domingo, 6 de novembro de 2011

Uma História em Cinco Vozes

O Rio

            Nascido na mais alta montanha, brotando da velha, dura e áspera rocha, um milagre de vida. Corro caudaloso, descendo das maiores alturas, tendo que atravessar sinuosos caminhos, ora virando abruptamente para a direita, ora tendo de saltar do alto, formando uma cachoeira, para cair sobre o chão duro. Atravesso caminhos nunca antes visto por olhos humanos, de tão inóspitos que são, tendo que sentir em meu corpo pedras duras, que me ferem ao mesmo tempo em que me fortalece. Sou fonte de vida de inúmeros seres, sinto pulsar em meu corpo inúmeros corações. Minhas águas são cristalinas e frias. No sopé da montanha corro tranqüilo, muito devagar, quase não me movendo, é onde descanso antes de voltar a minha corrida desenfreada em direção ao mergulho na imensidão do mar azul.
            É manhã e o sol aparece encoberto por algumas nuvens, preguiçoso, ainda não de todo levantado no horizonte. Teima em não querer nascer para um novo dia. Sua luz ainda fraca, seu calor ainda não aquece, mas, mesmo assim, os pássaros cantam em seu louvor. Como eu gosto de pássaros! Sinto-me fascinado por suas belezas, por suas penas multicoloridas, por suas vozes que enchem o ar. Como invejo o céu por tê-los em seu seio, por senti-los em seu corpo, por fazê-los se sentir livres; e o sol, por ter, todas as manhãs, músicas cantadas em seu louvor, entoadas em suas vozes harmoniosas! Eu, por meu lado, tenho em meu corpo peixes, que os amo, por serem meus filhos, e os abrigo em meu âmago. Mas eles não cantam para mim, pois suas vozes não podem ser ouvidas.
            Ora corro, ora me arrasto, ora paro, aonde pessoas às vezes vêm e se deixam banhar por minhas águas frias e cristalinas.
Há um homem sentado sobre uma pedra à beira de onde descanso, sonolento à luz do sol desta manhã cinzenta, com as pernas suspensas no ar. Ele parece distraído, olhando para o céu, sentindo o sol encher seus olhos de luz, sentindo a brisa acariciar seu rosto e seus ouvidos inundados pelo canto dos pássaros. Lanço uma pequena onda em sua direção, que não o toca. Então formo outra, maior, que ao chegar perto dele, estico meus dedos para tocá-lo. Meu toque, frio, o assusta. Mas ele estica os pés, descalços, até me tocar. O toque de seus pés, quentes e macios, me afagando, me acalenta. Deixo que ele brinque com minhas águas, formando pequenas ondulações na superfície, balançando os pés para frente e para trás.
            Ele desce da pedra onde estava sentado e deixa as pernas submersas. Ali meus braços não alcançam mais do que a altura de seus joelhos, mas me sinto como se o abraçasse inteiramente. Eu o invejo por ele possuir duas pernas que podem levá-lo a qualquer lugar, que fazem dele um homem livre, enquanto eu, aqui, estou preso a esse meu corpo e meus olhos nunca verão outro lugar que não estes a que estou encarcerado. Sinto-me pequeno em minha finitude, comparado a esse homem livre.
            O homem se inclina em minha direção e com suas mãos em concha apanha um pouco de minhas águas para banhar seu rosto. Sinto sua pele quente e seu cheiro, seus pêlos eriçados pelo toque frio de meus dedos. Então ele se abaixa um pouco e olha diretamente para mim. Vejo a mim mesmo refletido em seus belos olhos azuis, tão límpidos, de um azul que me faz lembrar o céu nos dias de verão.

