domingo, 30 de setembro de 2012

As almas dos personagens

Era uma noite escura em que a lua mal aparecia no céu, encoberta por espessas nuvens de chuva. Mas nenhuma gota d’água caía do céu, como se todo o ambiente estivesse expectante por algo que estava prestes a acontecer. Soprava um vento frio e cortante e até as luzes dos postes pareciam tremer de frio, lançando sobre a rua uma luz mortiça que pouco iluminava. Em toda a rua pairava uma névoa fina e de frente a uma coisa esta parecia se adensar.
            Um homem não percebia isso. Estava dormindo um sono pesado após uma noite estafante em que havia sido convidado para dar uma palestra sobre seus livros, em seguida tinha sido submetido a uma noite de autógrafos. Era um escritor de Best-Sellers, com livros publicados em diversos países, traduzidos para várias línguas, apesar das severas críticas que recebia, por seu estilo trágico, dramático, de histórias fortes e tão marcantes. E uma de suas maiores características era o pouco apreço que parecia ter por seus personagens, pois ele sempre os fazia morrer no momento crucial das histórias, como um ponto máximo de cada livro. E naquela noite tivera que responder à muitas perguntas sobre essa sórdida marca de sua histórias. Construía personagens tão belos, tão vivos, tão marcantes que pareciam sair das páginas dos livros e aparecer ali, bem ao lado do leitor, contando a história para este, sussurrando palavras em seu ouvido. No entanto, por mais vida que tivesse esses personagens, o escritor sempre acabava encontrando uma forma de ceifar suas almas.
            O homem dormia o sono dos justos e não sonhava, quando foi acordado por um barulho vindo do andar debaixo de sua casa. Levantou-se assustado e lembrou-se de que estava só em casa. Sua esposa tinha viajado e seus filhos foram junto. Ficou com os ouvidos atentos, procurando escutar qualquer novo som vindo de sua casa. Como não escutou nada, tornou a deitar a cabeça no travesseiro e a se enfiar debaixo dos lençóis. Quando estava pegando no sono, escutou outro barulho, dessa vez mais alto, vindo da frente de sua casa, do lado de fora. O homem então, assustado, levantou-se e foi até a janela. Afastou um pouco as cortinas e ficou a olhar para o lado de fora, para ver o que tinha provocado aquele barulho. Demorou um pouco até conseguir ver alguma coisa, pois a neblina era muito densa a luz dos postes no meio da rua pouco ajudava. Mas pouco a pouco foi distinguindo uma forma parada bem a frente dos portões. Era uma pessoa, com certeza, e estava parada, e fazia questão de se mostrar. O homem ficou assustando, imaginando tratar-se de um assalto.
            Mas era estranho, pois a pessoa do lado de fora não se mexia e parecia olhar fixamente para a janela, para ele, o escritor, que estava dentro de casa. O olhar dos dois se cruzou, e o escritor sentiu um estranho frio tomar seu corpo. Era como se já conhecesse aquele olhar. O escritor, com medo, afastou as cortinas e foi até o telefone, para ligar para a polícia. Mas o telefone estava mudo e seu celular não funcionava. Sentiu, já, o suor brotar em sua face. Voltou à janela, afastou as cortinas, mas o estranho não estava mais lá. “Melhor. Deve ter ido embora”, pensou. E já voltava para cama quando escutou o barulho da porta, como se alguém estivesse querendo entrar. Foi novamente à janela e olhou para fora, imaginando que ia encontrar algum conhecido, sua esposa e seus filhos, provavelmente, que tinham voltado de viagem mais cedo e tinham se esquecido de avisar, e não encontravam as chaves de casa. Olhou para a garagem, primeiramente, mas não via carro algum, e quando olhou para a porta, de onde provinha o barulho, não viu quem esperava. Havia uma estranha, parada à porta, mas não tentava abri-la. Ela olhava para cima, para a janela, olhando diretamente para ele, para seus olhos.
