sexta-feira, 13 de junho de 2014

Simprônio Calado



Quando nasceu, devido a uma promessa que sua mãe fizera para que o filho nascesse saudável, recebera o incomum nome de Simprônio. Cresceu, como toda criança cresce, sem se dar conta do tempo que passava, e na adolescência um alguém lhe dissera, jogando-lhe como um elogio, embora ele não tenha entendido como tal, que ele era uma pessoa de notável senciência devido a sua sensibilidade e à maneira como percebia o mundo ao seu redor. Acabaram os dois caindo no chão, arranhando-se, esmurrando-se, xingando-se de tudo quanto era ofensa, imaginando, Simprônio, que o outro lhe xingava de néscio, de um sem-ciência, ou coisa do tipo. Fechou-se em seu mundo, mais do que vivia fechado, com mais uma estranha palavra que recebera na vida. Já não lhe bastava aquele nome que sua mãe havia lhe dado, agora mais aquela palavra. O outro, o ex-amigo, tentara lhe explicar, quando ele partira com os punhos em riste, que a palavra senciência não era nada daquilo que imaginara, mas sim um elogio, mas ele, acostumado a receber tantas piadas dirigidas por seus colegas de escola devido ao seu nome, às rimas que faziam, jogando-lhe tantas e tantas palavras na cara, que ele, cego e surdo como estava, perdeu a razão a acabou com a única amizade que tinha na escola. A mãe nunca entendeu o mutismo do filho, que se acentuou após aquela briga. A atitude mais sensata fora tomada: Simprônio mudaria de escola.
            A mudança não lhe fez bem, pois tudo continuava como antes: as mesmas brincadeiras sem graça, as mesmas rimas com seu nome, as mesmas piadas, a ponto dele ficar mais e mais fechado em seu silêncio. Aprendeu, a duras penas, que a melhor maneira era, para tantas e tão incomuns palavras que lhe eram jogadas na cara, a desenvolver um “ouvido de mercador”. E assim o fez, com o intuito de recomeçar, com a esperança de nunca mais ouvir aquela balela sem importância que lhe era atirada diariamente, fechado em um cárcere que construíra protegido por grossas paredes para si, como que num sótão de suas próprias emoções. Sua mãe, preocupada, o levou a um médico, com a esperança de curar o menino daquele mutismo, mas este, incapaz de fazê-lo falar seja lá o que for, foi taxativo em seu diagnóstico: esquizofrenia! A mulher deu um grito quando viu aquela palavra escrita em letras garrafais, chorou o abraçou o filho, que apenas levantou levemente a sobrancelha quando ouviu aquela palavra dita pelos lábios do médico, mais uma para a sua “coleção de palavras”. A mãe, então, movida pela única coisa que lhe restava, sua fé, levou o menino a padres, pastores e curandeiros, e todos extraíram dinheiro e mais dinheiro da ingênua mulher, que sempre voltava para casa mais e mais abatida ao ver o seu filho naquele estado eternamente isolado em seu próprio mundo. Tomou uma difícil e sensata decisão: deixar o filho viver do jeito que ele entendia ser a melhor para ele, respeitando os seus silêncios. Simprônio, então, ao ouvir aquelas palavras vindas da boca de sua mãe, sorriu, coisa que não fazia há anos, e a mãe, ao ver aquelas curvas nos lábios do filho, chorou de alegria e o abraçou.
            Simprônio continuou a viver normalmente sua vida, não mais dando ouvidos aos que lhe endereçavam palavras ásperas a ponto das pessoas não mais repararem nele. Ingressou na universidade e ali, pela primeira vez, as pessoas não se importavam com seu estranho nome e muito menos com o seu mutismo, a ponto dele se sentir um pouco mais a vontade para abrir a boca e conseguir ouvir, vez por outra, a sua própria voz. Mas o mundo de uma universidade não era fácil, e ele tinha que seguir uma rígida rotina de estudos, trabalhos, atividades acadêmicas diversas e mais os estágios num caos-ordeiro que tinha se instalado em sua vida. Passava os dias tão ocupado, tão sem-tempo para falar banalidades que todos falam em corredores de universidade, que logo colocaram seu apelido de Simprônio Calado, do qual ele gostou, pois não era, aquela alcunha, proferida com tons pejorativos pelos seus colegas de curso.
