domingo, 6 de julho de 2014

O homem que guardou seus sentimentos



Ele parou em frente ao espelho, mas não mirou imediatamente aquele que lhe olhava tão fixamente no reflexo, através daquela parede de fino vidro. Estava cansado. Respirou fundo duas ou três vezes, e só então levantou os olhos e viu, para seu espanto, um alguém já velho, diferente  daquele que ele guardava a lembrança, com a pele ressecada, marcada por profundas cicatrizes que o tempo lhe deixara. Tinha os olhos secos e a boca fechada. Olhos que não choravam e boca que não se abria num único sorriso sequer. Foi subitamente tomado por uma lembrança; a lembrança do dia em que se investira daquela expressão, em que se fechara para o mundo, em que decidira se proteger por trás daquela grossa carapaça que nada poderia ultrapassar.
            Foi quando, com o coração em frangalhos, começou a vagar, deixando que seus pés o guiassem livremente. Mesmo com o corpo cansado, não parou de caminhar, até que, extenuado, se deixou cair pesadamente no chão. Aquela não foi a primeira vez em que se vira sofrendo com tanta intensidade, não foi a primeira vez em que sentira tamanha dor no peito, mas decidira, naquele momento, que seria a última das vezes. Cansado de sofrer, decidira que aquela fora a última vez que sofrera aquela dor.
            Eram tantas as dores que trazia no peito, eram tantos os sofrimentos que ficaram marcados no fundo de sua alma, que se sentia cansado de viver-sofrer. Não tinha mais forças, não aguentaria mais viver uma nova dor. Parado, ali, de joelhos, humilhado por aquele sentimento que lhe consumia por inteiro, por aquele sofrer, resolvera tomar uma atitude radical e expurgar tudo aquilo, todos aqueles sentimentos que lhe poderiam, de alguma forma, lhe fazer se decepcionar, lhe trazer alguma dor. Não queria mais sentir aquele gosto ruim na boca, não queria mais senti-lo se espalhar por todo o seu corpo, nos poros de sua pele, em suas veias, lhe turvando a visão, lhe pretendo a respiração, lhe roubando os sentidos. Pegou então, uma faca, mas não tinha coragem de tirar sua própria vida. Então se pôs a apunhalar todos aqueles sentimentos causadores de dor. Percebeu, no entanto, que os que lhe causavam de dor estavam intrinsecamente ligados aos que lhe traziam felicidades, os que lhe arrancavam lágrimas eram gêmeos dos que lhe abriam sorrisos, mas ele não deu importância para isso, e continuou em sua atitude intempestiva. Quando terminou, percebeu que tinha ao seu redor tantos sentimentos que não cabiam numa caixa, onde pretendia trancá-los para que nunca mais pudessem sair, então os pôs dentro de um container. Selou os sentimentos, todos os que viviam em seu peito, naquela imensa caixa de metal, e os guardou para sempre, escondendo em um local protegido nas profundezas de sua alma, onde ninguém, nunca, poderia chegar.
            Levantou-se lentamente, livre de toda e qualquer dor, de todo e qualquer sentimento. Pôs-se, então, a viver uma vida tranquila, cumprindo todas as suas obrigações, vivendo uma rotina sem reclamar, nunca, de nada. Não chorava, mas também não ria; não ficava triste, mas estava, também, livre de pequenas felicidades. Quando recebia um convite para alguma coisa, atendia com um “sim” ou um “não”, indiferente, pois “sim” e “não” para ele eram a mesma coisa, as faces de uma mesma moeda. Casou, mas sem se apaixonar, simplesmente porque precisava se casar, porque impuseram isso a ele. Traiu porque tinha que trair, e mesmo na traição era indiferente com relação àquela com quem ia para a cama, e com aquela que ficava a lhe esperar, aguardando-o em casa para esquentar o seu jantar e desenrolar seu cobertor para que pudesse dormir confortavelmente. Perdeu inúmeros entes queridos, como todos perdem no processo natural da vida, mas mesmo nos velórios e enterros, não derramava uma única lágrima sequer.
            Viveu toda uma vida inteira livre de sentimentos tristes, mas também dos felizes. Teve um filho, e mesmo ao segurar o recém-nascido pela primeira vez, não derramou uma única lágrima de felicidade. Viu a criança crescer, lhe dar os braços, lhe chamar de “pápá”, segurar na sua mão quando queria segurança, lhe chamar à noite quando tinha medo, viu-a caminhar com as próprias pernas, tomar as próprias decisões, viver sua própria vida, e em nenhum momento ele deixou que sentimentos escapassem, pois estes estavam tão bem guardados naquele container que até ele mesmo tinha se esquecido de sua existência.
            Na mesma medida em que viu o seu filho nascer, crescer, aprender a caminhar e ir embora, viu sua esposa, a quem não amava nem odiava, ir envelhecendo, perdendo as forças e tendo a sua centelha de vida se apagando pouco a pouco, até que, por viu, a viu fechar os olhos. Viu as pessoas, todas próximas, mas nunca próximas demais dele, chorando pela perda de uma pessoa tão querida, mas ele, em nenhum momento, teve os olhos úmidos. Recebeu palavras de consolo e a todas elas dizia apenas um “obrigado”, não porque estava tocado pelo que ouvia, não porque se sentia grato, mas porque devia, ao menos, retribuir às palavras com uma outra, nem que esta fosse apenas da boca pra fora.
            A cada conquista que o filho tinha, este lhe mandava uma carta, lhe ligava para compartilhar suas vitórias, e ele, como sempre, emitia palavras vagas, mas que, para aquele, feliz, lhe soavam encorajadoras. Viu-o envelhecer, vencer e, também, sua centelha se vida se apagar, e nem quando percebeu que o caixão dele pousou no fundo da cova, ele chorou, já que estava livre de todo e qualquer sentimento que pudesse lhe causar dor.
            Viu as pessoas que um dia lhe foram próximas, todas, uma a uma, indo embora, e só ele ficava, sozinho, sem derramar uma única lágrima pelas perdas.
            Agora, vendo-se só, olhando nos olhos daquele que lhe mirava do outro lado do espelho, se perguntava pela primeira vez em todos aqueles anos, se valera a pena ter tido aquela vida tão livre de sentimentos de dor. Pela primeira vez, em todos aqueles anos, olhou para baixo, respirou fundo e se deu conta de que viver é sentir dor, e em quem a vida não dói, não vive. Foi então que sentiu aqueles sentimentos adormecidos, guardados naquele container há tantos anos, ganhando novamente viva, acordando de seu longo torpor. Eram tantos e tão fortes, agora, que arrebentaram as paredes de ferro daquela prisão, arrebentaram as comportas que mantinham seguras tantas lágrimas contidas há tantos anos. Ele chorou até seus olhos cansarem, até que todos aqueles sulcos marcados em sua pele encharcarem. Quando as lágrimas cessaram, ele se deixou cair no chão e ficou ali, imóvel, por longos e longos minutos. Sentiu, pela primeira vez em anos, o seu coração bater. Ele batia acelerado, com uma imensa força, arrebentando por dentro, pois não suportava tantos sentimentos libertados de uma única vez. Ele foi fechando os olhos lentamente, sendo tomado por um sono. Revia toda a sua vida passar diante de seus olhos em uma fração de segundos, viu todos os sentimentos que deixou de viver pelo medo de sofrer, e chorou mais uma vez, arrependido. Esperou sua centelha de vida, aquela vida que não vivera, se apagar lentamente e no exato instante em que sentiu seu coração bater pela última vez, sorriu o primeiro sorriso em tantos anos.

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