O Homem

            Acordo nas primeiras horas da manhã com o canto dos pássaros e um raio de sol, que passa pela fresta da janela de meu quarto, incidindo diretamente em meu rosto. Muito preguiçoso, me sento em minha cama e espero o sono se dissipar pouco a pouco até eu acordar por completo. Saio de casa em seguida e vou até o rio mais próximo, que corre vagaroso, no sopé da montanha, e lá me sento às suas margens numa pedra, a contemplar o céu azul, infinito, sobre minha cabeça e sinto meus ouvidos se encherem do som do canto dos pássaros. Assim me sinto em paz, com a suave e fria brisa matutina a acariciar meu rosto.
            Estou perdido em meus devaneios, sentindo uma paz de espírito me invadir, quando sinto roçar em meus pés algo frio, o que me assusta. Olho para baixo, depois para frente e me dou conta do rio de águas límpidas e cristalinas que se estende à minha frente. Deixo meus olhos se perderem a distância, fixando-se num ponto longínquo, onde o rio encontra o mar. Olho para o céu sobre minha cabeça, olho para o mar ao longe e o rio à minha frente e me dou conta de minha pequenez. Sinto-me insignificante, como um grão de areia numa enorme duna à beira mar, carregada, movimentando-se ao sabor do vento.
            Tiro minhas sandálias e salto dentro do rio, que é tão raso que mal alcança meus joelhos. O toque daquela água fria faz com que todos os pêlos de meu corpo se ericem. Para espantar o frio, resolvo lavar o rosto com aquela água fria, e mergulho minhas mãos e, embora muito da água escoe por entre meus dedos, trago um pouco para banhar minha face. Quando as águas se acalmam, vejo a minha face refletida naquelas águas límpidas. Fico a me contemplar por um curto tempo e acordo de meu devaneio quando ouço, ao longe, o barulho de um trovão anunciado uma tempestade que se aproxima. Saio apressado de dentro d’água e, caminhando descalço, sinto as pedras duras e afiadas como o gume de uma faca me ferindo os pés.
            Caminhava tão apressado que por muito pouco não vi o milagre da natureza que brotava daquele solo estéril, surgido por entre aquelas pedras ásperas e duras, projetando-se para o alto, em busca de sol, luz e ar. Me abaixo para melhor contemplar aquele minúsculo e tão belo ser, aquela tão delicada e majestosa flor. Muito delicadamente, aproximo meus dedos indelicados e grosseiros de suas diminutas pétalas, e sinto o toque de seda de seu corpo. Inclino-me um pouco mais a fim de aproximar meu nariz da flor e sentir o seu delicado e inebriante perfume. Inspiro profundamente duas ou três vezes antes de me reerguer. Fico de joelhos a contemplá-la. Como a invejo por ser tão bela, tão delicada e determinada, por conseguir surgir e sobreviver a tamanhas adversidades e nascer e viver naquele terreno tão hostil e pedregoso. Aproximo novamente minha mão da flor e seguro entre meus dedos seu delicado e fino caule. Muito suavemente, eu o seguro entre meus dedos para arrancá-la daquele chão. Seus pequenos espinhos me furam e algumas gotas de sangue já surgem por entre os dedos, mas suporto a dor, pois pretendo ter para mim aquela efêmera beleza, aquela vida, que passa tão rápido quanto um piscar de olhos.
            Ao colher aquela flor, a levo novamente até próximo a meu rosto para sentir novamente seu perfume. Sinto suas delicadas pétalas em contato com meus dedos. Ergo-me sobressaltado ao escutar outro trovão, dessa vez mais perto e olho para o céu e vejo as nuvens carregadas que se aproximam.

