada de trabalho. O que falar da admiração que tenho por Marcony, que, se eu me orgulho por estar para completar dez anos, o que dirá e sentirá ele, que já tem quase a minha idade só em tempo de estrada? O que falar da relação de cooperação contínua e respeito construída diariamente com Adriano? O que falar da amizade e respeito que nutro por Elinaldo, Luíza e Laiz? É, amigos... foram e são muitos amigos que a vida e o trabalho me deu nesses dez anos de labuta diária...
            Foram inúmeros os supervisores e gerentes nesse meio tempo, desde Vilma e Teresa, lá atrás, nos tempos de Siciliano, até hoje, já na família Saraiva, trabalhando com Stela. Mas sabe o que é mais legal nisso tudo, de minha relação com meus superiores? Eles não são e nunca foram superiores, gerentes, supervisores, líderes (essas nomenclaturas são somente cargos, são somente nomes que constam nas carteiras de trabalho deles), mas sim iguais, em trabalho, cargo, brigas, desentendimentos e muitos entendimentos. Tudo bem que nem sempre estive nem estou de acordo com uma postura frente a determinada situação e por vezes até discuto, com o devido respeito, com aquele a quem devo me relatar, mas essas rusgas nunca atrapalharam nem vão atrapalhar a excelente relação que construí e construo com cada um.
            Mas sabem o que me fez colocar em retrospecto isso tudo, sabe o que fez essas memórias me tomarem subitamente de supetão? A sólida e inigualável relação que construí com as dezenas, centenas, quiçá milhares de pessoas ao longo desses dez anos. Nunca pautamos a nossa relação baseada no preceito vendedor-cliente, mesmo porque, como já disse, não sou um bom vendedor, e se dependesse de meus dotes profissionais como tal para fazer amizade, iria morrer na solidão, mas sim na relação entre amigos, entre duas pessoas que amam o mesmo ser-elemento vivo: o livro. E aqui, mais uma vez, fico com uma imensa dor no peito e consciência por não poder citar todos, pois são MUITOS, podem ter certeza, e peço uma Odisseia de desculpas a cada um, dando-lhes a certeza de que, mesmo sem falar seus nomes, lembro de cada um.
            É impossível, sempre, para mim, falar nesses meus dez anos de livraria sem lembrar e falar nos nomes do compulsivo-por-livro Rômulo, sempre exalando tranquilidade e simpatia; do sempre sensato e elegante em seus comentários e opiniões Adauto, do casal que eu muito admiro Marcos-Karina, do pai-filha Honório-Bárbara; da plural e com muito bom gosto, sempre, em tudo, Nicolle; da meio-tímida Val, sempre a procurar e pedir, desejosa de uma indicação de uma leitura que a surpreenda; de Lorenna, que todo mês diz que não vai, que não pode comprar livros, mesmo com seu Vale Cultura, mas nunca consegue resistir ao pôr os pés na livraria. O que posso falar de Adriana, que é, mais do que uma mulher, um Ser Humano extraordinário? Maria do Carmo, Célia, Neusa e Ariette são pessoas a quem muito admiro e respeito mais do que consigo expressar; Dilermando, Maurício e José Brandão, eu não saberia nem o que falar; Joenilson, o maior francófilo do mundo, eu não consigo mais conceber qualquer pensamento sobre a França sem que a sua figura me venha à mente; Monique, Elisabeth, Henrique, Pedro, Leopoldo, Virgínia, Sesiberg, Hérica, Ronaldo, Alberto, Marcello, Ammer, vigi... e por aí vai a enorme lista de amigos que a vida-trabalho-livraria me deu nesses dez anos. Tem também, além desses todos, aqueles que eu nunca sei ou lembro do nome, como aquele senhorzinho que vai duas vezes por mês à livraria para comprar livros para sua esposa, e sempre me pede uma indicação, e eu sempre acerto em cheio, mesmo sem nunca ter trocado uma única palavra com ela! Tem aquela mulher elegante, que mora na Inglaterra, que vem ao Brasil uma vez por ano e, sempre que pode, passa na livraria para pegar, comigo, uma lista de indicações de leituras para fazer ao longo do ano seguinte; tem aquela senhora, juíza, que ama literatura russa, que me confidenciou certa vez que não vê a hora de largar os excessos de formalidades e obrigações que a sua profissão lhe impõe para poder se dedicar ao fantástico universo da literatura; tem aquele senhor que foi médico legista durante décadas, mas que hoje, aposentado, resolveu cuidar só e exclusivamente de orquídeas e ler, ler e ler.

