Hoje
faz quinze anos que meu pai morreu. Estranho eu lembrar sua morte, logo hoje,
quando julgava já ter superado todo o remorso que senti durante meses após tudo
aquilo que se passou.
Fiquei meses e anos, após a morte de
meu pai, sofrendo com remorso, remoendo um sentimento de culpa por não ter
feito aquilo que deveria por aquele que me dava tudo sem nada pedir em troca.
Ele, que sempre fora tão humilde em toda a sua vida, que sempre cuidara dos
filhos, sendo um pai zeloso, principalmente comigo, seu único filho homem, o
mais novo.
De minha mãe eu não guardo
lembranças próprias em minha mente, pois ela morreu poucos meses após o meu
nascimento. Tudo que sei sobre ela me foi dito por parentes ou por minhas irmãs
mais velhas, que sempre cuidaram de mim, como que para compensar a presença da
mãe que não tive.
Com meu pai eu tive pouco contato
nos primeiros anos, pois ele passava maior parte do dia fora, trabalhando,
saindo muito cedo, quando eu ainda dormia, e chegando muito tarde, quando eu já
estava deitado. Ele sempre fora uma presença constante em minha vida, mesmo sem
estar tão presente.
As pessoas falavam que com a morte
de minha mãe ele ficou muito abalado, quase enlouquecendo. Ficava horas a fio
parado, num canto da casa, sem se mover, ou movendo apenas os lábios, como se
falasse sozinho, com a própria sombra ou com as lembranças de minha mãe. Ficou
meses inteiros sem sair de casa, sem falar com ninguém, até que uma de suas
irmãs, minha tia, surgiu, como se mandada pelo céu para ajudar-nos, e fez o meu
pai retomar sua vida e a nossa, uma vez que dependíamos inteiramente dele,
apesar da empregada que havia em nossa casa, que cuidou de tudo nesse período,
quando meu pai esteve tão ausente.
Raramente o víamos em casa, primeiro
porque ele trabalhava muito, segundo porque, pelo que falavam, ele nos evitava
pelo simples motivos de termos, todos, eu e minhas irmãs, muita semelhança com
minha mãe, principalmente os olhos, e essa semelhança trazia lembranças
dolorosas para aquele homem.
Só fui ter contato de verdade, mais
próximo, de filho pra pai, quando já tinha cinco anos, quando, por milagre, ele
ficou doente e foi obrigado a ficar em casa por vários dias. Como minhas irmãs
mais velhas passavam o dia fora, umas estudando, outras já trabalhando, e as
que tinham idade próxima a minha passavam a maior parte do dia no colégio,
ficando eu muitas vezes sozinho em casa, aproveitei a oportunidade para me
aproximar dele, daquele homem que tão poucas vezes via, e mesmo assim tão
brevemente.
Lembro como se tudo tivesse
acontecido há uma semana, do dia em que vi a porta daquele quarto parcialmente
aberta. Estranhei, pois ela ficava sempre trancada e eu nunca havia entrado
ali. Pé ante pé, fui me aproximando e olhei para dentro. Não havia ninguém ali,
somente ele, deitado, dormindo. Movido pela curiosidade, entrei, tendo cuidado
para não fazer barulho e acordá-lo. Cheguei ao pé de sua cama e o observei,
inteiramente escondido por baixo daqueles lençois. Só se via seu rosto. Ele
estava tão quieto como se sequer respirasse e eu, temendo que algo lhe tivesse
acontecido enquanto dormia, aproximei minha mão até tocá-lo na testa. Ele ardia
em febre e estava suado e sua respiração era suave, seu peito quase não se
movendo por baixo dos lençois quando inspirava e expirava. Quando o toquei,
recuei o braço imediatamente, pois ele abriu os olhos e olhou para mim, com um
olhar de quem não me reconhecia. Olhou detidamente para mim por alguns
segundos, até que, como se tivesse resgatado em sua memória quem eu era, abriu
um sorriso. Afastou os lençois e me deu sua mão, que eu segurei, acredito que
pela primeira vez na vida. Ele apertou minha mão com força, e senti meus dedos
doerem, mas não reclamei, pois aquele aperto de mão estava repleto de carinho,
como que fazendo um pedido de desculpas.
Ele se afastou um pouco para que eu
me sentasse na cama, ao seu lado.
Nunca antes tinha estado tão próximo
ao ele!
Nada falamos naquela ocasião,
ficando apenas trocando olhares e sorrisos que diziam mais do que as palavras
podiam exprimir.
A partir de então, eu ia a seu
quarto todos os dias e ficava lá, cuidando dele, e só saía de lá nos braços de
alguma empregada, que me levava para minha cama, apesar da insistência de meu
pai, em querer que me deixassem ali, para dormir com ele, ao seu lado.
Fiquei triste quando soube que ele
já estava melhor, que voltaria ao trabalho, tendo a certeza de que ele voltaria
a ser o homem ausente-presente que sempre fora.
Mas a nossa aproximação o fez mudar
completamente a sua postura dentro de casa. Agora ele passou a só sair após
tomar o café com toda a família reunida e a chegar cedo em casa, para poder nos
colocar para dormir.
Foi com grande estranhamento que
minha tia, que era quem cuidava de tudo em nossa casa, o viu pela primeira vez
tomando café-da-manhã conosco. Ele apenas sorriu e indicou uma cadeira onde ela
deveria se sentar.
Ele, desejoso de correr atrás do
tempo perdido, fazia de tudo para estar sempre próximo, de mim e de minhas
irmãs, e cuidar de tudo em casa. Nunca havia pedido desculpas por ter estado
tão ausente durante tanto tempo, mas seus olhos diziam o quão arrependido
estava, do quão egoísta tinha sido, fechando em sua dor e solidão, enquanto
seus filhos, que tanto precisavam dele, sofriam tanto com sua ausência, pela
morte da mãe e morte-em-vida do pai.
Todos os finais de semana saíamos,
ele, eu e vez por outra alguma de minhas irmãs, das mais novas, pois as mais
velhas nunca queriam nos acompanhar.
Íamos a parques, à praia,
visitávamos parentes que eu nem sabia que tinha.
Aqueles foram dos momentos mais
felizes de minha vida.
Muitas vezes eu me levantava à noite
e batia à porta de seu quarto e perguntava se podia dormir ali, com ele. Mesmo
tendo sido acordado no melhor do sono, ele sorria e me dava passagem. Eu corria
e me jogava na cama e antes mesmo que ele se deitasse, eu já estava dormindo.
Ele tudo fazia por nós, seus filhos,
principalmente por mim, talvez por eu não ter tido mãe e por ser, talvez, o
mais parecido com ela.
Não havia nada que eu pedisse que
ele não conseguisse para mim. E ele nada me pedia, e justamente quando me
pediu, eu não o fiz.
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