            O homem, sabendo que agora tratavam-se de estranhos que rondavam sua casa, foi tomado de um desespero, sem saber como reagir, se descia ou se ficava em seu quarto, trancado. Seus telefones não funcionavam e ele pensou em abrir a janela e gritar, chamando por algum vizinho, pedindo ajuda. Mas achou pouco provável que alguém escutasse àquela hora da madrugada.
            Caminhava de um lado para outro no quarto, passava a mão no rosto, enxugando o suor, pensando no que fazer, quando escutou outro barulho, dessa vez da porta de sua casa sendo aberta.
            “Eles entraram”, pensou o homem. O tempo ruge nesses momentos, e uma descarga de adrenalina pulsa em nossas veias. Não sabemos o que fazer e sentimos o medo tomar conta de todo o nosso corpo.
            Olhava de um lado para outro, sem saber o que fazer, quando escutou o barulho mais próximo, dessa vez de dentro de seu quarto. Seu susto foi tamanho que caiu de costas na cama. O barulho tinha vindo do seu banheiro, cuja porta estava fechada. Ele, muito lentamente, foi até lá, colocou a orelha encostada à porta para escutar alguma coisa, e não ouvindo nada, colocou a mão na fechadura e a girou lentamente. Com a porta aberta, olhou para dentro, mas não encontrou nada, nem ninguém.
            “Estou ficando louco, só pode”, disse ele consigo próprio, quando escutou algo próximo, às suas costas, e ao se virar bruscamente, viu, num canto do quarto, bem próximo ao seu guarda-roupa, no canto mais escuto, um homem. Como ele tinha entrado ali, o escritor não sabia, o que tinha certeza era que tinha alguém bem ali, a poucos metros dele.
            - Quem é você? O que quer? – perguntou ele, com a voz alterada pelo medo, quase gritando.
            O estranho ficou parado onde estava, calado, e a única coisa que o homem conseguiu ver foi um sutil sorriso. Era um sorriso triste.
            O homem então correu, abriu a porta de seu quarto e foi para o corredor, imaginando-se à salvo ali.
            Escutava barulho de passos vindos de todos os lados, dentro de seu quarto, do quarto de seus filhos e do final daquele corredor, do lado oposto de onde ele estava. Apurou bem ouvidos e aguçou os olhos e viu bem ali, à sua frente, aquele mesmo homem que tinha visto do lado de fora, a lhe dirigir aquele olhar tão penetrante e cheio de tristeza.
            - Quem é você? – gritou o homem, fora de si. O estranho nada respondeu, contentando-se a fita-lo com aqueles olhos tão cheios de tristeza, com uma única e solitária lágrima escapando-lhe do olho direito e escorrendo por sua face.
            Com o coração batendo acelerado, forte em seu peito, o homem reuniu as forças e a coragem que ainda lhe restavam, e correu até a escada. Desceu às pressas, pulando os degraus e quando chegou ao último degrau olhou para cima e direção aonde o estranho se encontrava, mas não encontrou ninguém ali.
            Respirando com dificuldade, ele olhava de um lado para outro, procurando por sinais de invasão por onde aquelas pessoas tinham entrada. Mas tudo parecia estar perfeitamente em ordens. Foi até a cozinha, onde poderia pegar algo com que se proteger, como uma faca. Abriu gavetas, mas, como é comum de acontecer nessas situações de pânico, ele nada encontrou. Abria as gavetas, remexia-as, mas não encontrava o que tanto procurava, quando escutou o choro de uma pessoa, de uma criança, vindo do canto, bem próximo a porta. Aproximou-se pisando com a ponta dos pés para ver do que se tratava e viu, quase ao alcance de suas mãos, uma menininha, toda encolhida, naquele canto escuro, chorando. Tinha os cabelos completamente despenteados e o rosto escondido pelas mãos. Não era um choro alto, mas seus soluços cortavam o coração, como se quem tivesse acabado de perder algo importante. O homem se aproximou e, embora tendo muito medo, tocou-a no ombro.
            - Ei, menina, quem é você e o que faz aqui?
            A menina mal se mexia. Seu choro ia se tornando cada vez mais alto.
            “O que é isso, meu Deus?!”, questionou e exclamou o homem.
