sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Balanço Anual de Leitura


Eu sou o tipo de pessoa que ter escrito na testa a palavra “metódico”. Sou, sempre fui e sempre vou ser um metódico e tradicionalista. Sou do tipo que segue cronogramas de leitura, que traça metas e que, embora por vezes se desvie em alguns momentos, acaba, de uma forma ou de outra, mais cedo ou mais tarde, voltando ao “plano original”. Nas minhas leituras, eu sou mais metódico ainda. Tenho “tradições” de reler pelo menos um livro por ano, iniciar o ano lendo um grande livro e terminá-lo também me deliciando com a leitura de uma grande obra literária.
            Esse ano, de 2011, foi bom, sem dúvida, mas eu confesso já ter tido anos bem melhores sob diversos aspectos, tanto no número de livros lidos quanto nas grandes surpresas encontradas ao longo do ano. Mas mesmo 2011 não tendo sido tão marcante, por assim dizer, do que anos anteriores, mesmo assim, foi muito bom...
            Iniciei o ano de leitura, lendo, logo de cara, para começar o ano bem, três grandes livros: Ratos e Homens, de John Steinbeck, Contos de Belkin, de Pushkin e A Aldeia de Stiepanchikov e seus habitantes, de Dostoievski. Li, como sempre, Tolstoi e muitos outros clássicos da literatura russa e mundial, mas também li excelentes “Best-sellers” e confesso ter me surpreendido enormemente, que eu julgava tão despretensiosos. É bom sempre se surpreender com as leituras, o que prova (comprova) que com a literatura a gente só tem a se surpreender, por mais que a gente leia e conheça de livros. Dos clássicos, por mais “antigos” que sejam, por mais que já se conheça a respeito, sempre nos surpreendem, e sempre há algum grande livro que não sabemos como nem por que nunca prestamos atenção, o que foi o caso, para mim, em 2011, de O Emblema Vermelho da Coragem, de Stephen Crane, um livro que até hoje está ecoando em minha cabeça e que está na minha lista de releituras para os próximos anos. Li e me surpreendi (sempre) com Tolstoi e me deliciei com as leituras de Steinbeck, principalmente com o primeiro livro do ano, que até agora está me angustia, por mais que eu já tenha “fechado o livro” há tantos meses. A minha releitura ficou por conta de Odisseia, de Homero, que eu tinha lido há tantos anos e já tinha esquecido como o livro é rico, escrito de uma forma magistral e tão envolvente, verdadeiramente hipnótica. Mas mesmo nas leituras de clássicos, nem tudo são flores, como se diz popularmente. Há clássicos de que se fala tanto, que tantos comentam, fala-se tão bem, e, quando os lemos, ficamos com aquela impressão de: “será que li o livro certo?”, “será que era esse o livro de que todos falavam tanto e tão bem?”. E ficamos com o gosto de certa frustração da leitura. Esse ano, a frustração literária foi o Jakob Von Gunten: um diário, de Robert Walser. O livro é bem escrito, sem dúvida, mas não acrescentou nada demais nas minhas leituras (é duro dizer isso, acreditem!) ao longo do ano.
            No que se refere aos “Best-sellers”, li alguns que me deixaram complexamente extasiado. Li bons policiais, suspenses psicológicos, romances e dramas. O Eu Mato, de Giorgio Faletti foi, talvez, o que mais me pegou desprevenido, pois eu jamais será capaz de imaginar quem estava por trás de todo aquele mistério, mas o As duas menininhas de azul, de Mary Higgins Clark também merece destaque, pelo ritmo frenético, pela magnífica “arquitetura da história” e pela forma como toda a trama é conduzida. E por falar em “arquitetura da história”, o que posso falar de Patrícia Highsmith? Simplesmente nada! Li dois livros dela, e adorei o primeiro, Este Doce Mal. Um suspense psicológico desses de tirar o fôlego e de enlouquecer o leitor com as loucuras do personagem. Romances, li alguns muito bons, e queimei a língua, felizmente, com um: o Água para elefantes. Conhecia muito superficialmente o livro e quando ouvi falar que ia ser adaptado para o cinema, pensei que se tratava apenas de mais um Best-Seller agradável, escrito só e unicamente para vender, sem grande valor literário. Mas logo nas primeiras páginas vi que a minha opinião estava equivocada, completamente enganada. O livro é muito bom, rico, agradável, envolvente, etc, etc e etc. Mas, em 2011, as gratas surpresas da literatura Best-Seller ficaram por conta dos livros A Guardiã da minha irmã, Quarto e Aqueles que nos salvaram, de Jodi Picoult, Emma Donoghue e Jenna Blum, respectivamente. São dramas fantásticos, livros de uma força surpreendente, de uma carga emocional ímpar, de “fator psicológico” capaz de mexer com o humano-leitor. E o que falar de Marina, de Carlos Ruiz Zafón? Um livro simplesmente magnífico, sob todas as óticas.
