quinta-feira, 19 de junho de 2014

Jardineiro-Poeta



O jardineiro é um solitário escultor nato. Ele vê um silêncio do campo estéreo e olha para suas próprias mãos, tão ásperas e calejadas, tão sem poesia, incapaz de dotar de cores e cheiros mil aquela terra cinzenta e pedregosa. Respira fundo e se agacha, pega a terra e a deixa escorrer por entre seus dedos. É ele um insensato, e sabe disso, mas decide, ali, quando sente o calor da terra, que irá, tal qual um escafandrista, fechar os olhos e, munido de seu traje, respirar fundo duas ou três vezes e mergulhar na alma daquela terra árida.
            Seu trabalho é longo, difícil e silencioso e ele, certa vez, até olha para si mesmo com certa incredulidade, duvidando de suas próprias condições, de suas próprias capacidades de transformar em poesia para os sentidos aquele campo cinzento. Mas ele, artista-escultor-poeta-da-terra que é, deposita uma enorme confiança em si, mesmo que tudo diga o contrário, e por mais que sinta os calos nas mãos, sabe o quão delicadas elas são, de toque suave como a da mais pura seda.
            Começa seus trabalhos com toda a paciência do mundo, e da mesma forma que um poeta brinca com as palavras, jogando-as numa folha de papel em branco, o jardineiro brinca com as sementes, depositando-as delicadamente nos sulcos que vai construindo e cavando com seus próprios dedos na terra. Tem, em si mesmo, uma fé inabalável como maior virtude e por mais que da terra nada brote, não deixa que escape por entre os seus dedos a esperança de ver nascer um pequeno e delicado broto. Passa horas e horas a fio em muda contemplação. Regava e via o manto do sol encobrir a terra e ficava esperando o renascimento da vida naquele solo.
            Chegou um momento em que por mais paciente que fosse, o jardineiro via escorrer por entre os dedos a esperança de ver brotar uma delicada flor daquele solo. Ficou com vontade de desistir, sentiu lhe faltar a coragem de continuar. Não conseguia mais olhar para aquele chão duro e imaginar o jardim que poderia esculpir com lindas flores, dispondo-a harmonicamente em torno de uma fonte que pretendia construir, e passou a conviver com o fantasma do fracasso.
            Para ele, essa impotência era indescritível e inexplicável. Havia depositado tão delicadamente as sementes, havia regado com tanto amor aquele solo, mas por mais que fizesse, nada dali brotava! Decepcionado, voltou para casa cabisbaixo antes do sol se pôs no horizonte naquele dia.
            Não saiu da cama no seguinte, e no seguinte e no seguinte, e só quando conseguiu sentir as pernas novamente firmes foi novamente, pela última vez, ao local ao qual tanto se dera nos últimos dias. A terra continuava como sempre, insensível, e o frustrado jardineiro se ajoelhou, pegou um punhado de terra e a trouxe para junto do rosto, para sentir seu cheiro. Chorou naquele momento e ficou longos minutos soluçando deixando que as lágrimas escorressem livremente pelo seu rosto e mergulhassem na terra, regando-a uma última vez. Quando cessou o seu pranto, pegou, no bolso, uma última semente, levou-a até seus lábios, beijou-a, depositou-a no caloroso seio da terra, levantou-se e foi embora sem olhar para trás.
            Passou longos dias entretido em pensamentos mil e chegou, mesmo, a esquecer do poema feito na terra que não conseguiu escrever uma única palavra. Os dias sucederam uns aos outros lentamente, até que o jardineiro, certa vez, ao passear por uma rua, viu um jardim bem-cuidado, todo repleto de flores multicoloridas, com as abelhas voando, roubando o pólen das flores, com beija-flores dançando seu balé em pleno ar, e lhe bateu uma enorme saudade do jardim que não tinha conseguido fazer nada florescer. Seus pés, então, o levaram até aquele campo estéril e tal não foi sua surpresa ao ver um imenso campo florido diante de seus olhos. Fechou os olhos com força, pensando que eles lhe pregavam uma peça. Mas não. Ao reabri-los, o campo estava realmente ali, real em todas as suas cores e cheiros.
            O jardineiro então andou por seus corredores tal qual um leitor percorre os versos de um poema com o qual está a se deleitar. Reconheceu, como um poeta reconhece as suas próprias palavras impressas num livro, as sementes que depositou, aquelas flores que eram como um camaleão aos olhos de quem as via, mudando sutilmente de cor dependendo de como se olhava para elas. Tocou delicadamente flor por flor e se comoveu com a maneira como cada uma recebia os seus carinhos. Viu que cada uma tinha uma alma e delicadeza própria, mas que dada a sua pequenez, cada uma era forte, dotada de uma resiliência ímpar.
            Caminhou por todas as vielas do jardim, por todos os versos daquele poema que construiu com as próprias mãos, até que chegou até seu coração, onde desabrochara não uma flor, mas sim uma frondosa árvore. Boquiaberto com tal imponência, ele ficou longos minutos, imóvel, contemplando-a, protegido por sua generosa sombra. Viu, lá no alto, em sua copa, um suculento fruto e desejou prova-lo, mas não sabia subir na árvore, apenas depositar sua semente no solo e regá-la dia a dia. Foi então que a árvore soltou de seu caule o fruto e deixou-o cair suavemente no chão para que o jardineiro o pegasse.
            O homem sentiu batendo em seu rosto os bons ventos que sopraram em seu favor e olhou para as próprias mãos calejadas, tão sujas de terra, com areia sob as unhas, e viu a imensa escultura-poema que tais mãos haviam construído e sentiu que valeu a pena cada esforço desprendido por cada semente plantada. Sentiu o pulsar do jardim em cada flor.
            Voltou para casa imensamente feliz, com sua integridade moral como poeta de jardins intacta, e naquela noite teve um sono reconfortante como se estivesse deitado num campo de flores e sendo coberto por um imenso cobertor de delicadas pétalas de todas as cores.

Um comentário:

  1. Lima, eu devo dizer que esse foi um texto em que você mais expôs sua mais forte característica como escritor: a suavidade com as palavras. Aqui, talvez aqui mesmo do que em qualquer outro texto que eu tenha lido, você foi suave ao descrever e formar um ideal de jardineiro-poeta. Foi um texto gostoso de ser lido. Um texto que, por exemplo, é bom de se ler antes de dormir. Traz paz.

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