O sol mal aparecia por entre as
nuvens e não ventava naquela manhã; os galhos das árvores de frente à grande
construção não se moviam e não se ouvia o canto dos pássaros. No alto, nas
guaritas sob os altos muros da penitenciária os guardas, cansados daquela
monotonia, nem atentaram àquele homem que passava pela primeira porta e
caminhava, de cabeça baixa, pelo pátio. Usava roupas velhas, que já tinham
perdido as cores há tempos, mas que estavam limpas e bem passadas, como se
tivessem sido guardadas especialmente para aquele dia. Seus cabelos estavam
grandes e sua barba à fazer. Mantinha o semblante sério e olhava sempre pra
frente, sem nunca desviar os olhos. Carregava às suas costas apenas uma pequena
bolsa, onde estavam guardados apenas uns poucos objetos e duas ou três mudas de
roupas.
Esse
homem havia contado cada dia que passara confinado naquela prisão. Tinha plena
consciência de sua culpa e cometera os delitos que cometera por convicção
naquilo que acreditava, mas por uma infelicidade, no dia em que havia sido
fixado para se deflagrar a revolução, um alguém os delatara e os policiais,
muitos policiais, apareceram, distribuíram pancadas, socos, atiraram para o
alto e até em direção à alguns do grupo revolucionário. O homem se lembrava bem
do som dos tiros, como um eco em sua cabeça, lembrava do barulho do grito das
mulheres, da agitação dos homens, da preocupação estampada na face de cada um
de seus amigos. Vira gotas de suor escorrendo pela face de cada um dos que
estavam a seu lado. Mas ele, mesmo sabendo do perigo que corria, não fugiu.
Ficou ali, sozinho, um homem contra centenas de policiais. Fora preso, julgado
e condenado. Recebera a opção de ter a pena abrandada, caso resolvesse cooperar
com as autoridades dizendo os nomes dos que tinham arquitetado aquele golpe,
frustrado graças a intervenção da polícia. Mas o homem, sério perante o juiz,
manteve-se firme em sua resolução e nada falou. Recebeu com o peito estufado a
pena que lhe cabia como insurreto. E por ter sido o único pego, por não ter
colabora, fora lhe dada uma pena exemplar.
Em
nenhum momento o homem se arrependeu, em nenhum momento ele guardou rancor
daqueles que estavam fora, em liberdade, enquanto ele estava ali, enclausurado
naquela prisão de paredes tão rígidas e altas quanto uma montanha. Imaginava
que eles, que fugiram no momento do aparecimento da polícia, dariam
prosseguimentos aos sonhos de liberdade que todos cultivaram, imaginava que ao
sair daquela prisão iria encontrar as coisas tal qual havia sonhado. E todas as
noites, antes de dormir, olhava para o céu através da minúscula janela
existente na sua cela e ficava a ruminar sobre o que estaria a acontecer lá
fora, onde ele em breve estaria.
E
de tanto contar os dias, finalmente chegava o de sua liberdade. Atravessar
aquele pátio vazio, poder olhar para frente, andar de cabeça erguida era pelo
que ele tanto esperava. Quando se aproximava do grande portão da penitenciária,
viu um dos guardas, que se dirigiu a ele e o cumprimentou com um gesto, mas não
lhe dirigiu uma palavra. Fazia tanto tempo que ele não recebia uma palavra de
cortesia que se esquecera como as receberia quando atravessasse aquele pesado
portão de ferro.
O
guarda abria lentamente o portão, olhando para o homem, como se o quisesse
manter ainda mais alguns míseros segundos dentro daquela prisão, mas o homem
nada disse. Apenas observava o homem que tinha diante de si. Quando o portão
foi aberto, o suficiente apenas para ele passar, o homem olhou para trás. Era a
primeira vez que o fazia, como se para se despedir daquele lugar que não
pretendia voltar nunca mais. Soltou o ar, como se não quisesse levar para fora
nada daquele lugar, nem o ar. Deu um passo, que pareceu a ele tão grande, para
fora. Ao ouvir, atrás de si, o portão se fechando foi que respirou fundo, uma, duas
e três vezes, como se para sentir o cheiro de sua liberdade. Deixou cair no
chão a bolsa e abriu os braços, como se para abraçar a própria liberdade,
restituída. Abraçou a si próprio e olhou ao seu redor, para ver todo o mundo a
sua volta. Seus olhos, desacostumados a claridade do mundo fora das paredes da
prisão, demoraram a acostumar-se, mas tão logo o fizeram, a expressão de
felicidade ao sair da prisão dera lugar a incredulidade, pois nada do que ele
imaginava encontrar aparecia diante de si. Tudo continuava do mesmo jeito, as
coisas no mesmo lugar, as pessoas, nas ruas, com os mesmos semblantes. Ele se
perguntava o que fora feito enquanto ele estivera preso, o que fora feito dos
planos de revolução.