A Flor

            Minha semente foi deixada aqui, nesse solo estéril, cheio de pedras e duro, não sei por quem. A germinação foi difícil, mas consegui lançar raízes profundas nesse chão; raízes tão fortes que eu julgava que nada poderia me tirar daquele lugar. Mas eu não queria só germinar, eu queria nascer, ver a luz do sol, sentir o vento a me acariciar.
            Pouco a pouco fui crescendo e me levantando, e só ao chegar a superfície me dei conta do lugar em que tinha germinado. Era noite quando eu saí. Senti o vento frio, cortante, que me congelava e machucava. Olhei para o céu azul estrelado, mas meus olhos ainda pouco viam, pois minhas pétalas não estavam prontas, ainda, para serem abertas para verem e serem vistas e admiradas. Para me proteger, criei espinhos ao longo de todo o meu corpo.
            Numa manhã fria, quando o sol mal acabara de nascer, foi que desabrochei. E a partir daquele dia, todas as manhãs, logo que os primeiros raios de sol surgiam no horizonte, eu via os pássaros voando livremente pelo céu, cantando em louvor ao sol, ao nascimento de um novo dia. Alguns se aproximavam de mim e ficavam a me fitar, como que estranhando a minha presença ali, como se eu fosse um corpo estranho, uma rara beleza surgida naquele lugar. Logo outros pássaros se aproximavam, como se eu representasse, ali, um oásis no meio daquele deserto. Insetos também se aproximavam de mim, faziam com que o ar se enchesse de sua cantoria monocórdia, recolhiam meu pólen para depositá-lo em outra flor, como se esses tão diminutos seres vivos, tão frágeis e tão livres, tivessem a tarefa de levar o pouco que eu tinha para oferecer. Mas de quem eu mais gostava era dos beija-flores, tão belos, tão perfeitos em seu balé sincronizado a que dançavam em pleno ar. E seus beijos, tão inebriantes, faziam com que eu, em meu devaneio, desejasse me livrar de minhas raízes e voar junto com eles, tornar-me um beija-flor voar dançar livremente pele céu e beijar outras flores iguais a mim.
            Numa manhã em que o sol mal havia nascido no horizonte e nuvens encobriam o céu azul, um homem aproximou-se. Muito delicadamente, aproximou seus dedos de mim e acariciou minhas pétalas, inclinou seu rosto e deixou-o tão próximo ao meu que senti o seu cheiro. Podia sentir a maciez de sua pele, o calor de seu corpo. Ele ficou um tempo a contemplar-me. Estendeu sua mão para me tocar, segurando firmemente meu corpo. Meus espinhos, que eu julgava tão fortes, se mostraram tão frágeis e delicados quanto minhas pétalas. Lutei contra ele, mas minhas forças eram insuficientes para vencê-lo. Meus espinhos, apesar de frágeis, feriram a sua pele e seu sangue, rubro, maculou minhas pétalas brancas.
            Após arrancas minhas raízes, ele voltou a me fitar e me trouxe novamente para junto de si, a fim de sentir o meu cheiro. Agonizando, eu o odiei com todas as forças que ainda me restavam por sua mesquinhez, por ele me querer para si, por desejar ter a minha beleza, pois era apenas isso que seus olhos viam: beleza.
            Colocou-me junto a seu peito. Eu ouvia o seu coração bater acelerado e sentia o calor de seu corpo. Seus punhos, cerrados, me escondiam, não me deixavam ver o sol, e quando se abriram ele me entregava a outra pessoa, a uma mulher, que sorriu ao me ver. Meus espinhos feriram sua delicada mão, quando ele me entregou, mas ela não me soltou. Tocou minhas pétalas com as pontas dos dedos e sorriu. Seu sorriso era tão lindo quanto o amanhecer. Aproximou seu rosto do meu e me beijou. Seus lábios, seu beijo era tão delicado quanto o dos beija-flores. Ela era tão linda, tão pura e tão verdadeira que eu a invejei, que eu a quis para mim, queria lhe dar raízes para mantê-la para sempre comigo.

A Mulher

            Normalmente o céu, naquela época do ano, se mostrava de um azul tão profundo, tão belo, de nuvens tão brancas. No entanto, naquele dia ele mal se mostrava por entre as nuvens, tão carregadas, de um cinza escuro, feio. Estava começando a me preocupar, com meu amado que não chegava. Escutei ao longe o ribombar do primeiro trovão, que me fez estremecer por dentro, com medo da chuva que se avizinhava. Temi que ele não chegasse e eu fosse obrigada a ficar sozinha naquela casa, que ficava tão grande, quando ele não estava. Foi então que resolvi ir a seu encontro, pelo mesmo caminho que ele percorria todas as manhãs em que vinha se encontrar comigo. Mal andei alguns metros quando as primeiras gotas d’água começaram a cair do céu. A princípio tão finas e agradáveis que mal molhavam meu rosto, mas sim me acariciava a pele como o suave toque dos dedos de um amante.
Andei mais alguns metros sob aquela chuva que começava a precipitar com maior intensidade, e instintivamente comecei a apressar os passos e, sem que percebesse, logo estava correndo. Quando o vi, à distância, correndo, meio inclinado, com os punhos fechados sob o queixo, como que a proteger algo, abri meus braços para recebê-lo. Assim que ele olhou para frente e me viu, abriu um sorriso. Vê-lo sorrir era o mesmo que ver as nuvens que encobriam o céu se abrirem e o sol aparecer majestoso para iluminar o meu dia. Abraçamos-nos longamente e, ao nos afastarmos, ele me mostrou o que trazia consigo, protegendo com tanto cuidado da chuva: uma linda e delicada flor. Possuía uma haste longa, de um verde vívido, e lindas e delicadas pétalas brancas. Eu não resisti e a segurei em minhas mãos com tanta pressa que me esqueci de ter cuidado com seus espinhos, que me feriram a mão. Apesar da dor que sentia, eu não a larguei. A fascinação de segurar algo tão belo em minhas mãos compensava qualquer dor causada por qualquer ferimento.
            A flor era linda, como eu jamais havia visto. Pena que sua beleza fosse passageira, que sua vida durasse tão pouco. Mas, mesmo assim, eu me sentia fascinada e invejava as flores, pois elas, mesmo em suas vidas tão curtas, as viviam de forma tão intensa, brilhavam tanto em sua beleza que permaneciam vivas para sempre nas memórias daqueles que as contemplaram.
            A chuva continuava a cair a minha volta e sobre minha cabeça, os trovões continuavam a ribombar e os raios a cair, quando me dei conta de que estava inteiramente encharcada e que meu amado me esperava, pacientemente, a meu lado, para voltarmos ao aconchego do lar. Segurei sua mão e sorri. Começamos a correr juntos, quando tropecei e na queda acabei largando a flor que ele me presenteara. Não a encontrei, pois a chuva caía de forma tão intensa que mal se podia ver o que havia a frente. Ergui-me triste por ter deixado escapar aquela flor tão bela, e fui para casa, tendo, sobre minha cabeça, o céu que desabava, como se estivesse a chorar pela perda daquele ser vivo tão belo e delicado, como se chorasse por não mais poder contemplar aquela tão sublime e delicada beleza.

