domingo, 3 de janeiro de 2010

Ela só queria um livro didático - Crônicas da Sicililândia


Mais um dia estafante de trabalho e o vendedor olhava para seu relógio a cada cinco minutos, com a esperança de ver chegar o momento em que poderia trocar sua farda com uma bonita roupa e ir aproveitar a noite, numa festa regada a muita bebida e música.
            O vendedor, já ansioso para que chegasse ao fim aquele dia, olhando a todo instante para a porta, por onde entrariam seus colegas de trabalho, para a troca de turno e ele pudesse ir embora, quando viu se aproximar uma simpática senhora.
            - O senhor trabalha aqui? – perguntou ela, mesmo tento observado o logotipo da empresa em sua camisa e seu crachá. O vendedor, já tão acostumado àquela pergunta, mesmo tendo vontade de responder de forma ignorante, apenas respondeu que “sim”, que trabalhava naquela livraria.
            A mulher então começou a remexer sua bolsa, em busca da folha de papel em que tinha anotado o nome dos livros e autores que provavelmente a sua filha tinha pedido para comprar. Quando finalmente encontrou a tão procurada lista, que começou a desdobrá-la, o vendedor, já sabendo de antemão do que se tratava, tentou impedi-la daquele trabalho todo, dizendo que não trabalhava com aquele tipo de livro que ela ia pedir. Mas ela não entendeu os gestos do funcionário nem a expressão de ódio em seu olhar, e continuo calmamente a desdobrar a folha de papel. Ao terminar esse trabalho, ela o esfregou de tal maneira que a folha parecia nova.
            - Você tem esse livro aqui, meu filho? – perguntou ela.
            O vendedor, já sabendo que não dispunha daquele livro que a mulher queria, disse que não antes mesmo de averiguar de que livro, autor e editora se tratava.
            - Não, senhora. Nós não estamos trabalhando com livro didático esse ano – respondeu ele, com um sorriso no rosto. Estava tão acostumado com tudo aquilo nas últimas semanas que até seu sorriso não mudava quando era perguntado sobre livros didáticos. Além do mais, a senhora tinha um rosto tão simpático que era impossível agir de maneira menos cortês com ela.
            A mulher, com uma expressão de desgosto na face já voltava a dobrar a lista quando a olhou de relance, e resolveu ver se naquela livraria tinha um outro da lista.
            - E esse daqui, de português. Você tem?
            - Não tenho nenhum livro didático, senhora, infelizmente – respondeu ele, agora em tom um pouco mais ríspido.
            A mulher, completamente decepcionada por ter dado uma viagem daquela em vão, para não encontrar nenhum livro, já se retirava, quando se voltou mais uma vez para o vendedor e lhe perguntou:
            - Você não tem nem esse daqui, de matemática? – apontando para a lista.
            O vendedor, já inteiramente sem paciência, respirou duas ou três vezes profundamente antes de responder.
            - Não, senhora. Não tenho nenhum desses livros de sua lista, pois não estou trabalhando com nenhum – ele enfatizou bem essa palavra – livro didático esse ano – ele falou de forma calma, controlada, embora seu queixo tremesse ligeiramente e em seu olhar, senil, transparecesse o ódio que sentia naquele momento.
            A mulher resolveu então fazer uma última tentativa.
            - E esse aqui, de física, você tem?
            O vendedor, tomado repentinamente por uma fúria inexplicável, saiu, deixando a senhora sozinha com sua lista, e foi até o escritório da loja. Voltou um minutinho depois com uma espingarda em punho. Apontou a arma para a mulher e falou de forma firme e enfática:
            - Eu não tenho livro didático, senhora.
            A mulher, tremendo ante aquela visão apocalíptica, segurou com firmeza a lista numa mão, para mostrar ao vendedor. Com a outra mão apontou.
            - E esse aqui de química? – a voz dela tremia tanto que mal se conseguia ouvir o que falava.
            - Eu – bum – não – bum – tenho – bum – LIVRO DIDÁTICO – respondeu o vendedor, descarregando a arma sobre a pobre senhora.
            A mulher, caída no chão, com o sangue a escapar por todo seu corpo, ainda tinha forças para levantar a mão, que se negava a soltar a lista de livros, enquanto com a outra apontava.
            - Nem mesmo o de química? – perguntou ela.
            O vendedor então pegou sua metralhadora automática e tal qual um Rambo, deu mais de vinte tiros na mulher.
            Quando percebeu que a bondosa senhora não tinha mais vida, ele se agachou e tentou retirar da mão dela aquela lista, que tinha sido seu decreto de morte. Mas ela a segurava com tanta força, como se a salvação de sua alma dependesse daqui, que por mais que o vendedor tentasse, não conseguiu retirar a lista das mãos dela. Foi então que ele pegou novamente sua espingarda e disparou cinco tiros no braço da mulher, estilhaçando-o. Somente sua mão ficou inteira e fechada, negando-se a entregar o papel, a lista de livros didáticos, que seria sua carta de recomendação para entrar no paraíso.
            Foram necessários mais de cinco homens da polícia, além dos cachorros a latir e a rosnar, para fazer com que o vendedor largasse a mão da mulher, contra a qual lutava para arrancar aquele papel.
            Ele foi preso e no dia do julgamento todos estavam quietos e calados quando ele entrou, sendo escoltado por dez policiais fortemente armados, para protegê-lo daqueles que queria linchá-lo, por ter matado de forma tão cruel aquela bondosa mulher, mas também para proteger as pessoas dele, caso ele fosse acometido de uma nova onda de fúria e ódio repentina.
            O julgamento transcorreu de forma tranqüila e sem incidente algum. As testemunhas de acusação e de defesa foram ouvidas, foi-se provado que o homicídio não foi premeditado, sendo o réu, então, sendo acusado de ter cometido um homicídio por motivos torpes.
            Quando o promotor de acusação teve sua chance de interrogar o réu, começou a andar de um lado para o outro, como se desfilasse de frente aos jurados e ao juiz. Tirou de dentro de seu paletó um papel, que desdobrou cuidadosamente e mantendo-se a certa distância, perguntou ao vendedor:
            - O senhor tinha absoluta certeza de que não tinha esse livro de química?
            O réu então pulou de sua cadeira, conseguiu arrancar uma arma de um dos policiais que o escoltava e subindo à mesa onde se encontrava o juiz, apontou o revolver para a própria cabeça e disse de forma clara, para que todos pudessem ouvi-lo e, enfim, entende-lo.
            - Eu não tenho NENHUM LIVRO DIDÁTICO – então ele descarregou a arma em sua própria cabeça. Foram seis tiros disparados de forma tão rápida que não houve tempo para impedi-lo.
            Quando tudo terminou, o réu foi declarado inocente e todos souberam que ele não tinha, realmente, nenhum livro didático.
            Sua alma foi encaminhada ao céu, apesar dele ter matado uma pessoa e dado um fim a própria vida. Sua credencial para a entrada no paraíso era uma lista de livros didáticos.

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