            Começou a chover. Chovia tanto e o vento era tão forte que o homem teve a impressão de que sua casa logo seria arrastada. Com o clarão de um relâmpago, ele pôde distinguir as formas da menina, que estava à sua frente, e imaginou reconhecê-la. Ela, no exato momento em que ela a fitava, parou de chorar e levantou o rosto, banhado de lágrimas, para se deixar ver. O escritor agora a reconhecia, e teve tanto medo que saiu tropeçando, correndo, rastejando, para ficar longe daquela menina. Quando chegou a sala, viu que as janelas tinham sido abertas, assim como a porta. Nenhuma das luzes estava acesa, mas relampejava tanto do lado de fora que elas não se faziam necessárias.
            O homem olhava de um lado para o outro, sem saber para onde fugir, quando ouviu a porta bater, sendo fechada. Tomou mais um grande susto. Foi até lá e tentou abri-la, mas ela estava como que fechada por fora. As janelas batiam e as cortinas esvoaçavam, devido à força do vento.
            O coração daquele homem parecia prestes a explodir, quando escutou o barulho vindo lá de cima. Tinha medo, mas olhou para a escada e viu uma pessoa lá no alto, que olhava fixamente para ele. Olhava dentro de seus olhos.
            Passos às suas costas, e quando ele se virou, viu mais duas pessoas, paradas à porta da cozinha, outra à sua direita e mais uma à esquerda. Para todos os lados que olhava ele encontrava algum daquelas almas, daqueles espíritos sem rumo, que tinham ressuscitado para atormentá-lo. Fechou os olhos com força, imaginando que aquilo não passava de sua imaginação, de que quando se torna a abri-lo aqueles espíritos teriam sumido.
            “São só coisas de minha cabeça, pois eles não podem estar aqui, já que nunca existiram”. Quando terminou de falar isso, aos sussurros, abriu os olhos. Mas imaginava ver-se livro de todos aqueles estranhos, e o que encontrou foi muitos outros.
            Nenhum deles se mexia, não esboçavam nenhum gesto. Apenas olhavam aquele que tinha lhes criado, lhes dado a vida, e que tinha ceifado-as de forma tão despropositada. Seus olhares, tão vivos, exprimiam tanta tristeza e acusavam aquele a quem se dirigiam.
            “Eles não podem estar aqui... Eles não podem estar aqui...”, dizia o homem, como em uma oração.
            A chuva começou a cair com mais força e os trovões a ribombarem.
            O coração do homem começou a bater tão depressa e com tanta força que ele começou a ficar tonto.
            - Saiam daqui! SAIAM DAQUI! – gritava ele, e arremessava tudo que estava ao alcance de suas mãos àquelas pessoas. Mas nada as atingia.
            O homem começou a perder o equilíbrio, a ver as coisas rodarem em sua cabeça, até que ficou de joelho. Olhava para aquelas pessoas e pela primeira vez escutou um som saindo daquelas bocas: elas riam. Eram risos tristes, repletos de ironia. O homem começou a cair lentamente e a perder os sentidos.
            A última coisa que seus olhos viram, quando já estava caído no chão, foi que as pessoas estavam ao seu redor, olhando para ele, e algumas esticavam suas mãos para tocá-lo.
            - Não me toquem, não me toquem – disse ele, antes de perder os sentidos.
            Acordou de manhã encharcado de suor, gritando aquele “não me toquem” e o “saiam daqui”. Passou a mão no rosto, para ver se estava realmente acordado.
            “Então tudo não passou de um sonho”, pensou ele, jogando-se novamente na cama, respirando aliviado. Ria, embora não sentisse a menor vontade de rir, pois o sonho lhe parecia tão real.
            Olhou ao redor, para ver se estava tudo em ordem, e não encontrando nada de anormal, levantou-se. Saiu do quarto e viu que todas as janelas e portas de sua casa estavam fechadas. Quando ia voltar ao quarto ouviu o barulho de uma porta sendo aberta. Sentiu um arrepio percorrer seu corpo, e foi ver do que se tratava. Com efeito, a porta da sua biblioteca estava aberta, mas lá ele não encontrou ninguém, apenas todos os seus livros abertos, jogados em cima de sua mesa.

