O jardineiro é um solitário escultor nato. Ele vê um
silêncio do campo estéreo e olha para suas próprias mãos, tão ásperas e
calejadas, tão sem poesia, incapaz de dotar de cores e cheiros mil aquela terra
cinzenta e pedregosa. Respira fundo e se agacha, pega a terra e a deixa
escorrer por entre seus dedos. É ele um insensato, e sabe disso, mas decide,
ali, quando sente o calor da terra, que irá, tal qual um escafandrista, fechar
os olhos e, munido de seu traje, respirar fundo duas ou três vezes e mergulhar
na alma daquela terra árida.
Seu
trabalho é longo, difícil e silencioso e ele, certa vez, até olha para si mesmo
com certa incredulidade, duvidando de suas próprias condições, de suas próprias
capacidades de transformar em poesia para os sentidos aquele campo cinzento.
Mas ele, artista-escultor-poeta-da-terra que é, deposita uma enorme confiança
em si, mesmo que tudo diga o contrário, e por mais que sinta os calos nas mãos,
sabe o quão delicadas elas são, de toque suave como a da mais pura seda.
Começa seus
trabalhos com toda a paciência do mundo, e da mesma forma que um poeta brinca
com as palavras, jogando-as numa folha de papel em branco, o jardineiro brinca
com as sementes, depositando-as delicadamente nos sulcos que vai construindo e
cavando com seus próprios dedos na terra. Tem, em si mesmo, uma fé inabalável
como maior virtude e por mais que da terra nada brote, não deixa que escape por
entre os seus dedos a esperança de ver nascer um pequeno e delicado broto.
Passa horas e horas a fio em muda contemplação. Regava e via o manto do sol
encobrir a terra e ficava esperando o renascimento da vida naquele solo.
Chegou um
momento em que por mais paciente que fosse, o jardineiro via escorrer por entre
os dedos a esperança de ver brotar uma delicada flor daquele solo. Ficou com
vontade de desistir, sentiu lhe faltar a coragem de continuar. Não conseguia
mais olhar para aquele chão duro e imaginar o jardim que poderia esculpir com
lindas flores, dispondo-a harmonicamente em torno de uma fonte que pretendia
construir, e passou a conviver com o fantasma do fracasso.
Para ele,
essa impotência era indescritível e inexplicável. Havia depositado tão
delicadamente as sementes, havia regado com tanto amor aquele solo, mas por mais
que fizesse, nada dali brotava! Decepcionado, voltou para casa cabisbaixo antes
do sol se pôs no horizonte naquele dia.
Não saiu da
cama no seguinte, e no seguinte e no seguinte, e só quando conseguiu sentir as
pernas novamente firmes foi novamente, pela última vez, ao local ao qual tanto
se dera nos últimos dias. A terra continuava como sempre, insensível, e o
frustrado jardineiro se ajoelhou, pegou um punhado de terra e a trouxe para
junto do rosto, para sentir seu cheiro. Chorou naquele momento e ficou longos
minutos soluçando deixando que as lágrimas escorressem livremente pelo seu
rosto e mergulhassem na terra, regando-a uma última vez. Quando cessou o seu
pranto, pegou, no bolso, uma última semente, levou-a até seus lábios, beijou-a,
depositou-a no caloroso seio da terra, levantou-se e foi embora sem olhar para
trás.
Passou longos
dias entretido em pensamentos mil e chegou, mesmo, a esquecer do poema feito na
terra que não conseguiu escrever uma única palavra. Os dias sucederam uns aos
outros lentamente, até que o jardineiro, certa vez, ao passear por uma rua, viu
um jardim bem-cuidado, todo repleto de flores multicoloridas, com as abelhas
voando, roubando o pólen das flores, com beija-flores dançando seu balé em
pleno ar, e lhe bateu uma enorme saudade do jardim que não tinha conseguido
fazer nada florescer. Seus pés, então, o levaram até aquele campo estéril e tal
não foi sua surpresa ao ver um imenso campo florido diante de seus olhos. Fechou
os olhos com força, pensando que eles lhe pregavam uma peça. Mas não. Ao reabri-los,
o campo estava realmente ali, real em todas as suas cores e cheiros.
O jardineiro
então andou por seus corredores tal qual um leitor percorre os versos de um
poema com o qual está a se deleitar. Reconheceu, como um poeta reconhece as
suas próprias palavras impressas num livro, as sementes que depositou, aquelas
flores que eram como um camaleão aos olhos de quem as via, mudando sutilmente
de cor dependendo de como se olhava para elas. Tocou delicadamente flor por
flor e se comoveu com a maneira como cada uma recebia os seus carinhos. Viu que
cada uma tinha uma alma e delicadeza própria, mas que dada a sua pequenez, cada
uma era forte, dotada de uma resiliência ímpar.
Caminhou por
todas as vielas do jardim, por todos os versos daquele poema que construiu com
as próprias mãos, até que chegou até seu coração, onde desabrochara não uma
flor, mas sim uma frondosa árvore. Boquiaberto com tal imponência, ele ficou
longos minutos, imóvel, contemplando-a, protegido por sua generosa sombra. Viu,
lá no alto, em sua copa, um suculento fruto e desejou prova-lo, mas não sabia
subir na árvore, apenas depositar sua semente no solo e regá-la dia a dia. Foi então
que a árvore soltou de seu caule o fruto e deixou-o cair suavemente no chão
para que o jardineiro o pegasse.
O homem
sentiu batendo em seu rosto os bons ventos que sopraram em seu favor e olhou
para as próprias mãos calejadas, tão sujas de terra, com areia sob as unhas, e
viu a imensa escultura-poema que tais mãos haviam construído e sentiu que valeu
a pena cada esforço desprendido por cada semente plantada. Sentiu o pulsar do jardim
em cada flor.
Voltou para
casa imensamente feliz, com sua integridade moral como poeta de jardins
intacta, e naquela noite teve um sono reconfortante como se estivesse deitado
num campo de flores e sendo coberto por um imenso cobertor de delicadas pétalas
de todas as cores.
Lima, eu devo dizer que esse foi um texto em que você mais expôs sua mais forte característica como escritor: a suavidade com as palavras. Aqui, talvez aqui mesmo do que em qualquer outro texto que eu tenha lido, você foi suave ao descrever e formar um ideal de jardineiro-poeta. Foi um texto gostoso de ser lido. Um texto que, por exemplo, é bom de se ler antes de dormir. Traz paz.
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