            É, amigos, dez anos não é pouco tempo, não, e são muitas pessoas que eu tive o privilégio de conhecer e estar construindo, sempre, uma sólida amizade, e prova disso é ver a agenda de meu celular, repleta de tantos nomes de pessoas da livraria, e isso só foi/é possível pelo fato de eu ser um não-bom-vendedor, mas sim um amante confesso da literatura e um orgulhoso livreiro de ter trilhando e estar trilhando um longo-curto caminho.

domingo, 11 de janeiro de 2015

De palavras e sedução

Ela caminhava deixando que seus passos a guiassem para um lugar em que pudesse estar bem longe de si, mas por maior que fosse a distância que seus pés a levassem, lá estava ela mesma, diante de seus olhos, seja através de um reflexo numa superfície espalhada, seja na própria sombra a seus pés, que não a deixavam esquecer de si e nem do que lhe acontecera. Procurava deixar que os pensamentos voassem para não se lembrar de nada, mas os fatos ainda eram muito recentes, e a memória teimava em lhe fazer lembrar aquilo que queria esquecer. Tapava os ouvidos para deixar que o silêncio a dominasse, mas ainda assim ouvia o eco de uma voz distante que vinha se aproximando até poder ser ouvido como um sussurro ao pé de seu ouvido, o eco da voz daquele que a seduzira, e ela, ingênua, pura como era, se deixara levar por aqueles sonhos, se deixara ludibriar por aquelas melífluas palavras proferidas por aquele que despertara o seu amor, mas que nunca tivera a real intenção de amá-la.
            Seus pés, já cansados, se negavam a dar mais um passo a mais além, e ela se deixou quedar de joelhos em frente ao mar, onde as ondas quebravam bem perto, diante de seus olhos, fazendo aquele barulho sedutor, como que a chamando. Deixou-se tomar pela solidão e que os barulhos e sussurros do mar sobrepujassem os sons que ouvia dentro de sua cabeça.
            Sem que percebesse, uma única e solitária lágrima escapou de seu olho e escorreu pelo rosto, deixando um profundo sulco em sua pele. Ela então sentiu a umidade deixada pela lágrima nos caminhos que percorrera e se lembrou das dolorosas lágrimas derramadas tão recentemente. Lembrou-se de cada momento, de cada palavra, da maneira como se sentira ludibriada, de como fora seduzida e levada a entregar àquele homem o que tinha de mais precioso.
            As dores que sentia no corpo não significavam nada comparadas às dores que sentia latejar no fundo da alma. Sentia-se perdida, sem saber o que fazer para afastar as lembranças, sem saber como diminuir a dor que lhe consumia pouco a pouco e ameaçava lhe tomar por inteiro.
            Fechava os olhos e tentava se concentrar apenas no barulho das ondas quebrando bem perto, lhe chamando para um mergulho, tentando lhe seduzir, esticando seus dedos para tocá-la, mas tudo que ouvia era a voz dele, as mentiras que ele desfiava, com as quais a envolvida sem que ela se desse conta. Lembrou-se que havia resistido além da conta, mas aquelas palavras sussurradas tinham um poder muito grande, e lembrando disso teve a certeza de que a palavra gritada é a mais fraca, de que a palavra falada baixinho, quando proferida enquanto se olha nos olhos é a que tem a verdadeira força.
            Com seus olhos belos e sua voz sibilante, ele conseguira arrancar dela um sorriso, depois outro e mais outro, até que ela, já sem defesas, acabou se entregando, não aos poucos, mas sem reservas. Amou perdidamente, mas em momento algum percebeu que ele só a amava da boca pra fora, que as palavras dele eram vazias de sentimento.
            Foi, para ela, um amor platônico se realizando. O amor platônico, o sonho, mostrou-se em sua verdadeira face quando ele a procurou e, com a mesma voz sussurrada, com o mesmo olhar sedutor, mas desta vez sem o brilho, e com uma fingida dor e um leve sorriso imperceptível aos olhos, disse que não podiam mais ficar juntos, que não podiam mais se ver e disse uma poção de palavras vazias que ela não pôde ouvir, pois a dor foi tão intensa que todos os seus sentidos ficaram como que anestesiados: não via, não ouvia e não sentia cheiro, mas sentiu o abraço frio que ele lhe deu e sentiu o gosto amargo na boca.
