domingo, 30 de março de 2014

Doce gabito

Fala-se que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar. Há os que dizem que um escritor contemporâneo não “acerta a mão duas vezes seguidas ao escrever romances”! pois eis que raios caíram duas vezes no mesmo lugar e um escritor brasileiro escreveu não só dois bons livros, mas dois livros magníficos, marcantes, poéticos e de delicadezas impressionantes, capazes de envolver o leitor, embalando-o e fazendo com que ele se envolva com a história e se identifique prontamente com os personagem. Que autor é esse? Francisco Azevedo! E que livros são esses? O Arroz de Palma, o primeiro, e Doce Gabito o segundo
            Fico me lamentando e comento com todas as pessoas com quem converso, que demorei muito a descobrir Francisco Azevedo e seu estupendo Arroz de Palma. Um livro lançado em 2009, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, e que só recentemente, no ano passado, foi que eu tive o imenso prazer de lê-lo. Por que demorei tanto a lê-lo? Nem eu mesmo sei. São tantos os livros a ler, tantos autores para conhecer, que, confesso nunca ter prestado tanta atenção aquele livro de capa tão delicada e singela e que nunca chegava em grande quantidade à livraria em que trabalho, mas que, mesmo assim, mesmo sem tanta divulgação, mesmo sem fazer barulho, era sempre bem vendido e que recebia elogios “rasgados” daqueles que o saborearam. Aconteceu que, na metade de 2013, aquele livro se jogou em meus braços e segurando meu rosto, gritou: “leia-me agora ou arrependa-se para sempre!”. Eu, diante de tais argumentos, nada pude fazer além de leva-lo para casa e iniciar, naquela mesma noite, sua leitura. E que livro! A cada parágrafo, uma poesia. Eu ficava entre querer devorá-lo em uma única noite ou prolongar o imenso prazer de sua leitura por dias a fio, saboreando, grão a grão de suas palavras.
            Ao fechar o livro, tendo lido o último ponto de O Arroz de Palma, continuei por longos dias com aquela história ecoando em minha cabeça, tendo por companhia aqueles tão cativantes personagens com os quais tanto me identifiquei. Com o passar dos dias, comecei a me sentir órfão, pois nada do que lia encontrava aquela poeticidade, aquela delicadeza das palavras de Francisco Azevedo. Encontrei, sim, muito bons livros, que marcaram o meu ano de leitura, mas nenhum tanto quanto aquele Arroz...
            “Livro vai, livro vem...” e acontece de eu, por acaso, resolver fuçar na internet (no facebook, para ser mais exato) e encontrar, entre milhões Franciscos e entre tantos Azevedos, o Francisco Azevedo que, com seu livro, fez eu me sentir órfão por meses após a leitura do incomparável O Arroz de Palma. Conversa vai, conversa vem, apresentações feitas, elogios também, acabo descobrindo que ele lançou outro livro de peculiar título, Doce Gabito. Como assim?! Ele tem um segundo livro e eu não sabia! Mas o livro, infelizmente, não tinha unzinho exemplar sequer na livraria em que trabalho. Relatei isso ao autor, comentei de meu “desespero” (dramático eu? Imagina!), e ele, se compadecendo de minha situação, mandou-me um exemplar do livro. Eu aceitei, óbvio, o presente, mas com uma condição: que o livro viesse autografado. Ele não titubeou, e mandou-me o exemplar do raro livro.
            Iniciei a leitura de Doce Gabito e senti, de cara, o mesmo impacto da leitura do livro anterior do autor. A mesma poeticidade, a mesma linguagem plástica, a mesma forma inigualável e até o mesmo eixo temático, família. Isso tudo sem contar as referências literárias e as “coincidências” na história da protagonista/ narradora, Gabriela Garcia Marques (isso mesmo! é este o nome dela), com a de seu homônimo, o famoso e laureado escritor colombiano, sem contar a presença constante de seu amigo, que sempre vem lhe visitar em sonhos (normalmente, mas que vez por outra aparece em plena luz do dia e dá o ar da graça quando ela está com os olhos bem abertos), que é presença constante na história, tão real quanto os demais personagens, Gabito (nada mais nada menos do que o próprio escritor nobel de literatura de 1982!).
            É inevitável se fazer comparações entre os dois livros, principalmente quando o primeiro é tão marcante, e talvez algumas pessoas ao lerem o segundo livro de Azevedo o achem “abaixo da expectativa” simplesmente por ter ficado “diferente” do outro, mesmo tendo tanto em comum. O Doce Gabito é, em muitos aspectos, inclusive, uma obra mais madura que O Arroz de Palma. No deparamos, nele, com uma maior gana de personagens, complexos e bem desenvolvidos, que pulsam de vida em todos os capítulos, pelos quais torcemos, que nos deixam curiosos sobre como vai terminar a história, nos obrigando a virar página atrás de página para chegar logo ao final. A condução da história continua “não linear”, com a personagem-narradora nos conduzindo ao seu bel prazer numa viagem através do tempo, nos contando suas histórias, suas lembranças, nos levando pela mão.