Abaixou-se
lentamente e pegou sua bolsa. Resolvera ir procurar aqueles companheiros, tão
seus queridos noutros tempos, que com certeza lhe dariam informações sobre o
que tinha sido feito em sua ausência.
Como
um de seus grandes amigos do passado tinha um pequeno estabelecimento
comercial, onde comprava e vendia livros e discos usados, resolveu ir até lá.
A cada passo que dava, o homem percebia o
quanto tudo tinha se modificado nesse tempo em que ficara confinado. As ruas
avenidas estavam mais largas, havia mais carros nas ruas, os ônibus mais
lotados e as pessoas mais apressadas, com semblantes carregados, cansados, como
se relutassem em sair de casa para irem ao trabalho. O homem via isso em cada
face, de cada homem e mulher por que cruzava.
Não
demorou muito para chegar até o lugar que desejava, que havia,
surpreendentemente, mudado muito pouco. Salvo uma ou duas lojas, novas, tudo
continuava do mesmo jeito que dez anos atrás. Caminhou pela rua tentando se
lembrar de como eram as coisas, cada detalhe, do dia em que ali estivera pela
última vez. Ele viu um ou dois rostos conhecidos, que cumprimentou, mas estava
tão mudado em sua aparência que essas pessoas nem responderam, tomando-o como
um louco ou como um alguém que os tivesse confundido com outra pessoa. Mas o
homem, apesar da decepção de não ter sido reconhecido, não ficou triste, pois a
alegria que sentia ante a possibilidade de reencontrar seu velho amigo de
juventude era por demais intensa para que algo pudesse estragar aquele seu dia.
Caminhou
até o meio da rua e ficou parado durante um tempo, olhando para a livraria que
tinha diante de si. Consultava o endereço em sua cabeça, para ver se por acaso
tinha se enganado. Mas não. O endereço era justamente aquele. Reconhecia o
pequeno bar ao lado, que continuava do mesmo jeito, com o mesmo dono atrás do
balcão. Via, do outro lado, a pequena loja de objetos de decoração, que de tão
velhos, ninguém entrava pra comprar nada. Só em olhar para a vitrine, ver os
mesmos tipos de peças de tantos anos atrás, soube que ainda era administrada
pela mesma pessoa. Mas a loja de seu amigo, como havia mudado!
Ainda
hesitou em dar o primeiro passo em direção a livraria, que não reconhecia mais,
mas seus pés o levaram instintivamente àquele estabelecimento comercial.
Tal
não foi a sua surpresa quando viu muitas pessoas ali dentro trabalhando,
andando pra cima e pra baixo, guardando livros, vendendo-os. Procurou com os
olhos seu amigo, mas não o encontrou. Perguntou-se se ele ainda era o dono
daquela suntuosa livraria, pois, antes, lembrava-se muito bem, seu amigo era pouco
afeito a essas coisas comerciais. Tinha aquela pequena loja de livros e discos
apenas para poder sobreviver, para suster suas necessidades básicas. Lembrava
das noites em que dormira ao lado das estantes, quando voltava de uma noite de
bebedeira; lembrava que seu amigo, muitas vezes, dormia no sótão, por ter sido
despejado do apartamento em que morava por atraso no pagamento; lembrava-se,
principalmente, do homem que muitas vezes emprestava os livros, que os
distribuía às pessoas que, ávidas por conhecimento, não podiam comprá-los.
