sábado, 14 de janeiro de 2012

A história das mulheres amaldiçoadas

A primeira lembrança que a menina tinha era a do dia em que sua mãe fora abandonada pelo marido, seu pai. Ela chorava, maldizendo a tudo e a todos pela maldição que fora jogada em sua família, tantos anos antes, em todas as mulheres. Dizia a maldição que nenhuma mulher daquela família seria feliz com homem algum, e assim vinha sendo de geração em geração. Um dia a mulher se julgava a mais feliz do mundo, amava e se sentia amada, e no seguinte sentia um vento frio bater em seu rosto, e sabia que era a maldição vindo à tona, e o homem que lhe fazia tão feliz desaparecia, a abandonando com uma criança pequena nos braços, ou a traía ou tinha sua vida arrancada sem piedade por alguma fatalidade. Algumas mulheres eram felizes, viviam suas vidas sem quaisquer preocupações com a maldição que recaia sobre seus ombros, mas estas, afortunadas, não eram sequer lembradas como pertencentes àquela família. O elo, o que unia as mulheres naquela família, era a maldição.
            A menina lembrava-se do choro da mãe, de suas palavras injuriosas à Deus e ao Diabo, da raiva em seus olhos e de sua indignação. Ela também chorava, com medo, abraçada à irmã mais velha, que a consolava. Não entendeu, pois era apenas uma criança, e mal tinha cinco anos, o que se passava, mas a palavra maldição ficou, desde aquele dia, para sempre gravada em sua memória. Quando pegava no sono, escutava o eco da voz de sua mãe falando na maldição e em sua irmã, mesmo também uma criança, pouco mais velha do que ela, tentando explicar o que era aquilo. Quando ia a escola, que via as meninas de sua sala não a chamando para brincar ou mesmo a evitando, ficava imaginando se era por que era uma suja, por que estava amaldiçoada.
            Cresceu com o estigma de uma amaldiçoada, sempre ouvindo as lamúrias de sua mãe, sempre vendo a raiva e a inveja dela quando via um casal feliz e os amaldiçoava por sua felicidade. Sempre a via rezar, lamentando-se por sua condição. Ouvia histórias, contadas por ela, de sua avó, bisavó, tias e outras parentes distantes, que sempre eram agraciadas, em dado momento de suas vidas, com a infelicidade, em que eram lembradas pela maldição daquela família. Via a sua irmã mais velha se tornar uma moça bela, que chamava a atenção de todos, sejam homens, que a desejavam, sejam mulheres, que a invejavam. Sua irmã, mesmo sabendo tão observada, não olhava, nunca, para ninguém, e sentia medo só de pensar no dia em que olhasse para um alguém e se apaixonasse, pois saberia que, quando isso acontecesse, seria o mais feliz e o mais triste de sua vida.
            Viveu uma vida tranquila, apesar de tudo, e pouco a pouco a ideia da maldição havia sido esquecida. Não mais via sua mãe reclamar ou falar disso. Até na escola, já moça, com seus treze anos, se aproximou de um grupo de meninas, e todas se tornaram amigas inseparáveis. Passavam horas e horas, mesmo durante as aulas, conversando sobre assuntos que meninas-moças dessa idade conversam. No horário de intervalo entre as aulas, iam ao pátio da escola e lá ficavam jogando conversa fora.
            Um dia, quando estava em casa, no quarto, viu quando sua irmã chegou, felicíssima, como ela jamais a vira. Estava radiante, tanto que não conseguia falar o motivo de tudo aquilo. Foi para o quarto e se jogou na cama, abraçando os travesseiros. Nos olhos, um sorriso, um brilho diferente, da mais pura e elevada felicidade humana: a paixão havia lhe arrebatado por inteiro.
            Passou a noite em claro, ouvindo as histórias de sua irmã, de como ele era lindo, de como havia pego sua mão, das palavras que dissera, do sabor de seu beijo e do calor de seu abraço. A irmã era feliz, e a contagiou com essa felicidade. Somente a sua mãe não mostrava contentamento algum, e se mantinha calada.
            Virou uma mulher tendo em sua irmã um grande ídolo. Tinha uma inveja saudável dela, de sua felicidade, ao ver tudo que ela alcançava: sua formatura, seu primeiro emprego, quando foi promovida; seu noivado, todos os preparativos para o casamento, todas as compras para o enxoval.
            Sua irmã, no dia do casamento, estava esplendorosa, e todas as mulheres da família estiveram presentes. Não se sabia se os olhares delas era de inveja e reprovação ou de felicidade e alívio. Foi com grande alívio que ouviram o “sim”, dado pelo noivo, repleto de entusiasmo. Souberam que aquele homem iria fazer daquela mulher, a mulher mais feliz do mundo. Aquele “sim” dos noivos, foi, para a família, como se tivesse sido selado o fim da maldição. Maldição algum poderia atrapalhar aquela felicidade.