            Simprônio Calado, havia realmente adotado a alcunha como sobrenome, graduou-se com méritos acadêmicos e logo conseguiu ser designado para funções administrativas numa repartição pública. Lá era responsável por toda a burocracia. Ficava, da hora em que chegava até a da saída, isolado, dentro de uma sala, soterrado por um número incalculável de documentos para analisar, de autorizações para assinar, de alvarás para conceder e de uma poção de outras coisas rotineiras de seu trabalho. Mas apesar de sempre igual e cansativa rotina, ele, ali, se sentia feliz como jamais estivera. Aquelas palavras, termos estranhos, escritos tão pomposos, eram como música para seus olhos, e ele logo incorporou-as a seu “dicionário de palavras estranhas”. Por vezes, ele não as entendia totalmente, mas ficava tão fascinado por ela que se negava a assinar uma autorização sendo pedida via tão belas e polidas palavras, o que acabou por lhe gerar algumas advertências e ser, depois, obrigado a corrigir os erros cometidos. Mesmo com a revolta que lhe consumia nesses momentos, respirava fundo quando via aqueles documentos novamente sobre a sua mesa, tendo sido anexado um bilhete, escrito com caneta vermelha, um gentil bilhete de seu superior pedindo para que ele relesse com mais atenção os documentos, revisse o que havia assinasse e, após isso, fosse entrega-lo nas mãos dele. Quando isso acontecia, ele, mesmo sentindo que cortava em sua própria carne, refazia o trabalho, negava a autorização, e se dirigia por aquele longo, estreito e úmido corredor até a sala do chefe. Batia duas ou três vezes na porta, e sempre ouvia, ao abrir uma brecha na porta, um “espere aí fora, que daqui a pouco lhe chamo. Estou ocupando, numa ligação importante com um secretário!”, e ele fechava a porta delicadamente e esperava, sentado num banco duro de madeira, que seu chefe terminasse a ligação. Exercitava a tolerância e paciência, pois, por vezes, essas ligações duravam horas, e só quando seu chefe soltava um sonoro suspiro, sabia que em breve seria chamado e receberia o sermão a que estava tão acostumado. Eram sempre as mesmas palavras duras, embora ditas de forma educada, lhe chamando a atenção para mais um erro naquela semana. “E se eu não tivesse aqui para revisar o seu trabalho, como seria? Já perdi as contas de quantas autorizações equivocadas você assinou nos últimos meses, Simprônio! Por favor, preste mais atenção ao que está lendo antes de assinar um documento, seja lá qual for!”, dizia seu chefe, e depois abaixava a cabeça e ia se deter em outros trabalhos, dando por encerrada aquela reunião.
            Simprônio, sempre que chamado a atenção por algo que ele julgava injusto, tornava-se ainda mais calado, e passava dias inteiros chegando mais cedo e saindo mais tarde do trabalho só para não ter que esbarrar com pessoas e proferir um “bom dia!” ou um “boa noite e até amanhã”, preferindo passar os dias entretido na leitura de documentos diversos escritos com tão belas e incomuns palavras. Mas de tanto errar, assinando o que não deveria assinar, acabou sendo designado para uma outra função dentro da repartição, pois seu chefe já havia cansado de lhe chamar a atenção. Foi com um sentimento de pesar que deixou para trás aquela mesa, vendo que ainda havia sobre ela tantos e tantos documentos escritos tão magistralmente que deixara de ler, tantas e tantas palavras que não lhe fora permitido tomar para si e incorporar ao seu já tão vasto vocabulário. No entanto, apesar dos pesares, foi com o desejo de superação e imensa satisfação que assumiu a nova função: agora seria responsável por toda a correspondência inter-repartições.
            Passava ininterruptas horas daqueles longos dias lendo aquelas cartas tão insossas e impessoais que sequer lhe despertavam qualquer interesse quando ele chegava ao trabalho e as via empilhadas sobre o seu birô. Apenas respirava fundo duas ou três vezes, com saudade dos tempos passados no setor anterior, em que entre tantos documentos, encontrava um ou outro que lhe tirava lágrimas dos olhos e lhe deixava com a respiração presa ao lê-los. Por vezes era obrigado a escrever, também, algumas cartas para outras repartições, e a reciprocidade nas palavras que deixava as marcas no papel era a mesma: sempre palavras insossas e impessoais.
            Por vezes, seus dias eram tão sem-sentido, tão sem-gosto, que ele tinha vontade de largar tudo e ir embora. Mas ir embora pra onde?, ele pensava. Ir fazer o quê? Trabalhar com o quê?, se perguntava. E continuava a seguir seus dias como sempre os seguira: impassível, sem reclamar, sem se mover para frente nem para trás, apenas se deixando levar pela maré. Aquele, entendia Simprônio, era um momento de superação em sua vida, e sentiu certo alívio e gratidão por tudo pelo que estava passando.