sábado, 22 de setembro de 2012

O Despertar da Primavera


Ela dormia preguiçosa e bela debaixo de seus lençóis, protegendo-se do frio do seu irmão Inverno. Tinha um sono tranquilo, sem qualquer sonho mal lhe perturbando e a longa noite dos sonhos doces que acalentava enquanto dormia.
Seu sono começava a ficar mais e mais leve, como se estivesse prestes a acordar a medida em que Inverno ia perdendo suas forças e suas nuvens de chuva de esvanecendo lentamente no ar.
Ela desperta, mas fica longos minutos com os olhos fechados, ainda tentando conciliar o sono, naquele estado em que não se está plenamente desperta nem se está dormindo. Boceja, e seu hálito impregna o ar com o doce aroma do desabrochar das primeiras rosas. Espreguiça-se, e no movimento de seu belo e delicado corpo os primeiros raios de sol rompem as nuvens que teimam em permanecer no céu, e com tais raios atravessando as últimas gotas d’água que caem com a última leve chuva, forma-se um arco-íris, que anuncia a sua chegada.
Ela abre os olhos e o brilho do seu olhar é como o nascer pleno no sol de uma manhã, que desperta os pássaros. Os pássaros, despertos, voam livres pelo céu, cantando, saldando o novo dia, a nova estação que desperta: a Primavera.
Primavera sorri, tão bela, e se deixa tomar pelo canto dos pássaros, que saldam sua chegada. Ela fala, canta com os pássaros, com sua voz tão baixa e delicada, melodiosa. Os pássaros, então, param, pousam nos galhos finos e ainda úmidos das árvores para ouvi-la cantar, e são tomados por aquele voz, por aquele harmonioso e tão belo canto que inebria a alma.
Ela se levanta e deixa o lençol escorregar por seu corpo e cair no chão e caminha lentamente até a janela em seu passo de quem quase não pisa do chão, de tão delicado que é o seu andar. A cada passo que dá, a cada vez que seu pé roça no chão, surge um imenso jardim repleto de flores multicoloridas. Ela olha para trás e sorri, e seu sorriso, tão lindo, ilumina todo o Mundo. Ela abre a janela e deixa o Sol externo aquecer seu corpo, deixa que o Vento toque, acaricie a sua pele com seus dedos frios que lhe arrepiam o corpo.
Ela abre os braços, abraçando o mundo e sendo abraçada por ele e sorri novamente. Ela desperta plenamente em todo o seu esplendor e desabrocha como a mais bela das estações, como a mais bela Primavera.