Agora, no entanto, ele via que aquele lugar tão seu conhecido se transformara
numa livraria, em que os livros tinham que ser vendidos, não mais emprestados
ou dados àqueles que queriam lê-los.
Acordou
de seu devaneio quando um vendedor o abordou, perguntando se ele procurava por
algum livro em especial, inspecionando-o de alto a baixo. O homem ficou sem
saber o que responder. Teve vontade de perguntar pelo seu amigo, quando o viu
abrir a porta e passar por ele, sem o sequer reconhecer. O rapaz, vendedor,
percebeu o olhar do homem e o deixou só.
Não
havia palavras que descrevessem a surpresa do homem ao ver o amigo. Não havia
mais nada no rosto daquele estranho que lembrasse o antigo jovem idealista, que
lutava e pregava por um mundo melhor. Seu rosto estava bem barbeado, com
cabelos cortados bem rentes. Usava roupas novas, de uma marca famosa, bem
passadas.
Enquanto
este conversava com um conhecido, o homem caminhou até onde seu amigo se
detivera para ver se aquilo que seus olhos lhe mostravam era verdade.
Passava
a mãos nos olhos, como se teimasse em não acreditar no que via. Mas era
verdade. Aquele seu antigo amigo não era mais o mesmo, havia se vendido, havia
se vendido à outras idéias.
O
homem ficou tanto tempo a fitar o seu amigo, que não conhecia mais vendo-o
daquele jeito, que acabou por chamar a atenção dele. Apertou a mão do homem com
quem conversava e se dirigiu a ele.
-
Posso lhe ajudar, amigo? Está procurando algum livro? – perguntou ele,
fitando-o nos olhos.
Os
dois homens ficaram a se olhar por um curto espaço de tempo. Um procurava no
outro traços, resquícios do idealista de outros tempos, que fora engolido, que
estava mascarado, disfarçado por trás daquelas roupas novas e bonitas, mas não
encontrava. O outro via apenas mais um louco que entrava em sua livraria, que
importunava seus clientes com sua presença e nunca comprava nada.
-
Não, amigo. Não estou procurando nada
– respondeu ele, com a voz embargada pelas lágrimas.
Para
ele, um homem que fora preso por que acreditava em um ideal, que lutara com
todas as suas forças por aquilo em que acreditava, e por isso tivera sua
liberdade tomada e sua voz calada, era doloroso ver no que suas palavras e seus
gestos deram: em nada.
Então tudo pelo qual lutara não valera nada, as pessoas que
ficaram livres para lutar, enquanto ele estava confinado entre altos muros e
grades, esqueceram as palavras ditas no passado, os motivos pelos quais
lutaram, e se venderam.
Olhou
mais uma vez para o comerciante que tinha diante de si e deixou o ar escapar de
seus pulmões.
-
Não encontrei o que procurava aqui, amigo.
Obrigado – disse ele e se retirou, mas antes tocou no ombro do amigo.
Aquele
gesto, tão seu característico de expressar gratidão aos amigos, fora
reconhecido pelo outro, que só se lembrou disso, do homem que fora preso,
depois que este se retirara. Ainda correu para a rua, a fim de encontrá-lo, mas
ele não estava mais lá. Já tinha ido embora, para onde, ele não sabia.
O homem caminhou ao léu durante horas, tanto
que perdeu a noção do tempo. Sentia-se confuso com tudo que tinha visto. Os
sonhos que havia nutrido não tinham se realizado, as sementes que ajudara a
plantar não germinaram e estavam mortas, secas, naquele solo estéril que é a
realidade. Nunca havia se sentido tão decepcionado com uma pessoa como se
sentia naquele momento, com seu amigo. Em sua cabeça passava um filme em câmera
lenta, de todos os momentos, desde o dia em que se conheceram até o dia daquela
frustrada revolução, em que fora preso e separado daqueles ao lado de quem
lutara.
Depois
de muito andar, o homem, já cansado e com fome, resolveu entrar num
restaurante. Naquela hora o estabelecimento estava lotado, de forma que ele só
encontrou lugar numa mesa nos fundos, ao lado de uma em que um grupo discutia
com uma certa exaltação. Mas o homem não atentou para o que se discutia, e tão
logo se sentou fez seu pedido ao atendente.
