Era
perto de meio-dia e naquele sol escaldante, protegido por uma míngua de sombra,
aguardava pacientemente um menino que o sinal de trânsito mudasse de cor e
acendesse a luz vermelha para os carros pararem. Estava cansado, o suor
escorria por seu rosto e estava preocupado, pois o que havia apurado naquela
manhã era muito pouco. Pensou nos irmãos mais novos; pensou na escola em que
deveria estar àquela hora, na aula que estava perdendo. Mas na dura realidade
de menino pobre, de família muito humilde habitante de periferia de grande
cidade, não havia a possibilidade de escolha: era frequentar a escola ou ajudar
no sustento da casa. Adoraria poder estar na escola, aprendendo, absorvendo os
conhecimentos transmitidos pelos professores daquela pequena escola localizada
na zona oeste da cidade.
Ficou tão absorvido pelos devaneios
da escola que nem se deu conta que o sinal havia fechado e já estava prestes a
novamente abrir. Xingou a si mesmo. Havia perdido a possibilidade de, talvez,
ganhar alguns trocados. Parou de pensar nas aulas, nos professores e nos
colegas para prestar atenção só e unicamente no sinal de trânsito que estava
bem à sua frente e nos carros.
O tráfico era intenso naquele
cruzamento. Vendo todos aqueles carros de todas as cores e modelos, o menino se
perguntou se alguma daquelas pessoas fechadas atrás daqueles vidros, protegidas
do calor pelo ar-condicionado, prestava atenção nele. Muito provavelmente não.
Talvez estivessem entretidas nas músicas que ouviam ou pensando nos
compromissos do dia ou simplesmente preocupadas no processo de dirigir,
executando os movimentos mecanizados da troca de marchas, aceleração e
frenagem.
Viu quando os carros começavam a
diminuir a velocidade e olhou para o sinal. A luz verde dera lugar à amarela e
ele se preparou para entrar em cena. Quando os carros pararam, ele se dirigiu à
faixa de pedestres, por onde as pessoas atravessavam, cumprimentou os
motoristas num gesto amplo, mas muitos dos quais nem sequer o perceberam, e
começou a realizar seu número. Atirou algumas bolas para o alto e iniciou uma
brincadeira de malabarismo que lhe fora ensinada, certa vez, por outro menino
naquele mesmo cruzamento. Findo o número, inclinou-se, agradecendo, e só então
voltou novamente os olhos para os motoristas, para perceber que mais uma vez
praticamente ninguém o tinha observado. Estava já acostumado àquilo, a se
sentir um alguém invisível num cruzamento em frente a um sinal, mas, mesmo
assim, resolveu caminhar por entre os carros distribuindo sorrisos e pedindo
algum dinheiro que algum daqueles motoristas compadecido de sua situação
pudessem lhe dar. Naquela vez, apenas uma mulher, que vinha com uma criança no
banco de trás, abaixou o vidro para lhe dar umas poucas moedas, que ele
agradeceu ao receber. Era pouco, quase nada, mal dava para comprar pão, mas ele
agradeceu imensamente. O sinal abriu novamente e ele voltou para a proteção de
sua sombra.
Olhou para a bolsa que tinha
amarrada em torno da cintura, onde guardava o dinheiro. Aquele não tinha, definitivamente,
sido seu dia de sorte. Iria tentar mais uma última vez e iria para casa. Talvez
no dia seguinte alguém, motivado por um sentimento de misericórdia, prestaria
atenção a sua habilidade no jogo de malabarismo com bolas e lhe recompensasse
com algumas moedas ou talvez com alguma nota.
Quando o sinal fechou para os
carros, realizou o mesmo ritual de sempre. Cumprimentou os motoristas e começou
a jogar as bolas para cima, mas algo dera errado, bateu uma mão na outra,
perdeu o tempo e as bolas caíram no chão e rolaram entre os pneus dos carros.
Sorriu, sem jeito, pedindo desculpas, e percebeu que dessa vez algumas pessoas
o observavam mais atentamente, sorrindo ante a falta de jeito do menino, mas
reconhecendo o seu esforço. Alguns abaixaram os vidros e lhe ofereceram como
recompensa umas moedas, que ele recebeu de bom grado, e quando o sinal já
estava prestes a fechar, quando já estava para sair do meio dos carros, ouviu a
buzina de um que estava perto do final da fila. Ele levantou a cabeça e viu que
um alguém lhe acenava. Correu até lá, olhando para trás, para o sinal, que já
ia ficar verde. Quando chegou, viu que o motorista era um senhor de tez morena
e cabelos grisalhos e, no banco de trás, vinha uma menina entretida com um
objeto que ele não conseguiu reconhecer. O homem lhe entregou uma nota, algumas
moedas e lhe deu algo que ele recebeu sem olhar, pois o sinal abrira. O menino
correu para a calçada e voltou para a proteção de sua sombra, guardando o
dinheiro dentro de sua bolsa, pensando se valeria a pena tentar mais uma última
vez o seu número, mas estava muito cansado e o sol, muito quente. Melhor voltar
para casa, pois aquele seu dia não estava sendo dos melhores. Quem sabe o outro
teria mais a lhe oferecer do que umas pouquíssimas moedas e três notas de valor
baixo.