domingo, 16 de setembro de 2012

Meu primeiro e único pássaro

Quando menino, eu, como toda criança, adorava animais. Lembro-me do primeiro cachorro que meu pai me deu e disse para eu cuidar dele direitinho, e eu cuidei. Lembro-me também que meu pai, sempre muito original, trazia, vez por outra, outros animais para casa e me dizia sempre “cuide bem dele”, e eu sempre cuidava. Ele trazia uns animais que não são muito comuns para serem criados em casa, como galinhas, patos, perus (meu pai sempre foi meio incomum nesse aspecto). Meu pai, além de animais, ele sempre tentava fazer com que eu aprendesse a cuidar de outras coisas, e sempre tentava cultivar uma pequena horta no quintal de casa, e deixava, sempre, a horta aos meus cuidados.
Sempre, ao acordar, a primeira coisa que fazia era correr ao quintal de casa e cuidar das plantas e animais. Pegava um pequeno regador, desses que toda criança tem, que leva a praia e ia regar a horta, pegava a comida dos animais e ia coloca-la nas suas respectivas vasilhas.
Além da pequena horta de legumes e verduras, também tínhamos em casa uma goiabeira, uma mangueira e, certa vez, meu pai plantou um “pé de acerola”, que, para mim, foi o máximo. Mesmo menino, eu tinha uma série de animais e plantas sob minha responsabilidade.
Certa vez eu percebi que já tinha criado muitos animais diferentes, mas que, curiosamente, nunca havia criado um passarinho. Então, pedi um a meu pai, que ficou, a princípio, meio resistente em me dar um pássaro, mas acabou, como sempre, cedendo aos pedidos de seu filho mais novo.
Quando eu já estava esquecendo a história do passarinho( como todo menino, eu também esquecia muito fácil a rapidamente das coisas), chega meu pai com uma gaiola e, dentro dela, um lindo passarinho: um galo-de-campina. Explodi de alegria ao ver aquele passarinho tão pequeno e belo. Meu pai logo me ensinou as artes de se cuidar de um passarinho, mas ele mesmo tomou sob sua responsabilidade os cuidados, e todos os dias, de manhã, ele pegava a gaiola, a colocava sobre a mesa e limpávamos, trocávamos a água e colocávamos a comida para o galo-de-campina.
Logo o passarinho tornou-se o meu animal favorito. Eu ficava impressionando como algo tão diminuto podia cantar tão alto, ter uma voz tão límpida. Todos os dias, assim que o sol nascia, o passarinho saldava o novo dia com seu canto, em uma ode ao sol, à vida que começava a cada nova manhã.
Um dia meu pai ficou doente, teve que ir ao hospital, e eu não sabia se estava pronto para pegar gaiola, abri-la e cuidar do passarinho. Mas o passarinho parecia estar com tanta sede e fome que eu, menino bem-intencionado, resolvi arriscar: subi numa cadeira, estiquei o máximo que podia os braços e retirei delicadamente a gaiola do local onde ela ficava pendurada. Coloquei-a sobre uma mesa e peguei os depósitos onde estavam guardadas as comidas, preparando-me para, pela primeira vez, cuidar, sozinho, do meu galo-de-campina. Com todo o cuidado do mundo, abri a porta da gaiola e deslizei meu braço até o fundo, onde estavam as vasilhas da água e da comida: peguei-as e tratei de fechar a porta da gaiola o mais rápido que pude, pois não queria que o passarinho fugisse. O passarinho parecia agitado, assustado, e voando de um lado para o outro na gaiola, e quando eu fui colocar de volta sua água e comida, num descuido meu, aproveitou a porta entreaberta e fugiu. Eu ainda tentei fechar a porta e, em minha ingenuidade de menino, correr atrás dele, chamando-o para voltar para “sua casa”, mas ele não me ouviu e voou para uma árvore alta que havia em frente a minha casa. Ali ficou observando o amplo mundo ao seu redor, enquanto eu, com os pés bem plantados no chão, chorava, chamando-o para voltar.
Fiquei o dia inteiro em frente a casa e não fui à escola, só para ficar chamando pelo passarinho, que ficou voando entre uma árvore e outra, ora sumindo de minha vista, ora voltando para bem perto de onde eu estava.
Quando caiu a noite, não pude mais vê-lo, e eu cheguei a conclusão de que ele nunca mais voltaria para dentro daquela gaiola. Não dormi naquela noite, de tão triste que eu estava, e só fui vencido pelo sono quando era alta-madrugada.
Na manhã seguinte, tal não foi a minha surpresa quando acordei com o canto de meu galo-de-campina. Mas seu canto naquela manhã estava diferente: mais alto, mais belo, mais límpido, simplesmente mais feliz. Corri o mais rápido que minhas trôpegas pernas podiam e abri a porta de casa para vê-lo ali, bem perto, num galho bem baixo na árvore, cantando, livre e feliz, saldando um novo dia. Comovido, soube, naquele momento, que pássaros vivem e cantam muito mais felizes quando estão livres e têm todo o céu ao seu dispor. Peguei a gaiola, que continuava sobre a mesa desde o dia anterior, e a guardei num canto onde ela pudesse jazer esquecida, decidido a nunca mais criar um pássaro numa gaiola, mas sim a cria-los, deixando-os soltos para ir e vir onde bem entendessem, para que pudessem cantar todo dia uma ode não só ao sol, ao novo dia, mas também à sua liberdade.

