quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Folhas secas no outono - conto


Era uma floresta vastíssima, repleta de árvores altas e frondosas, algumas tão grandes que quase chegavam a tocar o céu, tão antigas quanto a terra nas quais suas raízes estavam fincadas, outras tão pequenas, frágeis e delicadas que um sopro de vento poderia arrancá-las do chão. E nessa enorme floresta, onde homem algum pisava, praticamente não havia animais, e dos poucos que se aventuravam a adentrá-la, só alcançavam as primeiras árvores da orla, as mais jovens, e lá viviam, com medo de serem expulsos pelas árvores mais antigas.
Dentro, no canto mais profundo da floresta, onde as árvores eram tão velhas quanto o tempo, tão fortes quanto a maré e tão altas quanto as montanhas, havia uma única e solitária árvore, que de tão velha já havia perdido praticamente todas as folhas, seu tronco já estava ressecado e sua seiva, já seca, não circulava por seus membros. Mas eis que um pássaro, um único e solitário pássaro, ao adentrar na floresta, a escolheu para fazer seu ninho. A árvore, já praticamente sem vida, renasceu em todo o seu esplendor. Sua seiva, quente, circulava por todo o seu corpo, seus galhos, antes quebradiços, agora se tornavam vigorosos e fortes, e as folhas, de um verdor impressionante, surgiram em torno de toda a planta. O pássaro percebeu a mudança que se operava na árvore, e todas as manhãs, no raiar do sol, enchia o ar com seu canto harmonioso, enquanto construía seu ninho no galho mais alto.
Na primavera, época em que as flores brotam por todos os cantos da floresta, época em que as árvores estão mais verdes, que o sol está quente, que as chuvas refrescam e revigoram as plantas, o pássaro colocou um ovo no seu ninho, e dia após dias velava por ele, protegendo-o. A árvore, por sua vez, o ocultava dos olhos hostis das demais plantas, no seu galho mais alto.
O pássaro, todas as manhãs, cantava enquanto, sentado sobre o ovo, esperava, ansioso, para ouvir a casca se quebrando, pelo nascimento do passarinho.
No auge da primavera, o que o pássaro tanto esperava, pelo que a árvore tanto ansiava, aconteceu: nasceu o passarinho. E seu canto, cheio de vida, de força, de beleza, de harmonia e de paz, chegou a todos os cantos da floresta. O sol saiu de trás das nuvens, o vento parou de soprar, os rios pararam de correr e as árvores se curvaram para melhor escutar aquele maravilhoso cântico em louvor a vida.
E o passarinho cresceu em todo o seu esplendor. Voava por todos os cantos da floresta, e quando estava cansado, voltava para sua casa, para seu ninho, onde encontrava a paz e o conforto de que necessitava.
As estações do ano se sucedem umas as outras, e no verão os dois pássaros, mamãe e filhote, saíam juntos para passearem por toda a extensão da floresta. Nessa estação, os dias são mais longos e quentes, e a árvore sentia-se solitária, contando as horas do dia, olhando o sol descer no horizonte, esperando seus pássaros voltarem, para apaziguá-la com suas vozes, para aquecê-la com seus cantos ao final de cada tarde.
Mas o destino, cruel como só ele o é, fez com que o passarinho voltasse num final de tarde sozinho. Pousou triste em seu ninho e naquela tarde não cantou, o que também não fez por vários dias. A árvore, desesperada, procurou consola-lo, mas nada que fizesse poderia abrandar a grande dor que o passarinho sentia em seu pequenino coração. Ele não cantou por dias a fio, e a árvore começou a definhar, voltou a ser aquela planta caquética que havia sido antes do pássaro construir um ninho nos seus galhos.
No auge do verão, quando o calor do sol alcançava seu pico, o passarinho finalmente saiu de seu ninho e, ao olhar pra trás, viu o deplorável estado em que a árvore se encontrava: sem vida, sem força e sem brilho. Ele abriu suas coloridas asas e voou, mas voou tão alto que por pouco não foi queimado pelo sol, e lá do alto, ele cantou, com a voz vindo do fundo de sua alma, para que o mundo todo pudesse escutar, para que a sua árvore pudesse ouvir e novamente renascer. Ao descer, ao pousar nos galhos da árvore, o passarinho percebeu que as folhas novamente ganharam vida, que a vida voltava a pulsar dentro da planta.
E todos os dias o passarinho saía, voava livre pelo céu e cantava.
Mas eis que final do verão, quando o sol já não mais aquecia, quando nuvens negras começavam a cobrir o sol, quando um vento forte e gelado começou a soprar, o pássaro viu, ao longe, voando muito alto, outros iguais a ele, que migravam em busca de um sol mais quente. Uma única e solitária lágrima brotou de seu olho e rolou pela sua face ao saber o que tinha que fazer. Olhou, então, para a árvore, e cantou em seu louvor. Era uma canção nunca antes cantada, triste, comovente, repleta da saudade que estava por vir.
E no início do outono, o passarinho abriu suas asas e voou, para longe, levando em seu peito lembranças e saudade.
As folhas da árvore desprenderam-se de seus galhos assim como as lágrimas se desprendem dos olhos, tamanha a saudade que sentia de seu passarinho. Muitos de seus galhos caíram, sua seiva como que ressecou em seu âmago, e a vida só a muito custo continuava a pulsar dentro da planta. O chão, aos pés da árvore, ficou repleto de folhas secas naquele outono. O vento frio, cortante, roubava o pouco de calor que ainda restava na planta.
O inverno chegou, e com ele as chuvas, que a tudo e a todos castigava.
Pingos d’água caíam na copa da árvore e escorriam por todo o seu corpo, como as lágrimas escorrem ao longo de uma face, e iam cair no chão. Raios caiam sobre as árvores próximas, e a árvore, sozinha, era a única não alvejada, por mais que desejasse que sua vida lhe fosse roubava, pois ela não fazia mais sentido.
Mas o inverno, assim como veio, foi embora e logo no primeiro dia da primavera, logo quando o primeiro raio de sol surgiu por entre as nuvens e incidiu diretamente sobre a árvore, quando ela sentiu novamente o calor, quando imaginou já não estar mais viva, ouviu, ao longe, o barulho de asas batendo, de pássaros voando livres pelo céu azul, retornando para suas casas.
A árvore, exultante, agarrou o último e único fio que a mantinha presa a vida, e reviveu ao reconhecer, ao longe, o cântico de seu pássaro, que voltava para seu ninho, para a sua casa.

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