            Um dia chegou mais cedo ao trabalho e ao abrir sua sala, que viu aquela enorme pilha de correspondências, respirou, como sempre, duas ou três vezes. Fechou os olhos e só quando se despiu da impaciência que vinha se avolumando em seu peito nas últimas semanas, foi que se sentou e começou a trabalhar.
            Algo naquela pilha de cartas não estava certo. Estavam, todas organizadas como sempre estavam, e salvo o fato de talvez haver uma quantidade um pouco menor de cartas do que no dia anterior, tudo parecia em ordem, como sempre estivera. Foi então que reparou, bem no meio daquela pilha de correspondências, um envelope diferente. Não daqueles brancos, cinza ou pardo característico, mas de um tom de cor incomum: rosa! Ele, em sua pressa para pegar aquela misteriosa carta, derrubou a pilha com todas as outras bem na hora em que ia passando em frente a sua sala um colega de trabalho.
            - Credo, Simprônio! Parece que acabou de receber uma carta escrita pelo próprio presidente dos Estados Unidos! – falou, e saiu rindo da própria piada.
            Simprônio não ouviu o que o outro dissera. Estava mais ocupado procurando a carta cor-de-rosa que tinha se perdido. Ficou agachado, com as mãos se batendo uma na outra na sua pressa de encontrar o tesouro encontrado-perdido. Passava as mãos ora na cabeça, numa tentativa de retomar a calma, ora nos olhos, como que para acordar, perguntando-se se seus olhos por um acaso não tinham lhe enganado tão poucos minutos antes. Mas não. Seus olhos não tinham lhe enganado. Lá estava ela, a carta, soterrada entre o peso morto de tantas outras. Ele a pegou sofregamente como um náufrago apanha o primeiro pedaço de madeira flutuante que vê como única forma de salvação. Esperou a respiração e os batimentos cardíacos voltarem ao normal, para só então se levantar e lê-la.
            Ajeitou de forma desajeitada as correspondências comuns sobre sua mesa e começou a andar de um lado para o outro pela sala, segurando firme mas com delicadeza a precisa carta, e só quando se sentiu perfeitamente de posses de suas faculdades, foi que parou e a olhou contra a luz, para que, ao abrir o envelope, não rasgar junto o precioso tesouro. Ouviu o suave chiado-grito de dor do envelope enquanto era rasgado e quando retirou de seu seio a preciosidade que ele guardava, respirou fundo antes de mergulhar na leitura.
            Era uma carta comum, escrita em termos comuns, com uma finalidade comum, mas que, para os olhos de Simprônio, era uma carta única, que só ele conseguia identificar o clamor que existia por trás daquelas palavras contidas, pois eram palavras em formas e sentidos que ele mesmo escreveria. Seu conteúdo era o mesmo daquelas todas cartas que jaziam ali, na sua mesa, mas havia algo ímpar nela. Leu-a duas ou três vezes, saboreando cada palavra, a forma como eram tecidas as frases, e só quando apreendeu sua forma e belas palavras, foi que atendeu para o nome e assinatura da remetente. Era um nome belo, tão incomum quanto Simprônio. Uma lágrima escapou de seu olho e mergulhou naquela carta, manchando-a no canto em que se espatifou. Simprônio se jogou na cadeira, abraçado a carta, e assim ficou durante todo o dia. Releu-a um sem-número de vezes, e só quando já a havia decorado vírgula por vírgula, foi que a guardou delicadamente no bolso de sua camisa e, pela primeira vez em anos, saiu do trabalho antes do fim do expediente, sem ao menos atentar para o fato de que não havia aberto uma única outra correspondência naquele dia.
            Dormiu e acordou pensando naquela carta, e ao chegar ao trabalho no dia seguinte, houve um impasse sobre a melhor maneira de escrever uma resposta, profissional/polida. Escreveu uma carta-resposta, mas esta lhe pareceu muito insossa, escrita em termos idênticos aos que encontrava naquelas cartas que estavam sobre a sua mesa; escreveu uma outra, que lhe pareceu excessivamente impessoal; escreveu uma terceira, que lhe soou excessivamente pessoal. Aos poucos, no cesto ao lado de sua mesa, havia um monte de papel amassado. Ele passava vigorosamente as mãos na cabeça, sem saber como e o que escrever.
