domingo, 25 de abril de 2010

Novo romance

esse é o trecho inicial de meu novo romance, que ainda está sendo escrito e não tem data definida quanto ao seu lançamento nem tem título, ainda.


Hoje faz quinze anos que meu pai morreu. Estranho eu lembrar sua morte, logo hoje, quando julgava já ter superado todo o remorso que senti durante meses após tudo aquilo que se passou.
            Fiquei meses e anos, após a morte de meu pai, sofrendo com remorso, remoendo um sentimento de culpa por não ter feito aquilo que deveria por aquele que me dava tudo sem nada pedir em troca. Ele, que sempre fora tão humilde em toda a sua vida, que sempre cuidara dos filhos, sendo um pai zeloso, principalmente comigo, seu único filho homem, o mais novo.
            De minha mãe eu não guardo lembranças próprias em minha mente, pois ela morreu poucos meses após o meu nascimento. Tudo que sei sobre ela me foi dito por parentes ou por minhas irmãs mais velhas, que sempre cuidaram de mim, como que para compensar a presença da mãe que não tive.
            Com meu pai eu tive pouco contato nos primeiros anos, pois ele passava maior parte do dia fora, trabalhando, saindo muito cedo, quando eu ainda dormia, e chegando muito tarde, quando eu já estava deitado. Ele sempre fora uma presença constante em minha vida, mesmo sem estar tão presente.
            As pessoas falavam que com a morte de minha mãe ele ficou muito abalado, quase enlouquecendo. Ficava horas a fio parado, num canto da casa, sem se mover, ou movendo apenas os lábios, como se falasse sozinho, com a própria sombra ou com as lembranças de minha mãe. Ficou meses inteiros sem sair de casa, sem falar com ninguém, até que uma de suas irmãs, minha tia, surgiu, como se mandada pelo céu para ajudar-nos, e fez o meu pai retomar sua vida e a nossa, uma vez que dependíamos inteiramente dele, apesar da empregada que havia em nossa casa, que cuidou de tudo nesse período, quando meu pai esteve tão ausente.
            Raramente o víamos em casa, primeiro porque ele trabalhava muito, segundo porque, pelo que falavam, ele nos evitava pelo simples motivos de termos, todos, eu e minhas irmãs, muita semelhança com minha mãe, principalmente os olhos, e essa semelhança trazia lembranças dolorosas para aquele homem.
            Só fui ter contato de verdade, mais próximo, de filho pra pai, quando já tinha cinco anos, quando, por milagre, ele ficou doente e foi obrigado a ficar em casa por vários dias. Como minhas irmãs mais velhas passavam o dia fora, umas estudando, outras já trabalhando, e as que tinham idade próxima a minha passavam a maior parte do dia no colégio, ficando eu muitas vezes sozinho em casa, aproveitei a oportunidade para me aproximar dele, daquele homem que tão poucas vezes via, e mesmo assim tão brevemente.
            Lembro como se tudo tivesse acontecido há uma semana, do dia em que vi a porta daquele quarto parcialmente aberta. Estranhei, pois ela ficava sempre trancada e eu nunca havia entrado ali. Pé ante pé, fui me aproximando e olhei para dentro. Não havia ninguém ali, somente ele, deitado, dormindo. Movido pela curiosidade, entrei, tendo cuidado para não fazer barulho e acordá-lo. Cheguei ao pé de sua cama e o observei, inteiramente escondido por baixo daqueles lençois. Só se via seu rosto. Ele estava tão quieto como se sequer respirasse e eu, temendo que algo lhe tivesse acontecido enquanto dormia, aproximei minha mão até tocá-lo na testa. Ele ardia em febre e estava suado e sua respiração era suave, seu peito quase não se movendo por baixo dos lençois quando inspirava e expirava. Quando o toquei, recuei o braço imediatamente, pois ele abriu os olhos e olhou para mim, com um olhar de quem não me reconhecia. Olhou detidamente para mim por alguns segundos, até que, como se tivesse resgatado em sua memória quem eu era, abriu um sorriso. Afastou os lençois e me deu sua mão, que eu segurei, acredito que pela primeira vez na vida. Ele apertou minha mão com força, e senti meus dedos doerem, mas não reclamei, pois aquele aperto de mão estava repleto de carinho, como que fazendo um pedido de desculpas.
            Ele se afastou um pouco para que eu me sentasse na cama, ao seu lado.
            Nunca antes tinha estado tão próximo ao ele!
            Nada falamos naquela ocasião, ficando apenas trocando olhares e sorrisos que diziam mais do que as palavras podiam exprimir.
            A partir de então, eu ia a seu quarto todos os dias e ficava lá, cuidando dele, e só saía de lá nos braços de alguma empregada, que me levava para minha cama, apesar da insistência de meu pai, em querer que me deixassem ali, para dormir com ele, ao seu lado.
            Fiquei triste quando soube que ele já estava melhor, que voltaria ao trabalho, tendo a certeza de que ele voltaria a ser o homem ausente-presente que sempre fora.
            Mas a nossa aproximação o fez mudar completamente a sua postura dentro de casa. Agora ele passou a só sair após tomar o café com toda a família reunida e a chegar cedo em casa, para poder nos colocar para dormir.
            Foi com grande estranhamento que minha tia, que era quem cuidava de tudo em nossa casa, o viu pela primeira vez tomando café-da-manhã conosco. Ele apenas sorriu e indicou uma cadeira onde ela deveria se sentar.
            Ele, desejoso de correr atrás do tempo perdido, fazia de tudo para estar sempre próximo, de mim e de minhas irmãs, e cuidar de tudo em casa. Nunca havia pedido desculpas por ter estado tão ausente durante tanto tempo, mas seus olhos diziam o quão arrependido estava, do quão egoísta tinha sido, fechando em sua dor e solidão, enquanto seus filhos, que tanto precisavam dele, sofriam tanto com sua ausência, pela morte da mãe e morte-em-vida do pai.
            Todos os finais de semana saíamos, ele, eu e vez por outra alguma de minhas irmãs, das mais novas, pois as mais velhas nunca queriam nos acompanhar.
            Íamos a parques, à praia, visitávamos parentes que eu nem sabia que tinha.
            Aqueles foram dos momentos mais felizes de minha vida.
            Muitas vezes eu me levantava à noite e batia à porta de seu quarto e perguntava se podia dormir ali, com ele. Mesmo tendo sido acordado no melhor do sono, ele sorria e me dava passagem. Eu corria e me jogava na cama e antes mesmo que ele se deitasse, eu já estava dormindo.
            Ele tudo fazia por nós, seus filhos, principalmente por mim, talvez por eu não ter tido mãe e por ser, talvez, o mais parecido com ela.
            Não havia nada que eu pedisse que ele não conseguisse para mim. E ele nada me pedia, e justamente quando me pediu, eu não o fiz.

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