            Dos grandes livros, não clássicos (ainda), e que não podem ser colocados no mesmo patamar dos Best-Sellers, merecem destaque o Sombras Marcadas, de Kamila Shamsie, O 11º Mandamento, de Abraham Verghese, Nêmesis,de Philip Roth e O Silêncio, de Shusaku Endo, se bem que estes dois são verdadeiros clássicos modernos. O último, inclusive, é um livro que ouso colocar no nível de “perturbador” e “excessivamente forte”.
            Nas minhas leituras de 2011, óbvio, não faltaram grandes livros de literatura brasileira. Érico Veríssimo é lugar cativo nas minhas leituras anuais e já está entre as minhas “tradições”. Li Luis Fernando Veríssimo e Ronaldo Correia de Britto, mas talvez o brasileiro que mais “me pegou desprevenido” tenha sido o Rubem Fonseca. Sempre ouvi falar muito bem dele, mas nunca tinha parado para ler nada. Resolvi me render e ler um de seus livros, o Axilas e outras histórias indecorosas. É um livro, são histórias que linhas muito tênues separam um lado do outro: ácido, irônico e sarcástico do ridículo, o intelectual do banal, o “Cult” do “tosco”, e por aí vai...
            Para finalizar o ano, um grande livro era necessário, e, entre tantas opções que tinha à minha frente, escolhi o 1984, de George Orwell, um livro que estava na minha “lista” há um bom tempo, mas que, por motivos diversos, eu nunca pegava para ler.
Enfim, 2011, no fim das contas, foi um ano muito bom no que se refere às leituras. Foram no total 46 livros lidos e apenas 1 abandonado.
Expectativas para 2012? Muitas, muitas e muitas. Espero ser muito surpreendido, “queimar minha língua” e descobrir tesouros-literários escondidos entre as estantes das livrarias, ler aquele livro que jaz esquecido, que ninguém conhece ou ouviu falar. Reler grandes clássicos e descobrir outros tantos. Enfim, ter um 2012 repleto de livros, livros e mais livros.

sábado, 24 de dezembro de 2011

A Magia do Natal

O natal, para mim, perdeu a beleza, a magia, o significado, quando eu tinha por volta dos meus sete anos, quando perdi a fantasia ao descobrir a verdade sobre Papai Noel. Descobrir a verdade, naquela noite, foi como ter recebido um duro golpe. Logo eu, que escrevia com tanta emoção as cartas, fazendo os meus pedidos, sendo tão sincero ao relatar as minhas “faltas”, cheio de expectativas para ganhar aquilo que desejava. Tudo bem que nem sempre eu ganhava aquilo que pedia, mas eu me divertia do mesmo jeito. O que valia mesmo era a ideia, a fantasia de ter sido lembrado por Papai Noel, e só em ter recebido um presente significava que a minha carta tinha sido lida e compreendida pelo Bom Velhinho.
            A arte de escrever cartas nessa época do natal era sagrada para mim. Eu ficava semanas a fio pensando no que ia falar, nas palavras que iria utilizar para convencer que tinha sido um bom menino, apesar de minhas notas na escola não serem das melhores, de eu não ter estudado como deveria, de não ter tomado banho direito antes de dormir e uma poção de outras pequenas falhas (coisas de menino). Usava (e abusava) de todos os meus argumentos para colocar na balança o que tinha feito de bom e de ruim, a fim de mostrar por que merecia tal presente. No dia 24, quando abria meu presente, caso ganhasse o que havia pedido, sabia que tinha sido um Bom Menino, e quando não ganhava, tinha certeza (no fundo eu já sabia) que realmente não merecia tal brinquedo.