            E agora estava ali, sozinha, chorando, e a cada lágrima que escapava de seus olhos eram como se sentisse uma punhalada na alma. Deixou que a dor e as lágrimas lhe lavassem, lhe purificassem e lhe apaziguassem, e quando se sentiu reconfortada, levantou-se lentamente e entrou no mar. Lavou o rosto, deixando que o sal das lágrimas se misturasse ao sal da água do mar. Respirou fundo e olhou para o céu e para o sol, que lhe sorria lá do alto. Abriu os braços e deixou que o calor do sol aquecesse o frio que sentia na alma e assim realizasse o resgate de sua vontade de voltar a sorrir.
             Saiu do mar com o corpo e alma lavada. Seu corpo ainda estava dolorido, sim, mas na alma o processo de cicatrização daquela ferida já tinha sido iniciado, e em muito breve tudo que ficaria seriam meras lembranças e uma pequena marca, como de uma ferida que criou uma casca que caiu e que tal como acontece com os machucados de uma criança, logo foi esquecida.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Retrospectiva 2014 de leitura

Nunca um ano foi tão recheado de leituras de tão variados gêneros quanto o foi o de 2014 para mim. Para constatar este fato, bastou eu dar uma olhada para os livros que iniciei e o com qual finalizei o meu ano de leitura: Oblomóv, de Ivan Goncharov (como virou tradição minha, abrindo o ano de leituras com um grande clássico da literatura mundial) e Calvin & Haroldo – criaturas bizarras de outro planeta!, respectivamente. Entre um e outro, li clássicos da literatura mundial, best-sellers, quadrinhos, livros de filosofia, de crítica literária, de teoria literária, de história da literatura, etc. Li russos, brasileiros, japoneses, norte-americanos, gregos, contemporâneos e clássicos. Com uns, eu me identifiquei enormemente, devorando-os, saboreando palavra por palavra, mas também de decepcionei. Descobri obras extraordinárias, que eu me pergunto até hoje como pude não tê-las lido antes, e outras eu poderia ter ficado sem ler...
            Foram, no total, neste ano de 2014, 46 livros lidos, sendo que destes, um foi uma releitura, As Vinhas da Ira, de John Steinbeck, o meu livro e meu autor favorito da literatura norte-americana. Desfrutei e aprendi muito lendo filosofia, crítica e teoria literária, e dos livros desses gêneros, o que mais mexeu comigo, o que me foi mais impactante foi o Sobre o ofício do escritor, de Schopenhauer. Livro curtinho, que “dá para ser lido de um fôlego só”, como se diz popularmente, mas trata-se de uma obra tão crítica, tão pesada, tão edificante e reflexiva, que eu passei semanas para finalizá-lo. Outro gênero de leitura que muito contribuiu para a minha formação, que muito me fez refletir, e que de quebra me arrancou gargalhadas, foram os quadrinhos, com destaque para os três de Calvin & Haroldo que li ao longo do ano, mas não foram só quadrinhos engraçados e lúdicos que li neste ano. Li também a versão adaptada de Guerra e Paz, do qual não gostei nenhum pouco (está uma adaptação muito fraca, completamente superficial), e Sandman – os caçadores de sonhos, do Neil Gaiman, que é uma das mais delicadas e belas histórias de amor que já li em minha vida.
            Ponto negativo está no fato de eu nunca ter finalizado um ano me sentindo tão frustrado. Não falo da quantidade de livros lidos (um pouco abaixo dos anos anteriores), mas dos livros que não consegui ler por motivos diversos (entre eles, o maior é a falta de tempo). Foram tantos os livros não lidos que ficaria impossível listar todos, mas não poderia deixar de citar O ladrão do tempo, do John Boyne, os dois últimos da Jody Picoult, O Homem que amava os cachorros (que prometi para mim mesmo, e para a minha amiga Nicolle, que seria o segundo livro a ser lido em 2015), No silêncio entre dois suspiros, Doutor Sono, os novos livros de Amos Oz e de Ian McEwan, etc., etc. e etc.