            Ninguém da família falou mais em maldição, e as mulheres, todas, se preocuparam apenas em viver suas vidas. Nem todas eram felizes em seus relacionamentos, óbvio, mas atribuíam isso a motivos diversos, e viviam suas vidas como deveriam viver. Algumas eram abandonadas, outras traídas, mas esses casos eram fatalidades, coisas a que todas estavam sujeitas, eram coisas da vida.
            Ela se tornou uma linda mulher, mas de tão ocupada com estudos e trabalho, não dava tempo para si, e não percebia os olhares que as pessoas lhe direcionavam. Saía de casa muito cedo e só chegava tarde da noite, mas sempre ligava para a irmã, para se sentir contagiada com a felicidade da outra.
            Um dia, quando saía do trabalho mais cedo, distraída como estava por conta de uma conversa que tivera com uma amiga, esbarrou em um alguém e acabou derrubando os livros que trazia nas mãos. Quando se abaixou para pegá-lo, o homem em quem tinha esbarrado fez o mesmo, para ajudá-la. Os olhares dos dois se encontraram. Ela jamais, em toda a sua vida, poderia imaginar que aquilo pudesse acontecer. Pensava que aquele tipo de paixão arrebatadora, à primeira vista, numa circunstância daquelas, só acontecia em contos de fadas e em cenas de cinema. Mas ela estava ali, ele estava ali, eram pessoas reais, seus olhares se encontraram e aquela paixão, súbita, fulminante, era real. Não falaram nada, pois palavras não eram necessárias. Seus olhos diziam tudo.
            Aquele foi o dia mais feliz de sua vida. Chegou a casa extasiada e sua irmã veio direto do trabalho para falar com ela, para sentir sua felicidade. As duas se abraçaram longamente e passaram aquela noite juntas, conversando, sem conseguirem dormir.
            Aquela felicidade parecia não ter fim e aumentar mais e mais a cada novo dia, a cada vez que falava com ele, a cada vez que o beijava e se aninhava em seus braços.
            Ele a amava de todo o seu coração, com toda a força de seu amor. Ela era tudo para ele.
            Sua irmã lhe deu a notícia de que seu casamento estava em crise e que provavelmente iriam se separar. Na noite em que lhe contou isso, fazia frio e chovia muito. Ela e sua irmã estavam de mãos dadas, trocando confidências uma com a outra. Ela disse que o namorado estava dando certos indícios de que em breve iria pedi-la em casamento. Ao falar isso, sentiu um vento frio tocar seu rosto e um arrepio, que foi da nuca até o final da coluna, então ela se lembrou...
            Ouvir aquela notícia, da separação de sua irmã, foi como um balde de água fria em sua felicidade, no sentido de sua vida. Um filme passou em sua cabeça numa fração de segundo. Lembrou-se de sua infância e aquele dia, de sua primeira lembrança, lhe veio à mente. Lembrou das lágrimas e lamentações da mãe e de outras mulheres de sua família. Via o exemplo de suas familiares (e agora de sua irmã), todas infelizes.
            Ela tinha a certeza de que a maldição era verdadeira, de que nada que pudesse fazer poderia quebrá-la, de que por mais feliz que fosse, sempre haveria um momento em sua vida, mais cedo ou mais tarde, em que a esta felicidade lhe seria roubada e ela se veria sozinha e triste, completamente arrasada.
            Ninguém, na família, falava mais em maldição. Era como se todas as que sofreram tivessem esquecido o que acarretara tal sofrimento, e só ela se lembrasse e sentisse o peso da maldição. Era como se só ela pudesse ver com clareza o motivo das infelicidades de cada mulher de sua família. Era como se só ela pudesse entender as consequências de se carregar um estigma, de se ser uma amaldiçoada.
            Naquela noite ela não dormiu, e quando pegou no sono, quando o sol já estava para nascer, teve pesadelos.
            Acordou sobressaltada com o seu telefone celular. Era seu namorado, que lhe ligava para dizer que a amava e que precisava falar com ela, ainda naquela manhã, para lhe dizer algo de muito especial. Ela já sabia, intuía, o que ele tinha para lhe dizer, e sabia, também, que resposta teria que dar.
            Ao ouvir a recusa de seu pedido de casamento, ele quis saber um porquê, já que se amavam tanto, já que eram tão felizes juntos, já que se podiam fazer ainda mais felizes um ao outro. Como resposta, ela disse apenas que não podia ser feliz, que a felicidade não lhe era permitida, e que o amava, e sempre o amaria, só não podia, nem queria, ser feliz amanhã para, no dia seguinte, esquecer tudo e ser mais infeliz ainda.
            Por acreditar que havia uma maldição que recaia em sua família, por acreditar que seria para sempre infeliz, ela deixou a felicidade escapar por entre seus dedos, tudo por conta de uma crendice.

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