            A Magia do Natal, para mim, estava, de certa forma, ligada às cartas, e desde que a magia foi quebrada, que nunca mais escrevi para Papai Noel, deixei de ver o natal como a melhor data do ano. Desde então passei a desgostar do natal. Continuei, sim, óbvio, ainda menino, a pedir presentes, dessa vez não em forma de cartas, a Papai Noel, mas sim à minha mãe e meu pai, e se ganhava o que queria, ficava feliz, e em caso negativo, triste, mas não era a mesma felicidade de antes nem a mesma tristeza de antes.
            Os natais foram passando, eu fui crescendo e a cada novo final de ano eu ficava mais e mais distante do “espírito de natal”, a ponto de, quando adolescente, deixar até de ir às festas organizadas por alguém da família. Ali eu começava, definitivamente, a sepultar o natal.
            Adulto, comecei a me tornar ácido nesse período de festas de final de ano (mais do que normalmente já sou) e quando, já em novembro, começo a escutar aquela música infernal de Simone, “Então, é natal...”, meu humor fica péssimo, a ponto de eu passar a desgostar ainda mais da época e resolver voltar alguns anos, ao tempo em que eu acreditava na fantasia do Papai Noel e lhe escrever uma carta. A minha carta desse ano, escrita com toda a sinceridade e fé do menino que fui, ficaria assim:

Querido Papai Noel,

sei que não tenho sido um bom menino nos últimos anos e que não tenho mais lhe escrito pedindo presentes, e por isso mesmo venho, através desta carta, lhe pedir, exigir, todos os atrasados. Não se preocupe, pois o que peço (exijo) não se trata de algo mirabolante ou muito caro, como uma Ferrari ou uma cobertura de frente para o mar, no eixo Tirol / Petropolis, na Avenida Getúlio Vargas, mas sim de algo muito simples: gostaria que o senhor escrevesse a letra de uma música para substituir a de Simone nessa época do ano, pois eu não a aguento mais. Eu até pediria que o senhor a fizesse ter um câncer na garganta que a fizesse perder a voz ou coisa do tipo, só para não termos que ouvi-la nunca mais, mas se isso acontecesse seria bem pior, pois teríamos passando na televisão, todo ano, um especial dela, que nos infernizaria nessa época do ano, e, além do mais, sei que o senhor seria incapaz de fazer um mal que seja a alguém, embora eu saiba que o senhor nem sempre dá os presentes que as crianças pedem e, quando está de mau-humor, faz questão de entregar brinquedos trocados. Se não for possível trocar a música, pelo menos troque a intérprete. O que eu gostaria mesmo, Papai Noel, era que o senhor me presenteasse com uma máquina do tempo, para eu voltar uns anos no passado, bem no dia em que descobri a verdade sobre o senhor, pois gostaria de fazer diferente, para que tudo fosse diferente, e eu continuasse a acreditar na Magia e Fantasia do Natal, e continuar a lhe escrever cartas, com a mesma intensidade, paixão e sinceridade, sempre, ano após ano.

PS: sei que a máquina do tempo é difícil de se conseguir, mas a música é algo até relativamente simples, e se o senhor atender a meu pedido (eu bem que mereço, pois fui um bom menino nesse ano), terei restabelecida, sem auxílio de máquina do tempo algum, a Magia do Natal.

Atenciosamente,
Lima Neto

domingo, 11 de dezembro de 2011

Não mais que um momento

Por um momento eu esqueci quem sou. Foi um breve momento, que não durou mais do que um piscar de olhos, foi apenas um breve instante em que me senti e fui realmente livre.
            Senti que podia voar, como um pássaro livre no céu. Não sentia dor, não sentia calor, não sentia frio. Estava livre de qualquer pensamento, de todo e qualquer conceito e preconceito. Foi um momento em que fui apenas livre.
            Em meu longo e breve voo eu vi o mundo, lá embaixo, tão pequeno, tão frágil, com as pessoas tão apressadas em cumprir só e unicamente as suas rotinas, em viver seu dia igual ao anterior, que será igual ao que se seguirá. Em meu voo, não havia tempo algum: não havia passado, presente e futuro, ontem, hoje e amanhã, havia apenas o momento, que é o que basta, que é o que a vida é: apenas um breve longo momento, que dura o mesmo que um piscar de olhos, que um mergulho.