            Outro fator que me chamou a atenção (que não sei se é algo positivo ou não) é o fato de, em 2014, eu não ter tido uma “unanimidade” de melhor livro do ano. Se em 2013 eu tive O Arroz de Palma a receber os louros de “melhor livro”, em 2014 eu não tive, em minhas leituras, uma obra que tenha se destacado tanto assim. Li o segundo livro do autor, Doce Gabito, que é MUITO BOM, em busca daquele que seria “o livro do ano”, e o livro é, na minha opinião, mais maduro do que o anterior, que tem um andamento narrativo mais bem definido, com mais personagens mais bem desenvolvidos, mas que não é tão surpreendente quanto O Arroz... e acabou ficando o Gabito entre os cinco melhores livros de 2014, mas o pódio ficou com O Melhor do Teatro Grego, publicação da editora Jorge Zahar que consiste numa reunião de quatro peças significativas do teatro grego; Marcoré, de Antônio Olavo Pereira, obra de literatura nacional extraordinária; e Sobre o ofício do escritor, de Schopenhauer. Para fechar o meu “top 5” de 2014, ocupou o lugar o livro O último dia de um condenado, de Victor Hugo. Merecem menção os livros Misery, de Stephen King, que é fodástico (fico me perguntando como pode um escritor prender e deixar o leitor tão tenso numa história que contém basicamente DOIS personagens e UM cenário!), o A Estrela de Prata, de Jeannette Walls, os dois de Sue Monk Kidd e o magnificamente bem escrito, reflexivo, poético e melancólico Quarto de Hotel, de meu grande amigo Adauto Carvalho.
            Li alguns livros bons, mas dos quais esperava bem mais, com destaque para Os Demônios, de Dostoievski, que, dos romances do escritor russo que eu li, foi o menos empolgante e intenso e Vinte mil léguas Submarinas, que é muito extenso e cansativo, repleto de detalhes e descrições que atestam a genialidade e conhecimento técnico do escritor, mas que, como foi o caso de excesso, acabou “travando a leitura”. Outros livros, de outros gêneros, me fizeram “salivar” quando li as sinopses e comentários, mas que me deixaram um tanto quanto decepcionados quando (e enquanto) os li, como O Fio da vida, que tem um início esplendoroso, mas que se perde um pouco, que passa a “desempolgar” da  metade para o fim, O trem dos órfãos, que tem duas personagens interessantes, com boas histórias, mas que poderiam ter se cruzado (as histórias), o que acaba não acontecendo, o Constelação de fenômenos vitais, e o Flor Negra, que tem um pano de fundo histórico interessante, mas como literatura, deixou um pouco a desejar. Mas estas “decepções” fazem parte de nossa vida como leitores. Por vezes o problema é o momento, que não é propício para a leitura daquele livro em específico, e em outras ocasiões é a expectativa que depositamos naquele livro...
            Este ano, se eu fosse defini-lo em uma palavra, eu o faria com a palavra Grego. Isso mesmo: grego! Foi 2014 o ano da leitura dos gregos para mim, como outros anos foram o ano dos russos, o ano dos franceses, o ano dos brasileiros. Li, além das tragédias (de Ésquilo, Sófocles, Eurípides e Aristófanes), o Fábulas, de Esopo, e o Poética, de Aristófanes, livros que me fizeram perceber ainda mais o quão somos filhos e herdeiros dos gregos, o quanto aquela civilização lançou bases para a nossa filosofia, cultura, literatura e pensamento e o quanto continuam atuais.
            Foi, também, 2014, um ano em dediquei um especial espaço de meu tempo para as leitura de ordem técnica e acadêmica. Além dos já mencionados Schopenhauer e Aristóteles, li Bakhtin, Auerbach, Alfredo Bosi, Tânia Carvalhal e Douglas Tufano.

            O que me aguarda o ano de leitura de 2015 eu nada além do fato de se iniciar no dia 1º de janeiro, com a leitura de um grande clássico da literatura mundial, um russo, pra variar, e se encerrará em 31 de dezembro, com algum livro ou autor especial (para “fechar o ano com chave de ouro”). Mas de uma coisa eu tenho certeza: independente de quantos forem os livros, serão edificantes e eu os saborearei palavra por palavra de suas histórias, me identificarei com seus personagens e perderei noites de sono (seja dormindo mais tarde ou acordando mais cedo) de tão instigado que ficarei com as histórias.