Confissão de um Preguiçoso

Eu sou preguiçoso. Pronto, falei. Na verdade, confesso agora, publicamente, a minha preguiça. Não estou dizendo que estou numa fase preguiçosa, que ando com muita preguiça ultimamente. Não. Eu sou preguiçoso mesmo, e desde sempre.
            Tentando descobrir as origens desse pecado capital que me acomete, formulei várias teorias. Acho que a minha preguiça se deve ao fato de eu ter nascido antes da data marcada, e para compensar essa minha pressa, em momento tão importante, desenvolvi uma preguiça desde pequeno.
            Lembro quando, desde pequeno, à noite, eu fingia dormir de frente à televisão só porque estava com preguiça de andar até meu quarto, me deitar na cama, puxar o cobertor e dormir. Eu, esperto (e preguiçoso) que era, fechava os olhos e esperava que alguém (normalmente meu pai) vinha me pegar no braço e me levar para a cama. Depois que ele me cobria, antes de sair do quarto, eu abria os olhos e pedia para ele apagar a luz, afinal de contas, não adiantava de nada se eu tivesse que me levantar para ir apagar a luz para poder dormir.
            Na escola, era uma dificuldade maior do mundo para eu me levantar logo cedo. Até hoje me pergunto o porquê de eu sempre querer estudar pela manhã, já que tinha tanto dificuldade para me levantar. Acho que era para ter mais tempo para fazer nada o resto do dia, ao chegar da escola, só pode!
            Nunca fui aluno difícil, não. Pelo contrário. Não era dos alunos que mais se destacavam, mas também não era dos piores alunos da sala. Ficava, vez por outra, de recuperação, mas sempre passava. Passava muitas vezes me arrastando, só para ser algo bem eu, para ficar de acordo com a minha preguiça, mas passava, e isso era sempre o que importava no final das contas.
            Sempre ganhava presentes no final do ano, e a minha escolha recaia no Vídeo Game, afinal de contas, jogar Vídeo Game não cansa tanto, e a gente pode jogar sentado no sofá ou mesmo deitado. Jogar futebol no campinho em frente a minha casa? Pra quê, se se tem jogos de futebol para Vídeo Game e estes nem cansam tanto?!
            Na adolescência surgiram dificuldades, pois como eu poderia arranjar uma namorada se não podia, com minha preguiça, sair de casa? Só se na casa da namorada tivesse uma rede bem grande e confortável armada na varanda, me esperando, para quando eu fosse visitá-la. E como nunca encontrei essa namorada-alma-gêmea na adolescência, acabei ficando só!
            Quando fui escolher a faculdade, mais dificuldades. Pensei em escolher algo na área biomédica, para me tornar um especialista em neurologia ou coisa que o valha, para estudar os benéficos efeitos de uma noite bem dormida. Mas acabei mudando de ideia, afinal de contas, estudar o sono deve dar mais preguiça ainda. Escolhi fazer o curso de história. Gostei, sem dúvida, foi muito bom estudar história, mas não resolvi seguir a profissão. Estudar civilizações antigas dava a maior preguiça, principalmente os faraós, que eram mumificados e ficavam na mesma posição, deitados, durante séculos, esperando a “ressurreição”. Ficava imaginando como era entediante esperar durante tanto tempo, sofrendo com a preguiça que corroia todo o corpo, por um dia que nunca chegava. Desisti. Ser professor, não dava. Ficar em pé, falando, o dia inteiro, definitivamente, não era comigo.
            Por essas e outras é que acabei aqui, como estou hoje: escritor e “blogueiro”. Essas atividades não cansam tanto quanto outras, e como blogueiro, vocês já devem ter percebido, eu só atualizo o blog uma vez por semana, por conta da preguiça de ter que ficar sentado de frente ao computador para escrever mais vezes durante a semana. Se pelo menos tivesse um Laptop para poder escrever meus textos na cama ou na rede, eu até atualizaria o blog com maior frequencia, mas como não tenho, fico só em um texto por semana mesmo.
             E já chega de escrever por hoje. Já escrevi meu texto da semana e agora vou descansar durante mais uma semana e pensar no que posso vir a escrever no texto da semana que vem, isso se a preguiça permitir.