            Em meu voo, lá do alto, em senti o vento acariciando o meu rosto, me embalando em seus braços, me levando e me trazendo. Abri a boca e senti seu gosto, uma mistura saborosa de tudo e de nada. Ouvi as palavras que as pessoas jogavam e vivi seus pensamentos, que as pessoas deixavam vagar. Fui todos sem deixar de ser apenas um.
            Deixei-me vagar com os braços abertos, livre e me deixei levar até uma nuvem, que me chamava, que me recebia de braços abertos. Abracei e fui abraçado pela nuvem, e nesse momento senti que acordava. Mas eu não queria voltar, não queria voltar a me sentir preso, não queria voltar a ser eu. A nuvem me abraçou com força, não querendo me deixar partir, pois fui eu o único que lhe fez companhia, por um breve e único momento. A realidade, implacável, me puxava com força, forçando-me a voltar, e eu tive que me deixar levar, como um condenado a receber ordens de seu carrasco, dócil, impotente...
            De volta ao chão, à rotina, ao tempo, abri os olhos e olhei para cima e vi, lá longe, no alto, a nuvem. Ela queria descer, vir até mim, me abraçar; e eu queria voar, subir, ir até ela, abraçá-la, sentir novamente o seu toque suave, a sua pele macia como a mais pura seda. Mas não podíamos mais estar um nos braços do outro. Fechei os olhos, triste, e chorei.
            Tomado por aquela subida tristeza, chorando, senti, em meu rosto, bater as primeiras gotas que caíam do céu. Abri os olhos e percebi que chovia. Olhei para o alto e vi que a nuvem chorava, e suas lágrimas se misturavam às minhas, passando a ser uma só lágrima, que escorria pelo meu rosto e ia cair no chão, abraçadas, sendo uma só. Fui, novamente, não mais que um momento, um só, livre.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Feriadão


Ele já vinha planejando aquilo há meses e à medida que o dia se aproximava, ficava mais e mais ansioso, e sua família o estranhando. Sua esposa conhecia aquele olhar, aquele jeito de menino traquino quando está bolando algum plano mirabolante e temia a nova ideia do marido. Mesmo quando, certa vez, o pressionou, dizendo que não iria preparar a feijoada de domingo caso ele não dissesse o que estava escondendo, ele nada falou. Apenas uma dolorida e solitária lágrima brotou de seu olho e rolou por sua face, e um leve tremor de seu queixo denunciou o seu desapontamento; depois deu de ombros e disse que não estava a fim de feijoada naquele final de semana mesmo...
            Ela lembrava bem da última vez que ele ficou meses planejando algo sem falar a ninguém e de repente apareceu em casa tendo comprado um casal de coelhos para as crianças. Os coelhos logo começaram a se multiplicar e em pouco tempo tinham tantos coelhos em casa que eles tiveram que tomar atitudes drásticas. Sua filha mais velha, devido ao trauma pelo excesso de coelhos em casa, dentro de seu quarto e até em cima de sua cama, até hoje, já uma adolescente, se recusava a assistir qualquer desenho do Pernalonga ou a qualquer desenho que tenha um coelho como personagem. Também lhe veio a mente a vez em que ele ficou arquitetando durante semanas, sozinho, um plano, e de uma hora pra outra apareceu em casa dirigindo um trailer, dizendo que a partir daquele dia poderiam morar onde bem entendessem, na casa, na montanha, perto de um rio. As crianças até gostaram da ideia nos primeiros dias, mas quando perceberam o quão era apertado dentro do trailer, que a antena da televisão estava constantemente mal-sintonizada e não podiam assistir seus desenhos animados, logo começaram a reclamar e aquela mudança de ares que ele tinha planejado durou apenas três dias. Tiveram uma longa discussão com o ex-dono do trailer, para ele aceitá-lo de volta. Alegaram que tinha acontecido um mal-entendido e chegaram a alegar insanidade do comprador. Finalmente, o homem aceitou receber o trailer de volta, mas não devolveu o valor pelo qual o tinha vendido, alegando desvalorização, uma compensação financeira pelo negócio mal-feito e que a “casa sobre rodas” estava usada e mal-conservada.
            E agora, mais uma vez, o homem estava com aquele olhar senil, de quem está planejando algo grandioso que provavelmente não vai dar certo.
            - Jorge, o que você está planejando dessa vez? – perguntou Marília, certa noite, não aguentando mais aquela expectativa e os segredos do marido.