Enquanto
esperava seu pedido, ele ficou de olho na televisão, que estava sintonizada no
canal de um jornal local. E só nesse momento, quando o assunto abordado pela
repórter era política, foi que o grupo que estava a seu lado se calou. Todos,
tão vidrados que estavam, que um rapaz que veio trazer um pedido teve que falar
várias vezes para um dos homens, até que este tirasse os olhos da televisão e
atentasse para o que estava acontecendo ao seu redor.
Logo
uma mocinha veio trazer o pedido e ele começou a devorar sua comida. Fazia
tanto tempo que ele não sabia o que era uma refeição além daquela servida na
prisão, que aquela que ele comia agora, mesmo não sendo das melhores, lhe
parecia um manjar divino. Comeu tudo tão rápido que o atendente estranhou
quando foi chamado novamente pelo freguês de barba e cabelos grandes que pedia
outro prato. Quando a mesma mocinha da outra vez trouxe o segundo prato e o
homem preparava-se para começar a comer, acabou-se o telejornal e o grupo que
estava na mesa ao lado reiniciou a discussão, dessa vez com os ânimos à flor da
pele. Discutiam-se os assuntos políticos. E o homem parou de comer para ouvir
com atenção aquilo que diziam.
Um
dos homens que estava naquela mesa era o mais apaixonado, que falava de forma
mais calorosa sobre o assunto em questão. Esse homem estava justamente de costas
ao que escutava atentamente a conversa. Ele gesticulava, falava alto a ponto de
chamar a atenção de outras pessoas que estavam no restaurante.
“Se
um homem desse tivesse defendido a nossa causa, há alguns anos, com certeza o
resultado teria sido outro”, pensava o ex-presidiário. Era uma pena que aquele
que falava defendia um ponto de vista tão mesquinho, posicionando-se claramente
a favor dos que estavam no poder. Os outros companheiros de mesa tentavam-no
dissuadi-lo, mostrar o quanto ele estava enganado. Mas por mais que se fizesse,
por mais que se falasse, nada o demovia. “É bonito ver esse homem falar, só é
uma pena vê-lo defender algo que não vale a pena”, continuava a pensar aquele
que tinha parado de comer só para ouvir no que aquela discussão daria.
Sua
curiosidade era tamanha para ver o rosto daquele que resolveu se virar, e só
não se meteu na discussão por motivos de educação. Mas se mostrava claramente
interessado, para todos os que estavam sentando àquela mesa, no que se falava.
Os homens que
estavam à mesa viram, então, aquele que se interessava pela discussão e
resolveram chama-lo para se aproximar, e foi só então que aquele que falava
calou-se por alguns instantes, para que o forasteiro se sentisse à vontade. Os
olhos deste arregalaram-se de tal maneira que o aquele ficou a lhe fitar,
estranhando a atitude daquele homem de aparência tão peculiar. Os dois ficaram
a se encarar por um curto espaço de tempo, como se se reconhecessem. Mas os
olhos daquele que se calou só viam um homem estranho, que não lhe lembravam
absolutamente ninguém, enquanto este via seu velho conhecido de outros tempo,
um dos que lutaram a seu lado, que cultivavam o mesmo ideal, e que, no entanto,
estava ali, totalmente mudado. Seu jeito, sua paixão continuava a mesma, mas e
as idéias?! Onde estavam aquelas idéias que ele tinha no passado?! Ele também
tinha se vendido às novas idéias, à nova realidade?
Aquele que
reconheceu no outro seu velho amigo foi o primeiro a desviar os olhos. Em seu
semblante passou-se uma sombra de abatimento, de decepção. Só teve ânimo para
cumprimentar aquele que há pouco defendia com tanta convicção idéias que
combatera, um dia, em seu passado com tanto ardor e saiu do restaurante, com
cabeça baixa. E, ao passar pelo rapaz que lhe atendera, pagou sua conta e
recebeu deste algumas moedas de troco, que apoiou em seu dedo polegar e a fez
rodar, depois a jogando para o alto, dando-a como gorjeta àquele que havia lhe
atendido tão bem. A esse gesto, a esse jeito de mexer com a moeda, o outro
homem, que observava tudo, reconheceu seu velho amigo, que fora preso. E
levantou-se, para se desculpar por não tê-lo reconhecido. Mas ao tentar passar
pelas pessoas no restaurante acabou perdendo-o de vista.