domingo, 9 de setembro de 2012

Lágrimas e Chuva, Céu e Homem


Era noite escura lá fora e a chuva caia fina e constante desde o final da tarde. Naquela casa, pela janela, um homem observava os pingos d’água que caiam como lágrimas e, em seu devaneio, se perguntava do por quê de o céu estar chorando. Talvez ele, o céu, assim como aquele homem, estivesse apenas só, e o peso daquela solidão, naquele momento, tivesse extravasado em forma de lágrimas que ele, em sua represa, não conseguira conter. O homem, assim como o céu, chorava, mas suas lágrimas eram como uma chuva que caía em abundância de sua alma.
Céu e homem choravam e choviam juntos em suas dores que os aproximavam. Somente uma fina parede de tijolos os separavam e um telhado impediam que as lágrimas do céu se misturassem à chuva que saia dos olhos do homem.
            Soluções retumbavam no céu e trovões rebentavam com o peito do homem e o faziam estremecer e seus lamentos quebravam o silêncio da noite e sobrepujavam os barulhos de suas lágrimas e chuva que caíam e inundavam seu chão e pés. Gestos loucos o céu fazia, e como raios o homem deixava cair seus braços ao longo do corpo.
            O homem dava passos lentos, afastando-se da janela e indo em direção à porta, que abriu lentamente. O vento frio castigava sua pele, mas o céu sofria, e isso se via pelas suas lágrimas, que caíam não mais finas como uma garoa, mas em abundância como uma tempestade, e o homem foi reconfortá-lo com um abraço.
            O homem abriu os braços e olhou para o alto, deixando que as lágrimas do céu se misturassem à chuva que escapava de seus olhos. Lágrimas e chuva se misturavam e escorriam pelo seu corpo, banhando-o por inteiro, lavando a sua alma.
            Ficaram daquele jeito, abraçados, céu e homem, por longas horas. Deixavam, apenas, que suas tristezas se diluíssem nas lágrimas e na chuva tornando-se uno naquele momento, naquele abraço.
            As horas passavam e a tristeza provocada pela solidão, agora diluída, deixava de ser tão opressora.
            Uma tênue linha no horizonte começou a clarear o firmamento lentamente e o céu olhou naquela direção e viu o sol se abrir num sorriso. Cessaram suas lágrimas e se formou um arco-íris e, ao pé deste, ao longe, o homem viu uma mulher, cujo nascer do sorriso lhe era como o nascer do sol após uma noite de tempestade. Ele correu em sua direção, para abraça-la, assim como céu, que se deixava abraçar e ser tomado por inteiro por aquele sol esplendoroso daquela manhã.