            - Eu? Eu não estou planejando nada, amor – respondia dele, e dava seu sorriso maroto.
            Os filhos também haviam percebido que o pai estava planejando algo, que estava escondendo alguma coisa, e ficaram de olho, tentando descobrir do que se tratava. Lara, a filha mais velha, sentia o sangue gelar só de pensar em coelhos no seu quarto, acasalando até enquanto ela dormia, em cima de seu lençol, e Pedro, o filho do meio, não queria nem pensar em passar três dias morando em um trailer e perder seus programas de televisão favorito. Somente Julia, a caçula, por ser muito novinha na época não se lembrava de nada das últimas e mais catastróficas do pai, estava cheia de boas expectativas.
            O feriadão se aproximava e cada um na casa já fazia seus planos. Lara pretendia ir ao shopping com as amigas e talvez até pegar um cinema, Pedro queria “zerar” o novo jogo de videogame que havia ganhado da avó, Julia queria ir passar o dia na casa da amiga, depois chamar a amiga para passar um dia na sua casa, Marília pretendia levar a família toda para ir almoçar na casa de sua mãe, e Jorge... bem... Jorge tinha planos para toda a família.
            Na quinta-feira à noite, quando todos estavam à mesa, jantando, em que o único som que se ouvia era o da mastigação e dos talheres, Jorge se levantou e pediu que todos fizessem silêncio, pois tinha algo muito importante para dizer. Tinha planejado um final de semana maravilhoso para todos: iriam acampar. Lara parou de mastigar, Pedro deixou cair o garfo, Marília pensou no telefone de um amigo que era psiquiatra, pois agora tinha certeza de que o marido estava louco e precisava ser internado, e somente Julinha ficou feliz e bateu palmas.
            - Isso mesmo: vamos acampar! Estão ouvindo? Vamos acampar. Cada um arrumar a sua mochila colocando só as coisas mais essenciais – pouca roupa Marília e nada de maquiagem, Lara – que amanhã de manhã, logo cedo, começamos a nossa aventura.
            Pedro ainda esboçou uma reclamação, Lara deu um chilique e Marília quase enfarta, mas nada do que fizessem ou falassem poderia demover Jorge daquela ideia, afinal de contas, ele havia planejado tudo tão bem, com tanta antecedência, tendo a absoluta certeza de que aquele seria o melhor final de semana que todos os tempos.
            Na manhã seguinte, antes do sol nascer, todos acordaram – na verdade, quase pularam da cama – quando Jorge, com uma corneta, tocou (ou assoprou, sei lá...) aquela musiquinha do exército, que aparece em desenho animado, que ele vinha ensaiando há tanto tempo especialmente para aquela ocasião. Lara ainda cobriu a cabeça com um travesseiro, Pedro se enrolou ainda mais no lençol e Marília quase tem um piripaque; somente Julia acordou disposta e assim que o pai terminou a música, ela já estava de pé, ao seu lado, com a mochila nas costas.
            Por mais que reclamassem, Jorge estava irredutível, e exigiu que todos se levantassem e colocassem suas bolsas e mochilas na mala do carro. As barracas e o material para acampamento já estava pronto e devidamente organizado no bagageiro do jipe que ele tinha alugado especialmente para a ocasião.
            - E nada de café da manhã. Podemos comer alguma coisa no carro e tomar um café da manhã de verdade quando chegarmos e armarmos o acampamento.
            No trajeto, ninguém reclamou, pois todos estavam com sono demais até para isso. Somente Julinha acompanhava o pai nas cantorias e estava realmente eufórica com a ideia de acampar pela primeira vez na vida.
            Quando chegaram ao local, no meio de um lindo bosque, Jorge pulou do carro, se espreguiçou e fechou os olhos; quando os reabriu, que olhou para trás, percebeu que todos ainda estavam dentro do carro, dormindo – até Julinha não tinha resistido e agora dormia como um anjo.
            - Ei, pessoal, chegamos. Está na hora de armarmos as barracas, organizarmos o nosso acampamento – falava ele, todo eufórico, e vendo que ninguém respondia, resolveu ir chamá-los mais de perto, batendo palmas.
            Quando todos, finalmente, se cansaram de tentar dormir naquela barulheira, saíram do carro. Jorge começou a delegar tarefas. Ele e Pedro armariam as barracas, enquanto Lara e Julia podiam ir procurar água e Marília poderia ficar só olhando.
