sábado, 17 de junho de 2017

Retalho de vidas

Eu sou um imenso retalho de memórias, um constructo dos tempos vividos, de dores sofridas, de lágrimas derramadas, de superações, mas, acima de tudo, de sorrisos, de batalhas bem lutadas e, por vezes, vencidas. Não tenho qualquer tipo de vergonha em ser assim, em, no meio de uma conversa qualquer, rememorar um fato acontecido há cinco minutos, no mês passado, há anos ou há séculos e, dessa memória, tecer uma longa trama que conduz a um caminho que por vezes foge do caminho originalmente traçado, mas que vai chegar, cedo ou tarde, a dar em algum lugar.
            Sou como uma Penélope, mas que nunca desfaz o trabalho realizado ao longo dos dias, mas que vai construindo, dia a dia, noite a noite, um imenso tapete sobre o qual caminhar numa longa e infindável jornada.
Sou um alguém que constantemente olha para trás para poder olhar para mim mesmo, para saber quem eu sou e porque estou ali, naquele momento, naquela condição, para só então olhar para frente, para um pontinho distante, que nem ao menos sei localizar ao certo, nem sei como chegar nem o que tem lá que me atrai tanto, mas que sei que cedo ou tarde, chegarei lá, tendo sob meus pés o chão coberto pelo tapete de memórias que me trouxera até ali.
            Sou assim, bastante sentimental, por mais que esconda tais sentimentos por baixo de uma carapaça grossa que parece, num primeiro momento, intransponível, mas que, na verdade, é tão tênue quanto um véu feito de nuvens. Sou assim, protegido e vulnerável, tentando esconder a nudez da minha alma por trás de um véu translúcido que não esconde nada de ninguém.
            Sou um alguém que ama o abstrato e que por vezes é indiferente ao concreto, que topa numa pedra por não tê-la visto por estar com os olhos voltados para o céu, observando sua imensidão, seu vazio, que mira ao longe e se descuida do que está ao alcance de um suspiro, mas sou, também, um alguém que observa o pequeno, aquilo que ninguém mais vê, que olha uma flor, que percebe o bailar das árvores conduzidas numa suave dança com o vento.
            Sou um alguém assim, multifacetado, difícil de entender, sim, mas ao mesmo tempo extremamente simples de compreender através de meus atos, como uma biblioteca que tem um milhão de exemplares de livros rarocomuns, cada um explicando uma faceta de mim, sendo eu um imenso retalho de vidas vividas ao longo das páginas de cada um daqueles livros ali expostos, estando todos ao alcance das mãos de qualquer um que se aproximar para pegar um livro.

            Sou assim: simples-complexo; um retalho de vidas, de momentos, de vivências, de tempos passados, de presentes sendo vividos e de futuros sonhados; um alguém que sonha com os olhos abertos, que contempla o nada e se perde em devaneios; um alguém que fecha os olhos para poder enxergar melhor; um alguém que é, em sua essência, um solitário, mas que só sabe viver em conjunto, por e para o grupo; um alguém que é como as ondas do mar, em constante movimento, num eterno vai-e-vem, que não sabe se é um nada ou se é um tudo; um alguém que é como um prédio que está em constante construção, subindo andar a andar, pondo tijolo a tijolo de minha própria existência; um alguém que é como uma montanha, que foi formada a partir de um choque de duas placas tectônicas na profundeza das terras e que vive eternamente a subir, subir e subir até que, por fim, um dia consiga tocar as nuvens com as próprias mãos.