domingo, 10 de novembro de 2013

O menino que aparava as frutas



Engraçado como nossa memória olfativa e visual é forte. Por vezes basta uma palavra-gatilho para nos fazer voltar no tempo e lembrar cheiros e fatos que jaziam adormecidos numa gaveta fechada há tempos de nosso cérebro. Um gatilho-palavra pode disparar-despertar inúmeras lembranças e fazer pairar inúmeros cheiros que nos fazem até salivar de tão deliciosos que são...
            Ontem uma amiga me falou a palavra Laranja, e ao ouvi-la fui imediatamente invadido pelo cheiro delicioso de suco de laranja, feito na hora, direto da fruta (nada de polpa de laranja ou de sucos artificiais), aquele mesmo suco que eu tomava no almoço, antes de ir para a escola, aquele mesmo suco que eu por vezes ficava sem tomar parte só para colocar no congelador para fazer picolé e eu poder desfrutar à tarde, em dias de forte calor. Laranja pra mim sempre teve cheiro e sabor de infância, de final de manhã, da hora do almoço, antes da escola, ou de, nas férias, feriados ou dia em que não tinha aula, das tarde de sol quente, em que, na pausa entre uma partida e outra de futebol, eu corria para casa e tinha um saboroso e refrescante picolé de laranja a me esperar.
            Nossas gavetas em que são guardadas as lembranças são cheias dessas coisas: uma palavra desperta uma lembrança, que desperta outra, que vem seguida de outra, e lá vem outra, outra e outra...
            Da palavra-cheiro-sabor da laranja, veio a goiaba e com ela as lembranças da goiabeira que havia no quintal de minha casa, de meu pai subindo e jogando lá do alto as mais apetitosas frutas para eu apagar para que não ficassem esmagadas ao caírem diretamente no chão. Lembro-me dos sucos e doces de goiaba que minha mãe fazia, do cheiro da goiaba invadindo e tomando toda a cozinha, e dos picolés que eu fazia com o suco de goiaba... Também me lembro de outra fruta saborosa que faz parte de minha infância: a manga. Na rua onde morei a maior parte de minha vida, incluindo a minha infância e maior parte da adolescência, havia muitas mangueiras, e eu era o escolhido para ficar embaixo, enquanto os amigos subiam e ficavam, lá de cima, jogando as frutas mais maduras para eu aparar. Ficava, lá embaixo, olhando para cima, com o olhar fixo na fruta que caia, para segurá-la e não a deixar se machucar ao cair diretamente no chão. Imaginava como seria bom fazer como alguns amigos, que chupavam a fruta lá no alto mesmo, ainda quentinha, sendo acariciados pelo vento que passava por entre as folhas e galhos da árvore.
            As lembranças da goiaba e da manga, despertadas pelas da laranja, que chegou até mim via uma palavra “jogada”, escolhida aleatoriamente por uma amiga, me fizeram lembrar que eu era sempre aquele que ficava embaixo, aparando as frutas, e isso me fez ver que eu só ficava ali, por vezes sozinho, porque era o único da turma a não saber subir nas árvores, a não poder desfrutar, lá do alto, das carícias do vento e do sabor da fruta ainda quente, recém-colhida. Essa constatação me deixou, confesso, um tanto quanto triste, por nunca ter tido tais prazeres, mas, em compensação, feliz, por ser eu o responsável por aparar as frutas, por impedi-las de cair diretamente no chão e se machucarem.
            Não subia nas árvores naquela época e não subo nelas hoje em dia, mas as lembranças de hoje, quando despertadas por uma palavra, um cheiro ou por um sabor, me fazem capaz de ir lá em cima, de ir muito além dos galhos, e me fazem ver que tão importante quanto aquele que colhe a fruta e as deixa cair livremente é aquele que a impede de cair no chão e se machucar, para que possam ser saboreadas por aqueles que não tem o dom de subir em árvores.

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