            Passou o dia inteiro tentando se distrair, lendo e escrevendo as mesmas cartas de todos os dias, e por um momento, entretido como estava no trabalho, se esqueceu, realmente, da carta que tinha guardado na gaveta de sua mesa, e só quando viu tinha finalizado todo o trabalho daquele dia e posto em dia o do anterior, que deixou as mãos caírem ao longo do corpo, que bateu os olhos na gaveta fechada, que se deu conta de que tinha que dar uma resposta àquela carta. Pegou uma pilha de papeis em branco e iniciou uma série de cartas-resposta, mas não se deu satisfeito com o resultado de nenhuma delas, e quando todos já tinham ido embora da repartição, que ele se deu conta de que estava sozinho ali, de que não havia nos corredores o som de um único passo, que se deu conta de que teria que ir embora, novamente, sem conseguir escrever linha alguma que lhe satisfizesse.
            Voltou para casa cabisbaixo, levando consigo, colada ao peito, no bolso da camisa, a carta que esperava ansiosamente por uma resposta.
            Durante todo o final de semana que se seguiu ficou trancado no quarto, tendo à sua frente folhas e mais folhas de papel em branco, esperando para serem marcadas com a ponta cirúrgica de sua caneta, e, ao lado, a carta, à qual ele recorria a cada vez que escrevia uma palavra. No final da tarde do domingo, ele, finalmente, se deu por satisfeito com a carta-resposta que escrevera, em termos polidos, de forma direta e profissional, como a sua posição pedia, mas repleto de inversões sintáticas e de termos minuciosamente escolhidos, que só uma pessoa como ele e como aquela que tinha lhe escrito aquela carta, seriam capazes de perceber.
            Na segunda-feira, a primeira coisa que fez ao chegar ao trabalho, foi pôr a carta que com tanto esmero escreveu num envelope especial, de uma cor diferente aos que a repartição dispunha, e despachou a correspondência. Mal a despachou, já ficou esperando, impaciente, pela resposta. Esperava pela resposta da mesma forma que o solo espera que uma gota de chuva caia do sol após um longo verão e lhe sacie a sede.
            Passaram-se dias inteiros sem que nada de diferente acontecesse. Sempre chegava ao trabalho mais cedo, para receber ele mesmo as correspondências do dia, e sempre via os mesmos tão-iguais envelopes, com as mesmas cartas, escritas da mesma maneira, com o mesmo vocabulário e pelos mesmos remetentes. Já tinha até perdido as esperanças devido àquela espera-agonia sem-fim, quando, no final da tarde da sexta-feira, chegou uma correspondência atrasada, e o funcionário que a entregou pediu desculpas, alegando que tinha ficado perdida, confundida com outros tipos de correspondência, uma vez que as cartas oficiais, trocadas inter-repartições, nunca eram remetidas naquele tipo de envelope! Simprônio não lhe deu ouvido e arrancou das mãos sujas do outro aquele precioso tesouro.
            Em seu afã de ler a carta, o fez com tanta pressa que não apreendeu uma única palavra de tudo que lera. Balançou a cabeça de um lado pro outro a fim de poder se concentrar, e só então, quando se julgava de posse de suas faculdades mentais, foi que a leu com calma, palavra por palavra, vírgula por vírgula. Seu coração, ele sentia, batia em uníssono ao da pessoa que escrevera aquela tão bela carta, tão repleta de sutis e belas incomuns palavras, tão repleta de inversões sintáticas, tão esmeradamente bem escrita!
            Saiu do trabalho como quem sai a andar nas nuvens e passou o final de semana inteiro a esculpir, letra por letra, uma segunda carta. Em sua empolgação, chegou a pensar em escrevê-la num antigo pergaminho que tinha, mas achou que seria um exagero, pelo menos naquele momento.
            Começaram, nas semanas seguintes, a trocar uma infinidade de cartas, todas escritas com a mesma minúcia, com as palavras escolhidas uma a uma. Mal Simprônio despachava a sua correspondência, já começava a viver a impaciência da espera pelo recebimento da resposta, e quando se passavam dois ou três dias sem ver na pilha de cartas um envelope de cor diferente, já começava a se angustiar. Havia momentos em que de tão alvoroçado que estava, mal conseguia encaixar uma palavra a que só ela, ao receber e ler a carta, poderia captar o verdadeiro sentido. Mas ele tinha persistência, e com muita paciência, tecia, no meio das frases e palavras insossas, alguma saborosa e repleta dos sentimentos que sentia naquele momento.
            Algo novo, inteiramente diferente, nascia e crescia no peito de Simprônio, uma palavra que ele já tinha ouvido, mas há muito tempo, e que não conhecia o verdadeiro sentido, mas agora, com aquelas cartas, com a angústia, com os medos que sentia, passou a entende-la.