Quando já guardava suas coisas numa
mochila rasgada, foi que se deu conta daquilo que aquele senhor lhe entregara e
ele ainda não tinha atentado para o que era. Um livro! Aquele senhor lhe dera
um livro! Durante todo aquele tempo em que pedia dinheiro nas ruas, em que
realizava números diversos para chamar a atenção de motoristas, já recebera
inúmeras coisas: dinheiro, comida, uma ou outra palavra, mas nunca ninguém lhe
dera um livro. Não prestou atenção sequer as cores vibrantes da capa, não o
abrira para ver as ilustrações e não chegou sequer a ler seu título, jogou-o
dentro da mochila e foi embora pra casa.
Em casa,
viu a mãe cansada, pois passara a manhã inteira a lavar e passar roupa; viu os
irmãos menores brincando com outros meninos da rua. Jogou a mochila num canto
do quarto e se jogou na cama, e só se levantou quando sentiu um vazio do
estômago e o ouviu reclamar. Foi até a cozinha e levantou as tampas das panelas
só para ver que tinha o mesmo do dia anterior, do anterior do anterior, do
anterior do anterior do anterior... Soltou o ar de uma vez, pois esperava que,
pelo dinheiro que conseguira em outros dias, pudesse ao menos comer algo
diferente e um pouco melhor. Mas era melhor não reclamar, pois pelo menos tinha
o que comer, enquanto outros meninos de sua rua nem isso tinham.
A casa estava em silêncio. Sua mãe
estava no quintal, lavando e estendendo roupa, e seus irmãos estavam do lado de
fora. Foi para seu quarto e lá ficou olhando para o teto até que pegou no sono.
No dia
seguinte, acordou com os primeiros raios de sol, tomou um banho fio, comeu um
pão com margarina e bebeu um copo de café e se aprontou para sair. Antes de
fechar a porta de casa, olhou para os irmãos dormindo e para a mãe, que já
estava de pé, trabalhando.
Quando chegou ao cruzamento, que
abriu sua mochila, foi que se deu conta de que o livro ainda estava ali. Soltou
todo o ar dos pulmões de uma vez, aborrecido, pois havia trazido aquele peso à
toa. Mais uma vez, não reparou naquele objeto, pegou as bolas e esperou que o
sinal fechasse para passagem de carros.
Aquele dia foi bem melhor do que o
anterior. Não deixou as bolas caírem nenhuma vez e recebeu muitas moedas, tanto
que já pensava em ir pra casa mais cedo e passar antes no mercadinho do bairro para
comprar algo diferente para almoçar, e quando já se preparava para ir embora,
que abriu a mochila para guardar as bolas, atentou para o livro que estava ali
dentro. Retirou-o da bolsa e prestou atenção pela primeira vez nele. Passou as
páginas lentamente reparando nas ilustrações, mas não tentou lê-lo. Ficou tão
entretido no colorido, imaginando a história que havia por trás de cada uma, no
mistério que aquelas letras impressas guardavam, ansiando para serem
descobertos, que nem se deu conta que um carro buzinava freneticamente tentando
lhe chamar a atenção. Só quando levantou a cabeça foi que viu que uma mulher a
lhe acenar, chamando-o. Ele, com o livro na mão, correu até ela, que
sorridente, impressionada por ver um menino numa esquina, debaixo do sol, com
um livro na mão, pegou um livro que trazia no banco de trás do carro e estendeu
para ele. Junto com o livro ela lhe deu umas moedas, que ele recebeu de bom
grado.
O sinal então abriu e a mulher lhe
sorriu abertamente antes de engatar a primeira marcha e seguir para seu
compromisso, não sem antes lhe desejar uma boa leitura. O menino pegou os dois
livros, guardou-os cuidadosamente na mochila e foi para casa.
Tomado
por um estranho sentimento que não sentia há tempos, não saiu de casa no dia
seguinte. Quando sua mãe lhe perguntou se estava se sentindo bem, ele apenas
sorriu e disse que sim. Ela foi lavar roupa e ele foi para o quarto, onde tinha
deixado sua mochila. Abriu-a delicadamente e de lá retirou o primeiro livro.
