sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Asas

Quando nascem, todas as crianças têm asas para poder ir aonde quiserem, para fazer o que bem desejarem, pois são inteiramente livres, pois pertencem só e unicamente a si mesmas. Elas brincam livres no céu, sob os olhares estupefatos dos adultos, invejosos daquela liberdade e alegria a que é permitido só aos que possuem alma de criança.
            No céu, as crianças se sentiam inteiramente donas de si, e podiam viajar livremente nos braços dos ventos, mas havia uma em especial que era mais livre do que as outras: um menino que tinha um riso capaz de sobrepujar o barulho dos trovões nas noites de tempestade, que tinha asas tão grandes que ele as usava para abraçar a si mesmo quando estava com frio nas noites de inverno. Ele, junto com seus amigos, voavam pelos céus e chegavam perto do sol, mas só ele, ousado como era, ousava se aproximar o suficiente para sentir seu calor a lhe queimar a pele, e fazia isso com tanta frequência que sua cor era de um saudável bronzeado. Nas noites de luar, todas as crianças eram livres para ficar até tarde acordadas, e algumas, quando sentiam sono, podiam mesmo dormir planando no ar ou nos braços de uma estrela, mas diante de tanta alegria e felicidade, eram raras as que sentiam sono. Umas, mais afoitas, voavam bem alto em torno na lua, enquanto outras, mais alegres, brincavam com as estrelas, jogando-as de um lado para o outro, e os adultos, infantis, imaginavam tratar-se de uma “estrela cadente”, quando, na verdade, era apenas uma estrela que se deixava fazer de brinquedo pelas crianças.
            As crianças eram inteiramente felizes e livres, mas aquele menino era mais do que todas as outras, e primeira vez que seu sorriso lhe sumiu do rosto foi quando viu um adulto segurando uma criança, um amigo seu, pelo pé, impedindo-a de voar, prendendo suas asas num abraço apertado para que elas não abrissem. Ele então entendeu que aquele era o primeiro indício de uma obrigação a que os adultos impunham às crianças: o crescimento. Aquela foi a primeira criança que ele via dar seus primeiros sinais de crescimento a que os adultos e o mundo impunham, e ficou triste por dias a fio, sem ânimo sequer para voar. Mas logo esqueceu, como todas as crianças esquecem rapidamente das coisas, pois tinha muitos outros amigos para brincar durante os dias e noites de sua eterna infância.
            Um dia, quando estava no céu a brincar com uma nuvem, fazendo cócegas nela para obriga-la a tomar a forma de um animal, viu uma criança com os pés plantados no chão. Ele a chamou, mostrando como estavam a se divertir, ele a nuvem, convidando-a a participar da brincadeira, ao que ela respondeu com um olhar triste, mostrando que suas asas pendiam inertes. Ele ainda fez menção de ir até ela e voar com ela nos braços, ao que ela recusou, dizendo que a partir daquele momento não poderia mais voar, pois seu lugar era ali, com os pés bem firmes no chão. Ficou com uma lágrima presa na garganta, mas se aquele era o desejo daquela criança, tudo bem, ele respeitaria. Ainda havia, mesmo assim, algumas crianças livres, com enormes asas, embora não tão grandes quanto as suas, com quem poderia brincar e voar livremente pelo céu.
            Passadas algumas semanas, ele, num voo solitário num início de manhã, percebeu que havia menos crianças do que o normal, e olhou para baixo e viu um massacre acontecendo diante de seus olhos: adultos ignorantes prendiam as asas das crianças para que elas não pudessem mais voar, e outros iam ainda mais longe e arrancavam as asas para que nunca mais elas pudessem ser livres. Dessa vez, ele chorou, e suas lágrimas caindo eram como uma tempestade a desabar sobre a cabeça dos incautos que faziam aquilo com as crianças, prendendo-as no chão.
