domingo, 30 de setembro de 2012

As almas dos personagens

Era uma noite escura em que a lua mal aparecia no céu, encoberta por espessas nuvens de chuva. Mas nenhuma gota d’água caía do céu, como se todo o ambiente estivesse expectante por algo que estava prestes a acontecer. Soprava um vento frio e cortante e até as luzes dos postes pareciam tremer de frio, lançando sobre a rua uma luz mortiça que pouco iluminava. Em toda a rua pairava uma névoa fina e de frente a uma coisa esta parecia se adensar.
            Um homem não percebia isso. Estava dormindo um sono pesado após uma noite estafante em que havia sido convidado para dar uma palestra sobre seus livros, em seguida tinha sido submetido a uma noite de autógrafos. Era um escritor de Best-Sellers, com livros publicados em diversos países, traduzidos para várias línguas, apesar das severas críticas que recebia, por seu estilo trágico, dramático, de histórias fortes e tão marcantes. E uma de suas maiores características era o pouco apreço que parecia ter por seus personagens, pois ele sempre os fazia morrer no momento crucial das histórias, como um ponto máximo de cada livro. E naquela noite tivera que responder à muitas perguntas sobre essa sórdida marca de sua histórias. Construía personagens tão belos, tão vivos, tão marcantes que pareciam sair das páginas dos livros e aparecer ali, bem ao lado do leitor, contando a história para este, sussurrando palavras em seu ouvido. No entanto, por mais vida que tivesse esses personagens, o escritor sempre acabava encontrando uma forma de ceifar suas almas.
            O homem dormia o sono dos justos e não sonhava, quando foi acordado por um barulho vindo do andar debaixo de sua casa. Levantou-se assustado e lembrou-se de que estava só em casa. Sua esposa tinha viajado e seus filhos foram junto. Ficou com os ouvidos atentos, procurando escutar qualquer novo som vindo de sua casa. Como não escutou nada, tornou a deitar a cabeça no travesseiro e a se enfiar debaixo dos lençóis. Quando estava pegando no sono, escutou outro barulho, dessa vez mais alto, vindo da frente de sua casa, do lado de fora. O homem então, assustado, levantou-se e foi até a janela. Afastou um pouco as cortinas e ficou a olhar para o lado de fora, para ver o que tinha provocado aquele barulho. Demorou um pouco até conseguir ver alguma coisa, pois a neblina era muito densa a luz dos postes no meio da rua pouco ajudava. Mas pouco a pouco foi distinguindo uma forma parada bem a frente dos portões. Era uma pessoa, com certeza, e estava parada, e fazia questão de se mostrar. O homem ficou assustando, imaginando tratar-se de um assalto.
            Mas era estranho, pois a pessoa do lado de fora não se mexia e parecia olhar fixamente para a janela, para ele, o escritor, que estava dentro de casa. O olhar dos dois se cruzou, e o escritor sentiu um estranho frio tomar seu corpo. Era como se já conhecesse aquele olhar. O escritor, com medo, afastou as cortinas e foi até o telefone, para ligar para a polícia. Mas o telefone estava mudo e seu celular não funcionava. Sentiu, já, o suor brotar em sua face. Voltou à janela, afastou as cortinas, mas o estranho não estava mais lá. “Melhor. Deve ter ido embora”, pensou. E já voltava para cama quando escutou o barulho da porta, como se alguém estivesse querendo entrar. Foi novamente à janela e olhou para fora, imaginando que ia encontrar algum conhecido, sua esposa e seus filhos, provavelmente, que tinham voltado de viagem mais cedo e tinham se esquecido de avisar, e não encontravam as chaves de casa. Olhou para a garagem, primeiramente, mas não via carro algum, e quando olhou para a porta, de onde provinha o barulho, não viu quem esperava. Havia uma estranha, parada à porta, mas não tentava abri-la. Ela olhava para cima, para a janela, olhando diretamente para ele, para seus olhos.
            O homem, sabendo que agora tratavam-se de estranhos que rondavam sua casa, foi tomado de um desespero, sem saber como reagir, se descia ou se ficava em seu quarto, trancado. Seus telefones não funcionavam e ele pensou em abrir a janela e gritar, chamando por algum vizinho, pedindo ajuda. Mas achou pouco provável que alguém escutasse àquela hora da madrugada.