sábado, 1 de setembro de 2012

Um rosto estranho no espelho


Somente quando se olhou no espelho foi que se deu conta de que sequer se lembrava de seu próprio rosto. Aquele que o fitava nos olhos era um desconhecido. Aqueles olhos não eram seus, assim como aqueles lábios que não sorriam. Seu rosto havia se transformado em pedra.
            Buscou em sua memória, mas não conseguiu lembrar como nem quando se tornara pedra, quando se fechara dentro de si mesmo. Talvez tenha sido há muito tempo, quando lhe mandaram jogar aquilo que sentia no lixo, e ele, em sua insensatez, jogou, mas jogou junto todo o resto, tudo o que ele era, livrando-se, assim, não apenas de sua dor, mas também de quem ele era, de quem sempre foi. Ali, talvez, tenha sido o primeiro momento, o primeiro real motivo para ele vir a se fechar em torno de si mesmo, criando aquela carapaça intransponível de pedra que ele fitava agora diante do espelho.
            Tentou se reconhecer, ali, naquela imagem refletida, mas não conseguiu. Além de não se lembrar de seu próprio rosto e não conseguir ver qualquer relação entre si mesmo e o seu reflexo, aquele que o fitava do outro lado do espelho parecia o ser não-humano. Passou a mão no rosto e viu, no reflexo, uma mão dura e áspera tocando aquele rosto que não era o seu. Tentou arranhá-lo com as unhas, mas a sua pele era tão dura que a ponta de seus dedos doeram.
            Como pudera chegar àquele total estado de esquecimento?! Fechou os olhos na tentativa de retroceder no tempo em busca de explicações para tudo aquilo. Lembrou-se vagamente de um cheiro, um aroma doce e viu vagas luzes piscando. Lembrou que, poucos dias depois, quando inspirou fundo em busca daquele reconfortante cheiro e do brilho daquele sorriso, ele não estava mais ali.
            Abriu bem os olhos, entre surpreso e assustado, quando sentiu uma leve rachadura na sua pele de pedra. Passou o dedo sobre a rachadura, a fim de quebrar um pedaço da casca. Viu surgir, pouco a pouco, um pedaço de sua verdadeira pele que ainda existia por baixo da casca de pedra. Uma pele branca, que não tomava sol, que não era aquecida há tempos.
            As lembranças lhe vinham escassas, tão lentamente quanto o tempo que demora uma eternidade para passar. Lembrou-se da imagem de uma flor que vira certa vez brotar num terreno estéreo, uma flor tão bela, tão delicada no meio, no coração daquela terra seca e dura. Foi um longo tempo que aquela flor ficou ali, solitária, até que, não conseguindo mais suportar a aridez do terreno e o peso da solidão, acabou murchando e morrendo.
            Uma solitária lágrima brotou de seu olho e escorreu por sua face. Por onde passava, lascas da casca de pedra iam caindo, até que parte de sua verdadeira face ficou exposta, mas não, ainda, o suficiente para que ainda pudesse se ver como realmente era.
            Veio então, de supetão, uma lembrança recente, de um momento de frio, de muito frio, de uma longa noite de inverno em que estava sozinho, desesperado, desejoso de ver o primeiro raio de sol surgir no horizonte e aquecê-lo, tal como aquece um abraço num momento de solidão. Percebeu que há tempos não sabia o que era o calor do sol, muito menos o de um abraço.
            Agora chorava copiosamente, lembrando-se de tudo, dos reais motivos que o fizeram se tornar aquilo, a vestir e se fechar dentro de si mesmo, daquela pedra. Pouco a pouco, com as lágrimas que escapavam de seus olhos e escorriam por seu rosto, sua verdadeira face ia surgindo, e então ele se lembrou de tudo: de quem era, de tudo por que passara, de todos os pequenos e grandes motivos que o levaram a chegar até ali, naquele estado, transformado e sentindo-se seguro, protegido por uma grossa camada, como uma casca de pedra que recobria todo o seu corpo, mas que na região do peito era mais espessa.
            Todo o seu rosto estava despido da casca de pedra e ele via, finalmente, sua verdadeira e única face. Seu corpo também fora lavado pelas lágrimas e estava inteiramente livre dos muros de pedra que o protegiam e mantinham o mundo afastado dele, que o fazia ficar afastado do mundo. Viu-se de corpo inteiro, transformado não mais em uma pedra, mas em um homem de carne e osso. Percebeu, no entanto, que nem todo o seu corpo ficara livre da couraça de pedra: havia uma parte, no peito, que continuava pedra, uma pedra tão dura que ele, sozinho, não conseguia quebrar e que, talvez, quisesse mantê-la do jeito que estava: feito pedra, pois pedra doi menos, sente menos, e foi justamente por que, certa vez, sentiu, que tinha se tornado pedra por inteiro, e pedra por inteiro ele não desejava voltar a ser.