domingo, 9 de março de 2014

O menino e a biblioteca

Ninguém sabia o porquê de ele ficar trancado naquele cômodo da casa o dia todo. Viam aquele lugar estranho na casa como um ambiente qualquer, onde um velho tio tinha juntado uma gigantesca coleção de objetos velhos a que as pessoas chamavam de livros.
Como ninguém sabia o que fazer com eles nem se interessa por descobrir e por se tratar de uma herança, por uma questão de respeito à pessoa que os tinha deixado, guardaram-nos num cômodo da casa, fecharam a porta e esqueceram que tal lugar e tais objetos existiam. Ninguém pisava lá, ninguém sequer abria aquela porta, até que um sobrinho distante veio passar na casa da família alguns dias. Explorando a casa, andando por corredores longos, mal iluminados e silenciosos, ele chegou ao final daquele onde havia uma porta fechada, mas que ele mal se aproximou já foi se abrindo, dando-lhe passagem, mostrando um cômodo repleto de luzes e sons silenciosos. Prendeu a respiração, pois nunca tinha visto tantos livros juntos, e olhou para trás, para ver se ninguém o repreendia por ter aberto aquela porta que jazia fechada há tanto tempo. Com medo, não sabia se podia entrar ali, mas que mal poderia haver em entrar na biblioteca, lugar este mágico no qual, infelizmente, nenhuma pessoa entrava?! Deu um primeiro passo, passando pelo umbral da porta, depois deu mais outro, outro e outro, até que se viu ao pé da estante. Levantou lentamente o braço, abriu a mão e tocou alguns daqueles livros, que pareciam sedentos para serem abertos, lidos, saboreados e devidamente apreciados. Fechou os olhos e deixou seus dedos correrem livremente, passeando, tocando, sentindo as capas daqueles livros, até que seus dedos se detiveram em um livro. Lentamente ele abriu os olhos e sorriu ao ver que livro sua alma-de-leitor tinha escolhido. Pegou o livro, retirando-o da estante, com todo o cuidado do mundo e, abraçado a ele, sabendo que tinha em seus braços um preciosíssimo tesouro, foi até um canto da biblioteca reservado à leitura e devorou, saboreou aquela obra de arte feita de folhas, tinta e alma com uma ânsia que até então desconhecia. Dia após dia, ele passou a passar por aquela porta e, como em forma de um ritual, de uma escolha feita por sua alma, fechava os olhos e deixava suas mãos passearem livremente, até que se detivessem, escolhessem um livro, e aquele seria o que ele iria ler naquele dia.
Como era um menino no qual não prestavam atenção, de hábitos solitários por natureza, passou a frequentar a biblioteca da casa sem que se dessem conta. Passava longas horas entretido ali, no meio daquelas luzes, ouvindo tantas altas-sussurrantes vozes, em companhia de tantos autores e personagens. Pouco a pouco passou a ficar mais tempo entre os livros do que entre as pessoas, e estas nem se davam conta disso, achando aquele afastamento normal vindo de um menino solitário.
Deveria ter ficado apenas alguns dias, mas foi se esquecendo por ali, foi se fundindo à biblioteca de tal forma que acabou ficando sem que as pessoas da família se apercebessem de sua presença na casa. Fazia rapidamente as refeições com os membros da família e nos intervalos entre o café da manhã e o almoço, entre o almoço e a janta, ia se perder e se encontrar sendo embalado pelas melífluas palavras de um autor na companhia de mil e um personagens.
Ele foi mudando, foi crescendo, foi adquirindo uma nova vida e seu olhar foi ficando mais aguçado, seus olhos vendo mais do que apenas aquilo que se mostrava. Começou a falar de maneira diferente, de forma clara e precisa. Quando isso aconteceu, as pessoas começaram a estranhar e certa vez um alguém o seguiu, para saber onde ele ia e com quem estava nos momentos em que não era em companhia de pessoas. Tal não foi o seu espanto ao constatar que o menino entrava e ficava longas horas perdidos dentro do “cômodo esquecido da casa” que era a biblioteca. Correu para dizer aos outros.
- Deixe pra lá! Daqui a pouco ele esquece que existe uma biblioteca aqui – disse certa pessoa, para acalmar os ânimos dos que, em polvorosa, queriam que se tomasse alguma atitude para se por fim aquela atitude sediciosa do menino.
Mas o menino não se esqueceu, e, pelo contrário, começou a, ao passar dos dias, ficar mais e mais tempo na biblioteca, entre os livros, e aquilo gerou certa preocupação por parte das pessoas. Uma ou outra tentava lhe oferecer distrações, chamando-o para sair, para passear, ao que o menino respondia com um educado “estou ocupado” no início, e depois com um simples e definitivo “não” quando a pessoa muito insistia, e entrava naquela biblioteca e se esquecia do mundo exterior, ficando longas e longas horas entretido nas páginas daquele livro, viajando e saindo do mundo sem sair do lugar, deixando que sua alma vagasse livremente por mil e um espaços.
As pessoas, no entanto, consideravam aquela atitude estranha, inexplicável, e passaram a insistir mais enfaticamente, e certa vez uma a perguntou:
- Por que você lê tanto?
O menino, muito educadamente, olhou a pessoa, um amigo de um membro da família que viera ali com o intuito de “lhe salvar”, e respondeu:
- E tu, por que tanto respiras? – e fechou a porta, trancando-se na biblioteca.
Ao ouvirem aquilo, entenderam a resposta-pergunta do menino não como um ato de arrogância e grosseria, mas como palavras sábias, mesmo vindo de um alguém tão jovem.
No dia seguinte, quando o menino abriu a porta da biblioteca e entrou, um primo seu, curioso e de maneira tímida, perguntou se também podia entrar. Queria saber o que aquele lugar tinha de tão especial, o que tanto escondiam aqueles objetos chamados livros. Foi este segundo menino mais um a ser fisgado pelos livros, mais um a ser motivo de preocupação na família!
E quanto mais pessoas ficavam preocupadas, mais curiosas ficavam por descobrir e assim acabavam se deixando, movidas pela curiosidade, passar por aquela porta, se deixavam andar livremente por entre as estantes de livros e que suas almas escolhessem que livro abrir naquela manhã.
Pouco a pouco a biblioteca, que era um lugar esquecido, o mais distante da casa, foi se tornando o coração, pulsante de vidas mil, o ambiente mais frequentado, onde a porta nunca estava fechada, onde sempre havia um alguém a ler, seja no silêncio e no frio da madrugada, seja em pleno calor meio-dia.
As pessoas, então, passaram, também, a entender que livro não é só um objeto que resguarda, escondido entre seu seio, nas suas páginas, protegido por uma capa, um emaranhado de palavras, que deve ficar trancafiado, fechado, exposto numa estante e fechado atrás de uma porta de biblioteca, mas sim algo vivo, que pulsa, que tem alma própria, e que esta clama, grita, por se libertar, para viver, mas que isto só é possível graças e com a intervenção do leitor. Livro é algo repleto de significados e de transcende a todas as tentativas de definições e significações, pois só quem sabe o que ele realmente significa é aquele que, meio que por um acaso, se deixou levar por uma curiosidade e abriu, aleatoriamente um livro e leu a primeira palavra que lhe caiu nos olhos.

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