Ninguém sabia o porquê de ele ficar trancado naquele cômodo
da casa o dia todo. Viam aquele lugar estranho na casa como um ambiente
qualquer, onde um velho tio tinha juntado uma gigantesca coleção de objetos
velhos a que as pessoas chamavam de livros.
Como ninguém sabia o que fazer
com eles nem se interessa por descobrir e por se tratar de uma herança, por uma
questão de respeito à pessoa que os tinha deixado, guardaram-nos num cômodo da
casa, fecharam a porta e esqueceram que tal lugar e tais objetos existiam. Ninguém
pisava lá, ninguém sequer abria aquela porta, até que um sobrinho distante veio
passar na casa da família alguns dias. Explorando a casa, andando por
corredores longos, mal iluminados e silenciosos, ele chegou ao final daquele
onde havia uma porta fechada, mas que ele mal se aproximou já foi se abrindo,
dando-lhe passagem, mostrando um cômodo repleto de luzes e sons silenciosos. Prendeu
a respiração, pois nunca tinha visto tantos livros juntos, e olhou para trás,
para ver se ninguém o repreendia por ter aberto aquela porta que jazia fechada
há tanto tempo. Com medo, não sabia se podia entrar ali, mas que mal poderia
haver em entrar na biblioteca, lugar este mágico no qual, infelizmente, nenhuma
pessoa entrava?! Deu um primeiro passo, passando pelo umbral da porta, depois
deu mais outro, outro e outro, até que se viu ao pé da estante. Levantou lentamente
o braço, abriu a mão e tocou alguns daqueles livros, que pareciam sedentos para
serem abertos, lidos, saboreados e devidamente apreciados. Fechou os olhos e
deixou seus dedos correrem livremente, passeando, tocando, sentindo as capas
daqueles livros, até que seus dedos se detiveram em um livro. Lentamente ele
abriu os olhos e sorriu ao ver que livro sua alma-de-leitor tinha escolhido. Pegou
o livro, retirando-o da estante, com todo o cuidado do mundo e, abraçado a ele,
sabendo que tinha em seus braços um preciosíssimo tesouro, foi até um canto da
biblioteca reservado à leitura e devorou, saboreou aquela obra de arte feita de
folhas, tinta e alma com uma ânsia que até então desconhecia. Dia após dia, ele
passou a passar por aquela porta e, como em forma de um ritual, de uma escolha
feita por sua alma, fechava os olhos e deixava suas mãos passearem livremente,
até que se detivessem, escolhessem um livro, e aquele seria o que ele iria ler
naquele dia.
Como era um menino no qual não
prestavam atenção, de hábitos solitários por natureza, passou a frequentar a
biblioteca da casa sem que se dessem conta. Passava longas horas entretido ali,
no meio daquelas luzes, ouvindo tantas altas-sussurrantes vozes, em companhia
de tantos autores e personagens. Pouco a pouco passou a ficar mais tempo entre
os livros do que entre as pessoas, e estas nem se davam conta disso, achando
aquele afastamento normal vindo de um menino solitário.
Deveria ter ficado apenas alguns
dias, mas foi se esquecendo por ali, foi se fundindo à biblioteca de tal forma que
acabou ficando sem que as pessoas da família se apercebessem de sua presença na
casa. Fazia rapidamente as refeições com os membros da família e nos intervalos
entre o café da manhã e o almoço, entre o almoço e a janta, ia se perder e se
encontrar sendo embalado pelas melífluas palavras de um autor na companhia de
mil e um personagens.
Ele foi mudando, foi crescendo,
foi adquirindo uma nova vida e seu olhar foi ficando mais aguçado, seus olhos
vendo mais do que apenas aquilo que se mostrava. Começou a falar de maneira
diferente, de forma clara e precisa. Quando isso aconteceu, as pessoas
começaram a estranhar e certa vez um alguém o seguiu, para saber onde ele ia e
com quem estava nos momentos em que não era em companhia de pessoas. Tal não
foi o seu espanto ao constatar que o menino entrava e ficava longas horas
perdidos dentro do “cômodo esquecido da casa” que era a biblioteca. Correu para
dizer aos outros.
- Deixe pra lá! Daqui a pouco ele
esquece que existe uma biblioteca aqui – disse certa pessoa, para acalmar os
ânimos dos que, em polvorosa, queriam que se tomasse alguma atitude para se por
fim aquela atitude sediciosa do menino.
Mas o menino não se esqueceu, e,
pelo contrário, começou a, ao passar dos dias, ficar mais e mais tempo na
biblioteca, entre os livros, e aquilo gerou certa preocupação por parte das
pessoas. Uma ou outra tentava lhe oferecer distrações, chamando-o para sair,
para passear, ao que o menino respondia com um educado “estou ocupado” no
início, e depois com um simples e definitivo “não” quando a pessoa muito
insistia, e entrava naquela biblioteca e se esquecia do mundo exterior, ficando
longas e longas horas entretido nas páginas daquele livro, viajando e saindo do
mundo sem sair do lugar, deixando que sua alma vagasse livremente por mil e um
espaços.
As pessoas, no entanto,
consideravam aquela atitude estranha, inexplicável, e passaram a insistir mais
enfaticamente, e certa vez uma a perguntou:
- Por que você lê tanto?
O menino, muito educadamente,
olhou a pessoa, um amigo de um membro da família que viera ali com o intuito de
“lhe salvar”, e respondeu:
- E tu, por que tanto respiras? –
e fechou a porta, trancando-se na biblioteca.
Ao ouvirem aquilo, entenderam a
resposta-pergunta do menino não como um ato de arrogância e grosseria, mas como
palavras sábias, mesmo vindo de um alguém tão jovem.
No dia seguinte, quando o menino
abriu a porta da biblioteca e entrou, um primo seu, curioso e de maneira
tímida, perguntou se também podia entrar. Queria saber o que aquele lugar tinha
de tão especial, o que tanto escondiam aqueles objetos chamados livros. Foi este
segundo menino mais um a ser fisgado pelos livros, mais um a ser motivo de
preocupação na família!
E quanto mais pessoas ficavam
preocupadas, mais curiosas ficavam por descobrir e assim acabavam se deixando,
movidas pela curiosidade, passar por aquela porta, se deixavam andar livremente
por entre as estantes de livros e que suas almas escolhessem que livro abrir
naquela manhã.
Pouco a pouco a biblioteca, que
era um lugar esquecido, o mais distante da casa, foi se tornando o coração,
pulsante de vidas mil, o ambiente mais frequentado, onde a porta nunca estava
fechada, onde sempre havia um alguém a ler, seja no silêncio e no frio da
madrugada, seja em pleno calor meio-dia.
As pessoas, então, passaram,
também, a entender que livro não é só um objeto que resguarda, escondido entre
seu seio, nas suas páginas, protegido por uma capa, um emaranhado de palavras,
que deve ficar trancafiado, fechado, exposto numa estante e fechado atrás de
uma porta de biblioteca, mas sim algo vivo, que pulsa, que tem alma própria, e
que esta clama, grita, por se libertar, para viver, mas que isto só é possível
graças e com a intervenção do leitor. Livro é algo repleto de significados e de
transcende a todas as tentativas de definições e significações, pois só quem
sabe o que ele realmente significa é aquele que, meio que por um acaso, se
deixou levar por uma curiosidade e abriu, aleatoriamente um livro e leu a
primeira palavra que lhe caiu nos olhos.
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