O decepcionado
homem andou por horas a fio até que seu corpo inteiro se cansasse e passasse a
clamar por alguns instantes de descanso. Foi só então quando ele parou e
sentou-se num banco de uma praça. Já era tarde e as pessoas começavam a se
dirigir para suas casas após um longo e estafante dia de trabalho. O homem
ficou a observar essas pessoas sem ser notado por nenhuma delas. Deixou que seu
corpo descansasse, que sua alma se aliviasse, momentaneamente, do que tinha
passado naquele dia, das decepções que tivera. Estava tão livre de quaisquer
pensamentos que sequer notou a música que chegava a seus ouvidos. Era uma música
belíssima, que ele já tinha ouvido outras vezes naquele dia, em diversas
rádios. Imaginou que aquela se tratava da música
do momento, e aquele que a cantava, o
melhor artista de todos os tempos da última semana. Era uma música bonita,
que tocava até o fundo da alma. E ele ficou a escutá-lala por um longo tempo,
até que, como se algo estalasse em sua cabeça, lembrou-se daquela voz que
cantava.
“Não pode
ser”, pensou ele, levantando-se bruscamente e correndo em direção ao local de
onde o som vinha. Chegou até um pequeno bar, que tinha algumas mesas e cadeiras
espalhadas em sua frente. O som que chegava a seus ouvidos lhe fisgara, de
forma que o homem o seguia tal qual um louco.
- Quem é esse
que está cantando? – perguntou o homem ao dono do bar de onde o som provinha.
O dono do
estabelecimento olhou para aquele que lhe fizera aquela pergunta como se
perguntasse de que planeta ele vinha, para não saber quem estava cantando!
- Como você
não sabe?! É aquele dali, do cartaz pregado à parede na frente do bar – respondeu
ele.
O homem então
correu até o local que o outro lhe indicara e viu com seus próprios olhos
aquilo que seus ouvidos já tinham descoberto e que sua cabeça teimava em não
acreditar: aquele que cantava a tão bela música, aclamado por todos, tão
famoso, era um dos amigos de sua juventude. Ele não estranhou o fato dele ter
sido reconhecido, pois era o único artista, o único talentoso daquele grupo de
jovens idealista. O que estranhara era o fato dele estar tão famoso, o que era
incompreensível era o fato dele ter sucumbido à fama.
Ficou a fitar
a foto de seu amigo de outros tempos, mais um dos que tinham lhe decepcionado,
escutando a sua voz tão conhecida, imaginando o que tinha mudado não só com
aquele que se tornara famoso, mas com todos os outros, o que havia ocorrido
para todos terem mudado, para todos terem se entregado daquela maneira, por
motivos tão vis: dinheiro, poder e fama. Se perguntava onde estavam aqueles
jovens, tão seus conhecidos, que lutaram juntos, que sonharam juntos e que se
diziam tão fiéis aos seus princípios. Ele não sabia!
Saiu daquele
bar cabisbaixo, absorto devido a tudo pelo que passara naquele dia.
Já era noite.
Quando deu por si, percebeu que estava na praia, olhando para o mar, tendo sob
sua cabeça um céu estrelado e uma lua cheia belíssima, como ele não via há
anos, desde que fora encarcerado. Os únicos sons que chegavam a seus ouvidos
eram das ondas, que quebravam bem próximo de onde ele estava e de um grupo de
jovens que estavam sentados embaixo de um posto, em bancos de pedra. Falavam
alto, gesticulavam, faziam uma verdadeira baderna, que o homem fuçou a se
perguntar o que faziam aquela juventude daquele tempo. Tinha visto outros
jovens desde que saíra da prisão e todos agiam da mesma maneira. Era uma
juventude que não se preocupava com nada, que não tinham uma ideologia
definida, composta de pessoas que não tinha uma personalidade definida, bem
diferente dos de sua época.
Estava a
observar tais jovens que sequer percebeu que um homem se aproximara
sorrateiramente dele.
