sábado, 5 de janeiro de 2013

O pior de todos os medos



Abre os olhos e sente desnorteado. Não sabe onde está, que dia é, que horas são, não sabe sequer quem é! Sua visão demora a se normalizar e pisca os olhos com força. Respirar é difícil e o ar que entra em seus pulmões e se espalha por todo o seu corpo, oxigenando suas células parece pesado. Sente um gosto ruim na boca e sua garganta dói. Abre a boca para falar algo, para chamar alguém, mas por quem deveria chamar? Solta um som que vem do fundo de seu peito que mais parece um grunhido, um som não humano, e só o que ouve como resposta é o eco desse próprio som que emitiu. Espera um longo tempo deitado com os ouvidos atentos a qualquer som que indique a aproximação de alguma pessoa, mas tudo o que consegue ouvir é o silêncio e o do vento que entra sem pedir permissão por alguma janela deixada aberta em algum canto naquele lugar onde ele estava.
            Ainda com os olhos fechados ele tenta se lembrar de algo que o faço se lembrar do que aconteceu antes de pegar no sono. Só algumas vagas lembranças lhe vem à mente. Lembra bem da sensação de medo que sentia, da sensação do coração batendo acelerado, ameaçando sair pela sua boca ou explodir dentro de seu peito. Está correndo, fugindo, com outras pessoas, mas não se lembra quem são elas, lembra unicamente que está com muito medo, mas que não pode demonstrá-lo, pois há pessoas, ali, que dependem e confiam nele, na coragem que ele não tem naquele momento. Não sabe há quanto tempo foi aquilo nem se lembra do que o fez sentir tanto medo.
Abre lentamente os olhos para ver onde está, o que há ao seu redor. Encontra-se num quarto escuro e está deitado sobre uma cama cujo colchão está sujo e fedendo. A porta encontra-se aberta. Chama novamente, com sua voz rouca, mas não ouve nada como resposta. Tenta se levantar, mas não consegue. Suas mãos e pernas estão amarradas com correias de couro. Não tem forças para rompê-las, então torna a chamar por um alguém. Grita. Não chama por nome algum, pois não se lembra sequer do próprio nome, quanto mais do nome de pessoas que deveriam estar ali e poderiam ajudá-lo e explicar tudo o que está acontecendo. Grita, grita e grita até sua garganta doer ainda mais, mas ninguém aparece. Está suado, sente-se fraco, mas tenta se mexer para se libertar.
De tanto puxar e mexer, consegue libertar um braço, pois o couro estava ressecado e quebradiço. Depois consegue soltar o outro braço. Só esse esforço o fez se sentir extenuado a ponto de perder a consciência.
Acorda sobressaltado, sem saber por quanto tempo ficou desacordado. Já é noite, isso ele sabe, pela luz prateada da lua que ele vê através de um buraco no teto, e pela temperatura, que está mais amena. Senta-se na cama e estica o braço para soltar as pernas. Quando consegue, deita-se de novo. Qualquer esforço que faz, o deixa mais sem força do que já está. Fica um longo tempo deitado, respirando fundo, tentando recuperando as energias. Sente fome, sente sede, sente-se inteiramente desnorteado. Tenta buscar novamente na memória algo sobre o que aconteceu, sobre quem é.
Lembra-se do momento em que, de tanto fugirem, encontram um alívio, algo que julgam uma salvação, como uma ilha em pleno oceano numa noite de mar tempestuoso, quando veem uma cidade aparentemente deserta. Ele guia aquele grupo, que começou tão numeroso, mas que se reduzira a tão poucos. Onde ficaram os outros, ele não consegue se lembrar. Ainda sente medo, mas já consegue controlá-lo, não se deixa tomar por ele. Olha para os rostos daquelas pessoas e só vê medo expresso neles. Olha para o longe, de onde fugiram, e só vê uma espessa e escura névoa cobrindo tudo. Dá as costas àquilo que lhe dá tanto medo, de onde havia fugido, e entra na cidade. São poucos os que restaram e todos tem medo de se separar, mas precisam cada um ir para um canto, buscar ajuda, ver se encontram alguém naquela cidade. Cada um segue em uma direção, e dali a alguns minutos voltam para a pequena praça no centro da cidade, onde haviam ficado de se encontrar. Ninguém encontrou nada, e alguns demoraram a voltar, enquanto outros sequer voltaram. Ficaram, os que voltaram, esperando durante longos minutos, chamando pelos que haviam sumido, e não ouvindo resposta, resolveram, juntos, irem procurá-los. Andaram pelas ruas desertas, entraram em casas que foram reviradas antes da fuga daqueles que um dia moraram ali, mas não encontraram qualquer sinal de viva alma.