            Jorge não conseguiu armar nenhuma das barracas sozinho, e Pedro teve que recorrer ao manual, que por sorte havia um no porta-luvas do carro, para salvar a honra dos homens. Lara e Julia demoraram a voltar com a água, pois tinham perdido a trilha na volta,e chegaram trazendo um pouco d’água, mas tão pouca mesmo que mal dava para se fazer o café. Tiveram, então, que recorrer à água mineral, que por sorte Marília tinha se precavido de trazer.
            Na hora de preparar o café, todo mundo se perguntou como ferveriam a água, mas Jorge já tinha planejado tudo: faria uma fogueira com gravetos e acenderia o fogo usando o método tradicional, antigo, como se fosse um veterano em acampamentos, como se tivesse sido até escoteiro quando menino. Tentou durante quase uma hora acender o fogo usando dois gravetos, sem sucesso, e todos já estavam com a barriga roncando de fome, quando Pedro, mesmo vendo toda a empolgação do pai, resolveu cortar o seu barato quando tirou de dentro da mochila uma caixa de fósforo, para alívio de todos e decepção de Jorge, que justo naquela hora, segundo ele, surgia a primeira faísca, e para o fogo pegar era só uma questão de tempo.
            - Tudo bem. Fazer fogo através do método tradicional fica para a próxima vez – disse ele. Já estava cansado, embora não quisesse demonstrar, e estava com muita fome, e não via a hora de tomar um xícara de café bem quente e forte, pois ainda estava com sono.
            No início, todo mundo reclamou muito, principalmente Lara, que estava odiando aquela ideia de estar perdida “no meio do mato”.
            - No meio do mato não, filha. Na natureza – dizia Jorge.
            - No meio do mato, pai... mato... – reclamava, e foi para dentro de sua barraca, falar com as amigas ao celular.
            Pedro reclamava por que não tinha televisão nem videogame, e estava começando a argumentar que seria uma boa ideia voltar para casa para pegar algumas coisas quando ouviu um urro da irmã mais velha.
            - Que droga! Não tem sinal aqui. Estou isolada do mundo, de tudo e de todos – gritava ela, maldizendo a maldita ideia do pai.
            Ele, que já imaginava toda essa resistência e reclamações, só ria por dentro com o seu triunfo.
            E à noite, como iriam fazer para viver sem televisão, sem novela, sem computador, sem MSN? Jorge já tinha pensado em tudo e feito planos para o que fazerem em todas as horas do dia naquele feriadão. Como Marília iria preparar a comida? Não tinham com o que se preocupar: Jorge tinha pensando em tudo e tinha trazido alguns enlatados, poderiam esquentar alguma comida numa fogueira e eles poderiam pescar algum peixe num riacho próximo.
            Tudo, apesar dos pesares, parecia estar se encaminhando bem, embora Jorge não ter conseguido pescar um único peixe, e tiveram que se contentar em almoçar feijão, arroz e carne de conserva, que tiveram que abrir a lata usando uma faca, pois tinham esquecido de trazer um abridor de lata, até que Lara teve vontade de ir ao banheiro.
            - Onde é que tem um banheiro aqui? – perguntou ela.
            - Pode ir ali, atrás daquela moita.
            A filha olhou, incrédula, para a moita, e depois para o pai, em seguida direcionou um olhar suplicando à mãe.
            - É sério isso? Ter que ir fazer xixi atrás de uma moita?
            - Sim. É, filha. Deixe de frescura uma vez na vida e viva de forma simples. As pessoas desde tempos imemoriais acampam e ninguém nunca morreu por ter que ir fazer xixi atrás de uma moita...
            - Mas pai...
            Ela estava com lágrimas nos olhos, mas vendo que realmente não tinha o que fazer, saiu, cabisbaixa, em direção à moita.
            No fim das contas, aquela experiência de “vida ao natural” não estava sendo tão desastrosa. Salvo alguma dificuldade e reclamações, todos estavam, de alguma forma, se divertindo.