- O que há com
essa juventude de hoje? – perguntou ele.
O homem então
se virou, assustado, pois se julgava sozinho.
- Como?
- Essa
juventude de hoje, o que há com ela? É bem diferente das pessoas de meu tempo e
do seu. São jovens que não têm idéias, que possuem tudo e ao mesmo tempo não
possuem nada, que se julgam felizes em sua ignorância, que não sabem nada do
mundo que os cerca, que não têm que lutar por nada, por ninguém, e não fazem
isso nem por si mesmos... – ao terminar de fazer o seu breve discurso, o recém-chegado
soltou um suspiro tão alto e doloroso que parecia que seu peito tinha sido
transpassado por um punhal.
O homem, ainda
sentado, virou-se para observar mais uma vez aqueles que estavam próximo a ele,
e não deixou de dar certa razão àquele que falara tudo aquilo. Lembrou-se dos
tempos de sua juventude, de quando vinha para aquela mesma praia com os amigos
e ficavam horas a conversar, a discutir, a sonhar... soltou, assim como o
outro, um suspiro longo e profundo, por si mesmo e pelos amigos. Olhou para o
alto mais uma vez e viu que algumas nuvens encobriam parcialmente a lua.
Olhou então
para o outro, que se mantinha calado, observando o mar. Este, ao ver que estava
sendo observado, sorriu para o outro. Tirou de dentro da bolsa que trazia uma
garrafa de bebida e dois copos, encheu os dois e o ofereceu àquele que o
observava.
- Um brinde? –
perguntou o que oferecia a bebida.
- Um brinde a
quê? Um brinde a quem?
- Um brinde
aos caras que não mais existem, que foram seduzidos, que se venderam, que mudaram
de lado, que, enfim, morreram, que só existem em nossas memórias.
Os dois então
tocaram seus copos um no outro e beberam de um só trago a bebida, que desceu
queimando em suas gargantas. Depois, em silêncio, os dois foram absorvidos,
cada um por seus pensamentos.
o texto é um pouquinho longo e está mais para uma "novela" do que para um "conto", mas vale a pena ser lido, pode acreditar.
ResponderExcluirParabéns Arlindo!!! gosto muito do que você escreve! Li seu livro - Espelho Quebrado, adorei! continue assim! abrs. Marieta
ResponderExcluirJaz, no cárcere, uma ideologia perdida. Por dez anos aquele sujeito, fixo em suas raízes revolucionárias, representante dos valores que o faziam um homem real, esteve trancafiado num presídios de esperanças sobre os que "livres", supostamente mantinham a bandeira dos ideais fincada em sólidas convicções. Mas ao sair, símbolo do reencontro com as ideias progressistas, deparou-se com uma sociedade mortificada, apodrecida, entregue à futilidade e inexistência das verdades - pilares culturais - que constituem um homem honrado. Inversões, dissoluções, devassidões, a mudança para uma vida farta e prazerosa, imobilizou o homem guerreiro, engessou sua vocação para as conquistas, fossilizou-o. Uma juventude estagnada, herdeiros de tempos esvaziados e estéreis, perdem-se em excessos como fuga espetacular pela angústia do nada, de não haver uma mísera centelha pelo que lutar. Uma sociedade neutralizada, docilizada, deteriorada. E o velho idealista, esperando lutar pela luta, sofre sem se vitimizar. Olha o mar e recebe, vindo ao seu encontro, um alguém que o faz iniciar um luto pelo que já está morto. Que ele possa viver nessa morte - esse é o recado pelo que lutar nos tempos atuais. Um grande abraço...
ResponderExcluirAlex,
ResponderExcluirrealmente, a ideia do texto é essa, que você tão bem definiu em seu comentário, que é quase um conto... rsrs
esse texto (conto ou novela, não sei bem como defini-lo) vai estar em meu próximo livro, que não sei exatamente quando irei publicar, mas acredito que ainda no segundo semestre desse ano.
Marieta,
fico feliz que tenha gostado de meu livro "Espelho Quebrado" e que tenha aparecido e comentado em meu blog. apareça mais vezes e deixe, sempre que possível, seus comentários, críticas e opiniões sobre meus textos.