domingo, 20 de janeiro de 2013

A morte das lembranças



O amor o mantivera vivo por todos aqueles longos anos. Quando se sentia cansado, bastava fechar os olhos e relembrar de sua infância, do bairro em que viveu, da casa em que nasceu, dos barulhos e risos. Enquanto estava se lembrando, ele se pegava rindo sozinho ao sentir um vislumbre da felicidade que sentira em tais momentos, e isso, essas lembranças, lhe acalmavam a alma, era com um elixir de uma eterna juventude: sempre que precisava, relembrava de sua infância e juventude, e ele se sentia rejuvenescer.
            Mas naquele dia, já tão avançado em sua idade, ele não queria rejuvenescer apenas por lembrar, não queria rejuvenescer apenas sua alma: precisava algo mais, ver com seus próprios olhos e caminhar descalço por aquelas ruas tão suas conhecidas. Ele precisava se sentir novamente o menino que fora um dia.
            Sentia-se e estava ficando velho, e só fechar os olhos e lembrar-se dos momentos tão felizes que vivera já não eram tão claros, e ele, aos poucos, começava a se esquecer daquilo que o mantivera tão vivo durante tanto tempo. A memória já não era a mesma, já não tinha a mesma clareza e força, e ele sentia as boas lembranças escoarem por entre seus dedos juntamente com sua vida. Por isso pedira ao seu filho mais velho que o levasse à sua antiga casa, para visitar seu antigo bairro.
            No carro, no trajeto, o velho homem olhava pela janela, mas nada via da paisagem que passava velozmente. Seu pensamento vagava livremente sem se deter em nenhum lugar, em nenhuma lembrança. O filho havia percebido a melancolia do pai e a todo instante tentava fazê-lo falar algo, mas ele a medida que se aproximava de sua antiga casa, mais e mais se refugiava em seu silêncio.
            Longas avenidas que cortavam a cidade de ponta a ponta acabaram por levá-los, pai e filho, aquela região distante, desconhecida para um, enquanto para o outro só era conhecido através de vagas lembranças.
            O velho homem, agora com a atenção voltada para o que via ao seu redor, olhava de um lado para o outro, tentado reconhecer algum ponto que remetesse ao velho bairro onde vivera, mas por mais que olhasse, nada reconhecia. Fechava os olhos com força, tentando lembrar, mas quando tornava a abri-los, não reconhecia nada do que via ao seu redor. Não havia mais árvores, não havia mais as ruas de terra, não havia mais campo de futebol algum, por mais que procurasse naquele bairro distante onde haviam parado. Abriram as portas e desceram, pois seria mais fácil encontrar aquela antiga casa caminhando pelas ruas do bairro e perguntando as pessoas.
            As ruas estavam cheias, mas não de pessoas, como outrora, mas de carros, que passavam a toda velocidade, e os poucos transeuntes que ousavam caminhar por aquelas ruas, iam tão apressados que sequer percebiam aqueles dois homens, um mais jovem apoiando o outro, que parecia envelhecer décadas a cada passo que dava. O idoso homem retirou os sapatos, na vã tentativa de sentir em seus pés o chão que pisara há tempos, mas tudo o que conseguiu foi machucar os pés nas pedras duras do calçamento. Parou diversas vezes para massagear os pés. Seu filho insistiu para que ele voltasse a calçar os sapatos, mas ele não quis. Caminhava distraído, absorto com tudo que via, tentando reconhecer algo, uma casa que seja, que pudesse lhe servir de algum norte que o guiasse até onde precisavam chegar.
            Pai e filho caminhavam de mãos dadas, mas em papeis trocados, pois era o filho quem tentava, naquele aperto de mão, passar segurança ao pai, ensinando-o onde deveria ir, onde pôr o pé.
            Passaram longas horas caminhando por ruas todas iguais que eram tão diferentes daquelas que o velho homem se lembrava.
            As lembranças que pretendia reavivar ao visitar aquele bairro estavam morrendo lentamente em seu coração. Todos os cantos pelos quais tinha caminhado não mais existiam e as pessoas que em sua inocência imaginava reencontrar não estavam mais ali. Senti-se cada vez mais velho a cada passo que dava. Seus pés pesavam, sua garganta estava seca e se esforçava para não deixar transbordar as lágrimas que começavam a escorrer vindas de sua alma.
            De tanto andar por tantas ruas, seus pés acabaram por levá-los a uma rua que parecia esquecida pelo tempo, localizada no coração do bairro. O velho homem sentiu seu coração disparar quando reconheceu, na esquina, traços de uma casa da qual se lembrava vagamente, que, apesar das inúmeras reformas feitas ao longo dos anos, continuava sendo aquela mesma casa de esquina que ele e seus amigos, quando crianças, costumavam dizer que era mal-assombrada. Ele parou em frente à casa que agora não lhe inspirava mais medo algum. Sabia e sentia que estava chegando perto de sua antiga casa, mas seus pés cada vez pareciam pesar mais e mais.
            Seguiram por aquela rua que parecia abandonada por sua própria alma. O velho homem caminhava devagar, segurando com força a mão do filho e a medida que se aproximava da casa que ficava bem no meio daquela rua seus passos ficavam mais lentos, como se seus pés se negassem a levá-lo até ali, como se quisessem poupá-lo de uma dor ainda maior do que aquela que sentia no peito. Mas ele, apesar das dores e do peso dos pés, continuava caminhando.
            Demoraram uma eternidade para caminhar poucos metros, e quando chegaram a frente daquela casa em ruínas, o velho homem sentiu suas pernas fraquejarem e teve que ser amparado pelo filho. Diante dele estava a casa que ele havia nascido e vivido os melhores momentos de sua vida. Ali não havia pessoas, não havia barulho, não havia gritos e sorrisos, ali havia apenas uma casa velha e em ruínas. Ao ver aquela triste cena diante de seus olhos, os olhos do velho homem não foram fortes o suficiente para conter aquela torrente de lágrimas. As lembranças que a custo recordava, lhe tomaram de assalto repentino ao ver que o local onde todas elas se concentravam não mais existia, tornando-se apenas uma ruína, um reflexo impreciso daquilo que um dia fora.
            Soluços convulsionavam o peito do homem, que agora deixava as lágrimas banharem seu rosto, fazerem seu curso natural sulcando suas rugas e lavarem a sua alma. Quando se sentiu mais aliviado do pranto, olhou para o filho e apertou sua mão.
            - Vamos embora – disse ele e calçou os sapatos. Aquele chão lhe feria os pés.
            Seguiram calados, cada um absorto por seus próprios pensamentos, e o velho homem sentindo um peso no peito por sentir que as lembranças que por tanto tempo cultivadas, aquelas lembranças que o faziam rejuvenescer estavam morrendo, pois os locais onde nasceram não mais existiam e só habitavam nos confins de sua memória, cada vez mais difíceis de serem resgatadas.

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