            Ele tomou uma resolução: iria, na manhã seguinte, enviar uma carta não direcionada à repartição, ao departamento, mas à pessoa. Ao despachar a correspondência, sentiu insegurança e medo, uma vez que aquela era a primeira vez que direcionava palavras tão pessoais para uma mulher.
            A resposta demorou a vir e ele ficou noites inteiras sem dormir, chegando ao trabalho, na manhã seguinte, com olheiras profundas. Fazia seu trabalho de maneira distraída, mas o seu trabalho era tão pouco relevante diante dos outros da repartição, que seus erros sequer foram notados.
            A carta-resposta veio no momento de maior angústia de Simprônio, que, ao recebe-la, estava tão atarantado que por pouco não a rasgou no meio e acabou amassando-a inteira. Leu-a de um fôlego só e quando leu o último ponto, uma sutil e fina lágrima escapou do canto de seu olho e um sorriso se abriu em sua face.
            Começaram, os dois, a trocar longas cartas em que cada um podia ser a si mesmo, sem preocupações com as linguagens insossas e impessoais das correspondências oficiais das repartições públicas. Combinaram a enviar, agora, cartas um para o endereço do outro, e a cada dois ou três dias, sempre que chegava a casa, Simprônio, ao abrir sua caixa de correspondência, onde antes só chegavam os boletos de suas contas a pagar, encontrava uma carta selada num envelope colorido e perfumado.
            As cartas começaram a ficar ainda mais pessoais e as palavras que ela emprestava e dava e que ele igualmente retribuía, passaram a ser ainda mais sérias e ela, certa vez, escreveu uma carta que continha uma única frase/pergunta, feita de forma clara e objetiva: “vamos nos encontrar?”. Simprônio não soube o que nem como responder. Acostumado a uma linguagem de palavras incomuns e inversões na ordem dos termos da oração, não conseguia emitir uma resposta de forma tão direta quanto a pergunta exigia.
            Ficou doente e pôs um atestado para poder se afastar por uns dias das atividades profissionais. Não tinha a menor condição de sair de casa e de pensar no que quer que fosse. Tomou um sumiço na vida por algum tempo, meditando sobre como responder aquela pergunta que mexera tanto com o seu ser. Foi então que ele decidiu deixar de lado a linguagem pomposa, os termos pernósticos e os jargões prototípicos de sua forma de se expressar e foi direto.
            Trocaram, ainda, mais algumas cartas antes de combinarem o encontro, e em cada carta, apesar de retomarem a suas maneiras particulares de conversar, havia expressa, em cada palavra, uma emoção nova para cada um deles, com a qual nenhum dos dois estava acostumado a lidar.
            Marcaram, finalmente, de se encontrar. No dia, tanto Simprônio Calado, que havia se tornado surpreendentemente falantes nas últimas semanas, quando ela, estavam agitados, e quando se viram, se reconheceram imediatamente. Ambos ficaram quietos, um olhando para o outro. Haviam sido companheiros de sala de aula durante toda a vida escolar, moravam no mesmo bairro, em ruas bem próximas, mas por serem fechados, cada um em seu próprio mundo, nunca tinham dedicado um olhar um para o outro. Eram como que os excluídos da sala, os de nomes estranhos, os sem-amigos, e agora estavam ali, um de frente para o outro, sorrindo. Simprônio abriu os braços e ela os dela, e ambos não precisaram falar nada, nem uma palavra desconhecida, pomposa, nenhuma simples e direta.

Um comentário:

  1. .... Muito lindo! De fato, por razões essas ou razões aquelas, muitos vivem anos à fio dentro de casulos ou escondidos em suas conchas. Buscar alguma coisa além desses muros se torna difícil, extenuante, impossível e é preciso muita coragem para se arriscar, meter a cara, pois, obviamente, sabe-se lá o que advirá disso!
    Como sempre, verve impecável, Lima Neto consegue transformar objetivamente em realidade aquilo que poderia ser apenas utopia, usando casualmente as palavras, seus textos detém belíssimas reflexões use quais palavras use e pensar que existem uns tantos por aí que quereriam sim ter essa maestria de escrita, mas apesar de bons insights, quando expelem o que sentem fica tudo mais ou menos truncado, reiterando o que eu disse acima, sair de nossos casulos é sair com coragem o bastante e perfeição suficiente para que todos nossos atos sejam dignos, apreciados e memorizados. Sempre.

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