            Mas quando a noite chegou, com o pôr do sol... Lara reclamava dos mosquitos, Pedro da falta do que fazer, Julia dos barulhos e do escuro, que estava com medo, e Marília de tudo isso junto, e mais ainda do fato de não ter televisão e estar perdendo um importante capítulo da novela. Jorge, a tudo isso, só dizia para aproveitarem o final de semana, aquela vida boa ao ar livre, a natureza, tudo ao redor, e se esquecerem, por alguns instantes, a vida lá longe, naquele negócio chamado civilização.
            Ficaram a noite em torno da fogueira, um olhando para o outro, sem nada a fazer. Jorge ainda insistiu em assarem marshmellows, que ele achava que seria divertido, afinal de contas, em todo filme que havia uma cena de acampamento, todo mundo fazia isso e parecia fazer parte de uma tradição de acampamento, mas ninguém parecia muito disposto a isso. Livros ninguém tinha trazido, e quando Pedro lembrou que tinha trazido seu “livro eletrônico”, que foi pegá-lo, quando voltou estava com a cara de desapontado, pois estava descarregado e não havia por perto nenhuma tomada que pudesse usar.
            - Então podemos, ao invés de ler histórias, podemos, nós mesmos, criar as nossas! O que acham? Quem começa? – perguntou Jorge, empolgado como sempre. Vendo que ninguém se prontificava, resolveu, ele mesmo começar.
            Depois de contar uma ou duas “historias de trancoso” tão mal-contadas que não surtiram o efeito desejado além de fazerem todos sentirem um súbito sono, cada um se recolheu à sua barraca, mesmo ainda sendo cedo. Pedro era o único que teria uma barraca só pra si, Lara e Julia dividiriam uma e Jorge e Marília, a outra.
            Na manhã seguinte, cada um que reclamava mais do que o outro. Pedro dizia ter dormido em cima de uma pedra, Julia, que o chão era muito duro, Lara, que havia um grilo dentro da barraca, e Marília disso tudo junto. Somente Jorge parecia disposto e empolgado para o “maravilhoso dia que teriam pela frente”.
            Ele havia programado tudo, para viverem um dia inteiro longe de televisão, videogame, internet ou outros apelativos da “moderna vida civilizada”. Podiam explorar o bosque (nas palavras de Lara, “o mato ao redor”), pescar no rio entre outras coisas legais a se fazer quando se está acampando.
            Passaram o dia inteiro sem grandes coisas de que reclamar, e o ponto alto do sábado foi quando naquela manhã Jorge conseguiu, depois de muita luta e paciência, fisgar um peixe, com o qual teve que travar uma luta épica, mas que, no fim das contas, se mostrou tão pequeno que mal dava para uma pessoa comer num almoço, e tiveram que se contentar em comer salsichas.
            Jorge viu que apesar de toda a resistência no início, da desconfiança e das reclamações, a família estava se divertindo a valer. Naquele dia ninguém falou em televisão, videogame, celular ou computador.
            À noite, dessa vez, Jorge conseguiu contar uma história sem que os filhos e a esposa ficassem bocejando o tempo todo. Assaram marshmellows e nem se incomodaram tanto assim com o barulho dos grilos e em terem que ir fazer xixi atrás da moita.
            Na manhã seguinte, apesar das reclamações do frio, das pedras, do chão duro e dos grilos, todos pareciam bem dispostos a passarem um divertido dia em família.
            Almoçaram carne de conserva, pois, mais uma vez, não conseguiram pescar nenhum peixe, e estavam descansando à sombra de uma árvore quando Jorge, subitamente, se deu conta de algo muito importante. Levantou-se de um salto e pediu pressa para que todos arrumassem suas coisas, pois precisavam voltar para casa. Todos reclamaram, pois justo agora que estavam começando a curtir o final de semana tinham que voltar para a civilização. E por quê? O pai estava afobado demais para explicar o motivo desse retorno súbito.
            Desarmaram as barracas, jogaram as mochilas no porta-malas do jipe e seguiram de volta a casa, de volta à civilização.
            Chegando, Jorge estacionou o carro na frente da garagem e correu para dentro de casa. Enquanto todos pegavam as mochilas e guardavam as barracas, ele pegava o controle remoto e ligava a televisão. Quando Marília entrou em casa, que o viu sentado no sofá, já tendo pegado uma cerveja, assistindo ao jogo, final de campeonato, deu de ombros, afinal de contas, seu marido era, definitivamente, um caso perdido, que não conseguia viver um único domingo sem futebol, longe da televisão, livre da civilização.