Mesmo balbuciando, pois seu domínio de leitura era precário, conseguiu ler o
título do livro, as primeiras palavras e frases, e logo se viu imergido naquela
história fantástica. Quando o fechou, que olhou ao redor de si, viu que tinha
muito de diferente-igual ao personagem do livro e sentiu uma imensa gratidão
por aquele senhor que lhe dera aquele primeiro livro. Mal tomou novamente
fôlego, pegou o segundo livro e o leu de supetão tomado por uma imensa alegria.
Aquelas leituras, aquele momento em
que esteve a sós consigo mesmo e com todo aquele mundo de personagens, trouxe
consigo um sentimento de liberdade que jazia esquecido no peito do menino.
Saiu de casa às pressas, pegou o
primeiro ônibus que viu e chegou ao cruzamento onde ficava todos os dias sem
fôlego, mas em êxtase. Naquele dia não fez uma única vez seu número de atirar
bolas para o ar. Ficou o tempo todo com o olho nos carros para ver se
reconhecia aquele carro cujo motorista lhe abrira a janela há dois dias e lhe
entregara um livro que ele não prestara atenção, mas que só naquela manhã ele
tinha notado o seu valor. Ficou olhando para todas as janelas para ver se via
novamente aquela mulher de sorriso tão aberto
Não viu nenhum dos carros, não
encontrou nenhum daqueles olhares que desejava reencontrar, mas não ficou
triste. Voltou para casa estranhamente pensativo. Chegando lá, viu que sua mãe
tinha preparado algo especial para o almoço, e só então se deu conta de que dia
era aquele: seu aniversário! E ele sequer tinha se dado conta.
Recebeu das mãos da mãe um embrulho,
que ele prontamente rasgou e viu uma mochila e alguns cadernos. Agradeceu
imensamente os presentes e a abraçou.
Não foi
para aquele cruzamento esperar que o sinal fechasse no dia seguinte, no outro e
no outro, mas toda manhã saía de casa nas primeiras horas da manhã, como sempre
fazia, mas com destino à escola. Sentia uma imensa alegria ao ouvir o sinal
sonoro indicando o início das aulas e uma leve tristeza quando soava o do fim.
Um dia sua aula havia terminado mais
cedo e foi caminhando em direção ao ponto de ônibus. Passou naquele cruzamento
tão seu conhecido quando viu um carro parado ao final da fila. O motorista o
reconheceu e buzinou para lhe chamar a atenção. O menino abriu o sorriso e
acenou, agradecendo. O sinal abriu o homem seguiu seu trajeto enquanto o menino
continuou caminhando pelas calçadas, com a alma leve, com um pensamento vagando
livremente. Seguia em silêncio, por mais que tudo ao seu redor fosse barulho, e
ao atravessar uma rua, ouviu o barulho de um buzina. Olhou para o lado e viu
aquela mulher sorridente e lhe acenar. Ele retribuiu seu sorriso e colocou a
mão sobre o peito, como que para indicar o nome da escola, e ela acenou
positivamente.
Aqueles encontros, naquele dia,
talvez tivessem sido mero acaso. Talvez aquelas duas pessoas se conhecessem,
talvez não, mas fato é que ambos foram providenciais na vida daquele menino.
Aqueles atos, simples, abriram os olhos e deram uma outra perspectiva de vida
àquele pequeno malabarista, lhe deram uma outra possibilidade de crescimento na
vida, e a forma que ele encontrou para expressar sua gratidão foi de reler
aqueles livros vezes sem conta, em especial no dia de seu aniversário.
Mesmo já
tendo passado tantos anos, mesmo ele já sendo, agora, um adulto, aposentado,
ele continuava a ler aqueles livros infantis, e quando se deu conta de quão
egoísta era, pegou-os, guardou-os dentro de uma mochila e saiu de casa. Dirigiu
por ruas desconhecidas, passou por inúmeros cruzamentos até chegar àquele tão
familiar, que mesmo tendo mudado tudo ao redor, continuava estranhamente
familiar. Quando o sinal fechou, viu um menino se dirigir até o centro da faixa
de pedestre e começar a atirar as bolas para cima. Quando ele terminou, ele
sorriu, buzinou, chamando a atenção do menino, abriu o vidro do carro e lhe
entregou a mochila onde estavam guardados os bens mais preciosos que alguém
havia lhe dado naquela esquina. O menino agradeceu, mas quem agradeceu mais
ainda foi o homem que um dia fora um menino igual ele, no mesmo sinal, fazendo
as mesmas coisas, ganhando os mesmos trocados, e que agora estavam
intrinsecamente unidos pelos mesmos livros.