            Gabriela tem um avô espetacular e cuidadoso, tanto que numa das primeiras cenas em que nos deparamos com os dois juntos, o encontramos reparando nas costas da neta, verificando se suas asas estão crescendo retas, corretas, nos seus devidos lugares. Quando ele termina o minucioso exame, que diz a ela que está tudo bem com suas asas, ela abre um imenso sorriso, satisfeita. Moram apenas os dois num simples casebre localizado no alto do morro Santa Marta. Se faltam maiores contato com “o mundo exterior”, se a menina não vai a escola, ficando a encargo do avô a sua instrução, não lhe faltam boas lembranças dessa fase de sua vida e pessoas marcante em sua vida. São os momentos que passa com o avô os mais ternos e repletos de fantasia (incentivados e cultivados por ele) de sua vida. Mas toda esta vida, fantasia, é ameaçada, e quando os dois estão prestes a fugir do alto do morro, acontece uma fatalidade, tendo a vida de Vovô Gregório ceifada tão bruscamente, e a de Gabriela não o foi graças a intervenção de um misterioso homem moreno de fartos bigodes, que a salva.
            A vida da menina muda bruscamente quando passa a viver no casarão da tia, com quem nenhum terno contato tivera até então. É Letícia uma mulher de personalidade forte, dominadora, a dona da última palavra, que administra um conceituado e respeitado prostíbulo na cidade. Gabriela sente falta do aconchego do abraço gostoso do avô e dos amigos que tinha no morro, local a qual é terminantemente proibida de voltar pela tia, mas encontra em Verônica, a amiga que é como uma válvula de escape naquele novo mundo em que se viu subitamente inserida. O único ponto de discórdia entre as duas se dá na “questão Gabito”, pois Verônica se nega terminantemente a acreditar nas palavras e amizade de Gabriela com tão singular homem, ao qual ela nunca, Verônica, nunca viu!
            A harmonia e rotina na vida de Gabriela é quebrada subitamente quando, prestes a completar 15 anos, sua tia lhe faz um pedido-cobrança: compensar-lhe todos os anos que cuidou dela, começando a trabalhar para ela. Chocante e difícil momento na vida, Gabriela reluta em vender a sua virgindade, a tornar-se puta de homem, mas acaba por aceitar sob determinadas condições, condições estas que vão colocar em choque e gerar desavença entre sobrinha e tia, mas que acaba sendo contornada.
            Gabriela encontra, nos braços de José Aureliano (sempre as coincidências nos nomes e orbitando em toda a história!), algo que não esperava de um alguém que lhe compra os prazeres do corpo, mas até mesmo as fantasias de uma paixão. Descobre e amadurece muito como pessoa, e quando chega a maioridade sua vida dá uma guinada, e ela se vê não mais como uma menina, mas como uma mulher, que, no entanto, nunca deixou para trás aquela fantasia e que tem, sempre em si, aquela preocupação de saber se suas asas estão crescendo retas, no lugar que deveriam.
            Livro de paixões, inocência e fantasia; de amizades, descobertas e decepções. Doce Gabito tem na célula-família um ponto central na história, mas na vida de Gabriela e na sua doce relação com seu homônimo o fio condutor que vai nos conduzindo naquela formidável teia de histórias, personagens e de coincidências entrelaçadas. Livro gostoso e aconchegante como um abraço em que real e imaginário se entrecruzam. Livro com que nos identificamos não só com as personagens, situações e histórias, mas com o doce sabor das lembranças e com a fantasia que ele desperta. Livro humano acima de tudo, principalmente quando ele nos leva a pensar e a refletir acerca de nossas asas, nos levando a perguntar se elas realmente estão crescendo no lugar certo...

2 comentários:

  1. Meu Deus! Q é isso? Vai escrever bem assim lá em casa rsrs. Poxa, Lima, se eu já não estivesse com tanta vontade de ler esse livro, com certeza, depois de ler o q vc escreveu aqui, o desejo ia surgi. Senti tanta paixão nas suas palavras, q agora já nem sei se meu encantamento é pelo livro ou pelo q vc escreveu!

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  2. o livro, amiga, é MUITO BOM. Devemos, no entanto, saber separar "o arroz de palma" e "Doce Gabito" para não incorrer num julgamento equivocado do segundo livro.
    aprecie "Doce gabito" como livro único, sem compará-lo com o primeiro livro do autor.

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