            Caminhava de um lado para outro no quarto, passava a mão no rosto, enxugando o suor, pensando no que fazer, quando escutou outro barulho, dessa vez da porta de sua casa sendo aberta.
            “Eles entraram”, pensou o homem. O tempo ruge nesses momentos, e uma descarga de adrenalina pulsa em nossas veias. Não sabemos o que fazer e sentimos o medo tomar conta de todo o nosso corpo.
            Olhava de um lado para outro, sem saber o que fazer, quando escutou o barulho mais próximo, dessa vez de dentro de seu quarto. Seu susto foi tamanho que caiu de costas na cama. O barulho tinha vindo do seu banheiro, cuja porta estava fechada. Ele, muito lentamente, foi até lá, colocou a orelha encostada à porta para escutar alguma coisa, e não ouvindo nada, colocou a mão na fechadura e a girou lentamente. Com a porta aberta, olhou para dentro, mas não encontrou nada, nem ninguém.
            “Estou ficando louco, só pode”, disse ele consigo próprio, quando escutou algo próximo, às suas costas, e ao se virar bruscamente, viu, num canto do quarto, bem próximo ao seu guarda-roupa, no canto mais escuto, um homem. Como ele tinha entrado ali, o escritor não sabia, o que tinha certeza era que tinha alguém bem ali, a poucos metros dele.
            - Quem é você? O que quer? – perguntou ele, com a voz alterada pelo medo, quase gritando.
            O estranho ficou parado onde estava, calado, e a única coisa que o homem conseguiu ver foi um sutil sorriso. Era um sorriso triste.
            O homem então correu, abriu a porta de seu quarto e foi para o corredor, imaginando-se à salvo ali.
            Escutava barulho de passos vindos de todos os lados, dentro de seu quarto, do quarto de seus filhos e do final daquele corredor, do lado oposto de onde ele estava. Apurou bem ouvidos e aguçou os olhos e viu bem ali, à sua frente, aquele mesmo homem que tinha visto do lado de fora, a lhe dirigir aquele olhar tão penetrante e cheio de tristeza.
            - Quem é você? – gritou o homem, fora de si. O estranho nada respondeu, contentando-se a fita-lo com aqueles olhos tão cheios de tristeza, com uma única e solitária lágrima escapando-lhe do olho direito e escorrendo por sua face.
            Com o coração batendo acelerado, forte em seu peito, o homem reuniu as forças e a coragem que ainda lhe restavam, e correu até a escada. Desceu às pressas, pulando os degraus e quando chegou ao último degrau olhou para cima e direção aonde o estranho se encontrava, mas não encontrou ninguém ali.
            Respirando com dificuldade, ele olhava de um lado para outro, procurando por sinais de invasão por onde aquelas pessoas tinham entrada. Mas tudo parecia estar perfeitamente em ordens. Foi até a cozinha, onde poderia pegar algo com que se proteger, como uma faca. Abriu gavetas, mas, como é comum de acontecer nessas situações de pânico, ele nada encontrou. Abria as gavetas, remexia-as, mas não encontrava o que tanto procurava, quando escutou o choro de uma pessoa, de uma criança, vindo do canto, bem próximo a porta. Aproximou-se pisando com a ponta dos pés para ver do que se tratava e viu, quase ao alcance de suas mãos, uma menininha, toda encolhida, naquele canto escuro, chorando. Tinha os cabelos completamente despenteados e o rosto escondido pelas mãos. Não era um choro alto, mas seus soluços cortavam o coração, como se quem tivesse acabado de perder algo importante. O homem se aproximou e, embora tendo muito medo, tocou-a no ombro.
            - Ei, menina, quem é você e o que faz aqui?
            A menina mal se mexia. Seu choro ia se tornando cada vez mais alto.
            “O que é isso, meu Deus?!”, questionou e exclamou o homem.