Sentiu uma dor aguda no peito, o que cortou bruscamente suas lembranças. Tudo o que sentia era dor, tanta que acabou perdendo a consciência novamente. Quando acordou, pouco depois, a lua estava encoberta por uma nuvem escura, ele pôde perceber isso pela buraco no teto. Sentiu medo e um estranho pressentimento lhe tomou e lhe fez gelar o sangue em suas veias. Seu coração começou a bater descompassado e um suor frio começou a brotar de sua têmpora. A respiração tornou-se difícil e ele se levantou de uma vez, o que lhe causou uma tontura. Sentado na cama, pôs os pés no chão e tentou se levantar, mas acabou indo ao chão, pois não tinha forças para se manter de pé. Mas tinha que fazer algo, então, se arrastando foi até a porta e a fechou, ficando com as costas apoiadas a ela, tentando se proteger daquilo que estava do lado de fora e que poderia vir a encontrá-lo. Ficou ali, sentado, quase sem respirar, tentando controlar as batidas do seu coração, com os ouvidos atentos a qualquer som que viesse do lado de fora. Ouviu apenas o barulho de um vento que passou cortante pelo corredor carregando e gelando o que havia pela frente. Ele tremia por inteiro, com medo, com o coração batendo tão forte que chegava a lhe doer os ouvidos.
A lua já havia dado lugar a um sol que brilhava com uma luz mortiça, que quase nada aquecia, quando ele deu por si ainda sentado naquela posição incômoda, tremendo, com medo. Tentou se por de pé, usando a porta e a parede como apoio, mas caiu, fazendo barulho, o que fez o medo de ser descoberto ficar ainda maior. Não conseguia controlar seus braços e pernas, tamanho era o tremor que tomara seus membros. Deitado em posição fetal, segurou as próprias pernas.
Naquela posição, tremendo daquele jeito, ele se lembrou de quando restavam só mais dois ou três de todos aqueles que ele guiava, dois ou três que continuavam vivos e sãos apesar de tudo pelo que passaram. Fugiam de cidade em cidade, atravessando florestas, bosques, rios, subindo montanha, descendo desfiladeiros, tudo para fugir e sobreviver. O medo os perseguia o tempo todo. Estavam exaustos e famintos, a ponto de desistir e se deixarem serem pegos por aquilo do que fugiam. Mas o medo os impelia a continuar naquela fuga que, no fim das contas, não iria resultar em nada, pois, no fim das contas, iriam ser pegos e aconteceria com eles o mesmo que acontecera com todos os outros. Continuavam, sempre, a correr, tentando ficar perto um do outro, mas aconteceu que acabaram se perdendo, até que ficou só ele e um outro. Chamaram pelos que haviam ficado para trás, mas não ouvindo resposta alguma além do barulho daquele vento, resolveram continuar a correr numa fuga desenfreada, até que encontraram uma casa no alto de uma colina. Abriram a porta e entraram. Fecharam a porta usando umas cadeiras e móveis velhos. Andaram pé ante pé pela casa, olhando os cômodos, até que ele viu aquela cama tosca, velha, com colchão sujo, e disse que não aguentava mais correr, mas que para isso precisaria ser amarrado. O outro poderia ir, fugir até onde conseguisse, mas ele não, queria se entregar. Seus membros doíam, estava esgotado física e mentalmente, e não queria mais fugir, queria se entregar e ficar ali, e esperar que aquele ou aquilo de que fugiam, viesse pegá-lo. O companheiro não queria, mas ele insistiu, e se deixou amarrar. O outro ainda hesitou em ir embora ou ficar ali, mas o seu instinto de sobrevivência lhe disse que continuasse a fuga. Despediram-se com muitas lágrimas. Pouco depois, um grito na noite, uma voz para quebrar o silêncio das trevas.
Ele, então, se lembrou de quem era, mas não teve tempo para passar as boas lembranças da vida diante de seus olhos, pois ao abri-los e se dar consciência de tudo pelo que passara, a porta se escancarou, sendo arrancada de por mãos invisíveis. Ele não viu nada até da escuridão entrar no quarto e lhe tocar. Sentiu os dedos longos e frios lhe apertando. Sentiu o peso no peito lhe oprimindo, impedindo-o de respirar. Num último átimo de consciência, usando de todas as poucas forças que ainda lhe restavam, tentou gritar, mas o grito morreu sufocado em sua garganta. Fora engolido pela escuridão que trazia escondido o seu seio o pior dos medos já concebido pelo Homem.

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