A Nuvem de Chuva

            Daqui de cima, do alto da montanha, para onde fui trazida pelos ventos, vejo o imenso vale a se descortinar a minha frente. Tão belo, com seu rio que nasce do coração da montanha e percorre longos e tortuosos caminhos até poder descansar, tranqüilo, na planície, até ter que reiniciar sua descida, rumo ao mergulho no mar azul, ao longe. Olho o sol, nascendo às minhas costas, e sinto seu calor a me aquecer, ouço as aves cantando em seu louvor. Desejo poder me aproximar dessas aves, tão belas e diminutas, senti-las voando ao meu redor, me tocando, brincando com meu corpo.
            O canto das aves me atrai, sempre belo, harmonioso, e resolvo me aproximar. Mas quando o faço, elas fogem, pois acabo lançando uma enorme e escura sombra aos meus pés, encobrindo a terra, roubando assim a luz do sol, e é em louvor dele que os pássaros cantam. Faz-se um silêncio sepulcral, e me sinto culpada por isso. Sinto-me triste, como jamais me senti. Tudo que eu mais queria era me aproximar dos pássaros, poder tocá-los e senti-los voando ao meu redor. Mas eles fogem de mim. Algumas lágrimas me vêm aos olhos, e não consigo suprimi-las, e elas acabam por se precipitar, indo cair lá embaixo. E quanto mais choro, mais os pássaros fogem de mim e maior é a minha dor. Quero fugir, ir embora, para longe, para o lugar mais longínquo onde os ventos possam me carregar, mas o enorme peso em meu peito, o ferimento causado pela decepção que sofri me impede que me reerga e retome o meu caminho.
            Estou tão baixa que quase posso tocar com meus dedos as copas das árvores mais altas, onde estão escondidos os pássaros a quem tanto amo. Mas eles estão tão assustados que mal se movem. Olham para o alto e não me vêem, pois só têm olhos para o sol, a quem procuram desesperadamente.
            Um pouco mais abaixo vejo uma mulher, que mesmo assustada, enfrenta-me, foge e me procura, e sinto todas as minhas lágrimas percorrendo seu corpo e sinto seu calor. Ela se sente feliz ao encontrar seu amado. Os dois se abraçam e se beijam. Ela recebe das mãos dele um presente, uma linda flor, de um branco que fora tão imaculado quando eu fui um dia, mas que está manchada, da mesma forma que estou.
            A mulher se sente feliz. E eu posso sentir isso, pois sou parte dela. Ela se deixa banhar por minhas lágrimas, por um tempo, antes de voltar para o abrigo de sua casa, como se a fugir e se esconder de mim.
            Em sua fuga, ela acaba deixando escapar por entre seus dedos a sua tão preciosa flor, que é carregada por minhas águas em direção ao rio.
            Sinto-me leve, com aquela flor em meus braços, indo em direção ao rio. Aquela flor é como um canto de louvor que entrego ao rio, como os pássaros entregam seus cantos ao sol.
            Eis que, em minha queda, tendo a flor em meus braços, antes de mergulhar por inteiro e me unir ao rio, olho para o alto e vejo surgir por entre as alvas nuvens que surgem no céu um arco-íris, tão lindo e multicolorido quanto são as penas dos pássaros que voam livres no céu azul depois que me entrego aos braços do rio.

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