            Começou a chover. Chovia tanto e o vento era tão forte que o homem teve a impressão de que sua casa logo seria arrastada. Com o clarão de um relâmpago, ele pôde distinguir as formas da menina, que estava à sua frente, e imaginou reconhecê-la. Ela, no exato momento em que ela a fitava, parou de chorar e levantou o rosto, banhado de lágrimas, para se deixar ver. O escritor agora a reconhecia, e teve tanto medo que saiu tropeçando, correndo, rastejando, para ficar longe daquela menina. Quando chegou a sala, viu que as janelas tinham sido abertas, assim como a porta. Nenhuma das luzes estava acesa, mas relampejava tanto do lado de fora que elas não se faziam necessárias.
            O homem olhava de um lado para o outro, sem saber para onde fugir, quando ouviu a porta bater, sendo fechada. Tomou mais um grande susto. Foi até lá e tentou abri-la, mas ela estava como que fechada por fora. As janelas batiam e as cortinas esvoaçavam, devido à força do vento.
            O coração daquele homem parecia prestes a explodir, quando escutou o barulho vindo lá de cima. Tinha medo, mas olhou para a escada e viu uma pessoa lá no alto, que olhava fixamente para ele. Olhava dentro de seus olhos.
            Passos às suas costas, e quando ele se virou, viu mais duas pessoas, paradas à porta da cozinha, outra à sua direita e mais uma à esquerda. Para todos os lados que olhava ele encontrava algum daquelas almas, daqueles espíritos sem rumo, que tinham ressuscitado para atormentá-lo. Fechou os olhos com força, imaginando que aquilo não passava de sua imaginação, de que quando se torna a abri-lo aqueles espíritos teriam sumido.
            “São só coisas de minha cabeça, pois eles não podem estar aqui, já que nunca existiram”. Quando terminou de falar isso, aos sussurros, abriu os olhos. Mas imaginava ver-se livro de todos aqueles estranhos, e o que encontrou foi muitos outros.
            Nenhum deles se mexia, não esboçavam nenhum gesto. Apenas olhavam aquele que tinha lhes criado, lhes dado a vida, e que tinha ceifado-as de forma tão despropositada. Seus olhares, tão vivos, exprimiam tanta tristeza e acusavam aquele a quem se dirigiam.
            “Eles não podem estar aqui... Eles não podem estar aqui...”, dizia o homem, como em uma oração.
            A chuva começou a cair com mais força e os trovões a ribombarem.
            O coração do homem começou a bater tão depressa e com tanta força que ele começou a ficar tonto.
            - Saiam daqui! SAIAM DAQUI! – gritava ele, e arremessava tudo que estava ao alcance de suas mãos àquelas pessoas. Mas nada as atingia.
            O homem começou a perder o equilíbrio, a ver as coisas rodarem em sua cabeça, até que ficou de joelho. Olhava para aquelas pessoas e pela primeira vez escutou um som saindo daquelas bocas: elas riam. Eram risos tristes, repletos de ironia. O homem começou a cair lentamente e a perder os sentidos.
            A última coisa que seus olhos viram, quando já estava caído no chão, foi que as pessoas estavam ao seu redor, olhando para ele, e algumas esticavam suas mãos para tocá-lo.
            - Não me toquem, não me toquem – disse ele, antes de perder os sentidos.
            Acordou de manhã encharcado de suor, gritando aquele “não me toquem” e o “saiam daqui”. Passou a mão no rosto, para ver se estava realmente acordado.
            “Então tudo não passou de um sonho”, pensou ele, jogando-se novamente na cama, respirando aliviado. Ria, embora não sentisse a menor vontade de rir, pois o sonho lhe parecia tão real.
            Olhou ao redor, para ver se estava tudo em ordem, e não encontrando nada de anormal, levantou-se. Saiu do quarto e viu que todas as janelas e portas de sua casa estavam fechadas. Quando ia voltar ao quarto ouviu o barulho de uma porta sendo aberta. Sentiu um arrepio percorrer seu corpo, e foi ver do que se tratava. Com efeito, a porta da sua biblioteca estava aberta, mas lá ele não encontrou ninguém, apenas todos os seus livros abertos, jogados em cima de sua mesa.

Um comentário:

  1. nossa que esmero ao escrever e que narrativa alucinante, nao dei conta de parar de ler enquanto nao chegou ao fim

    parabens

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