            Algumas crianças, mesmo livres, começaram a não conseguir mais voar tão alto e pouco a pouco foram perdendo, naturalmente, capacidade de voar, e estas, quando punham seus pés no chão e não tinham mais forças nas asas, choravam tão alto que até as estrelas no céu se compadeciam de suas novas condições, presas ao chão. Outras, para evitar perderem suas capacidades de voar, suas preciosas liberdades, tentavam viver uma vida dupla: na terra, como todos, e no céu, livres; mas a estas logo as obrigações do dia-a-dia, as infindáveis rotinas prendiam, a ponto de elas se esquecerem de como se faz para voar, e suas asas caíam inertes ao longo do corpo.
            Uma a uma, as crianças começavam a ficar presas ao chão, umas por que eram obrigadas, com os adultos obrigando-as a se plantarem no chão, enquanto outras tinham as asas as asas brutalmente arrancadas, para que nunca mais pudessem voar livremente no céu.
            Todas aquelas crianças que um dia foram livres não mais voavam, com a exceção daquele menino, que agora brincava sozinho. Ia de uma nuvem a outra, brincava de esconde-esconde com o sol, conversava, à noite, com a lua e ainda jogava, vez por outra, uma estrela de um lado para o outro. Quando olhava para baixo e via um de seus antigos amigos, agora transformados em adultos, chamava por eles, mas eles, tão ocupados em suas rotinas, ou não ouviam, ou não escutavam ou chamado, ou fingiam não ouvir aquele chamado, e seguiam sempre em frente, com a cabeça baixa e os pés bem firmes plantados no chão.  Ele, mesmo percebendo que mais que chamasse os outros não olhariam para cima, continuava a chamar até cansar. E quando eles não podiam mais ser vistos, seja porque entravam em um ônibus, carro ou se trancavam num escritório ou dentro de casa, sentia-se cansado e triste e perdia, por um instante, a vontade de voar, e em uma ocasião quase foi pego por um adulto, que desejava lhe podar as asas.
            Sentia-se só, agora que não tinha uma outra criança com quem brincar e compartilhar as alegrias e sorrisos, e essa solidão foi lhe pesando dia após dia a ponto de tal peso lhe impedir de voar tão alto como gostava. Um dia, não aguentando mais tal peso, resolveu se deixar cair lentamente, tal qual uma pluma que se deixa levar ao sabor do vento. Pousou suavemente no chão e dobrou delicadamente suas asas e começou, a partir daquele dia, a viver como uma pessoa comum, a seguir uma rotina, a ter suas responsabilidades.
            Passaram-se muitos anos e ele cresceu, como toda criança cresce, e, tão ocupado como estava em viver a vida, se esquecia do menino que um dia fora. Nunca olhava para o céu, seja durante o dia seja à noite, e sua pele, antes bronzeada, perdeu a beleza da cor e o viço.
            Mas um dia, enquanto voltava de seu trabalho para casa, parou subitamente, como que algo estivesse a lhe chamar. Era noite e não havia uma única nuvem no céu e ele, ao olhar para cima, ao ver tantas estrelas e a lua a brilhar majestosa no firmamento, e foi então que um turbilhão de lembranças lhe tomou de assalto e ele sorriu e chorou ao lembrar do menino que um dia fora e do qual havia se esquecido. Olhou para as costas e viu as asas abrindo lentamente e sorriu ao perceber que elas ainda estavam vivas e possuíam vigor suficiente para levá-lo ao céu. Respirou fundo duas ou três vezes e deixou suas asas livres para baterem e lhe levarem de volta aos braços do céu. Sentiu seus pés iam pouco a pouco se soltando do chão e ele pôde se tornar o primeiro homem, adulto, a poder voar. Seguia suas rotinas e tinha suas responsabilidades do dia-a-dia, sim, mas sempre que, cansado, voltava para casa, parava, olhava para o céu e ao ver as estrelas e a lua, podia voltar a ser o menino livre que um dia fora, e voar livremente pelo céu, privilégio este que só é dado aos que possuem uma eterna alma de criança e aos que fazem devido uso de suas asas.

Um comentário:

  1. Muito bom esse texto, cheio de sensibilidade, Gostei muito.
    Parabéns !!!!!

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