domingo, 29 de janeiro de 2012

Um homem restituído de sua liberdade

Passado tanto tempo, privado completa e inteiramente de sua liberdade, o homem estava ansioso ante a expectativa de, finalmente, colocar o pé para fora daquela prisão e se ver, enfim, livre.
            Naquela noite, dormiu no chão duro e frio da sela e foi com grande alegria, sentimento este que não sentia há anos, há tanto tempo que já o tinha esquecido, não se lembrando o quão bom é se sentir simplesmente alegre, que viu, pela minúscula janela do alto da sela, os primeiros raios de sol que surgiam no horizonte. Nunca tinha reparado no amanhecer até aquele dia. Para ele, o nascer do sol era como ago mecânico, invariável, que acontece todo dia, e não algo novo, que sinaliza um novo começo, o novo de novo. Ele subiu em sua cama para ver o sol através daquela minúscula janela e só então percebeu o quão pequeno era o seu mundo ali dentro, encarcerado, e quão belo deveria ser o nascer do sol lá fora, no mundo.
            Esperou numa mescla de paciência e impaciência pela hora em que seria chamado. O tempo se arrastava e a cada vez que ouvia passos do lado de fora, no corredor, levantava-se de um salto e ficava junto à porta, segurando as barras de ferro. Mas a cada vez que o guarda passava pela frente da sela, tornava a se sentar, cada vez mais ansioso. Assim passou parte da manhã e quando estava já cansado, quando não esperava mais ser chamado, apareceu um homem, um guarda. Ele mal acreditou em seus ouvidos quando ouviu um alguém chamando seu nome. Levantou-se devagar e deu dois curtos passos para fora, e, ao sair, ainda olhou para a sela onde tinha passado tanto tempo uma última vez.
            Caminhou pelos corredores da prisão seguindo um guarda e sendo escoltado por um outro. Andava calado e de cabeça baixa, ouvindo os sons de seus próprios passos ecoando pelos corredores da prisão e os das pessoas que despertavam.
            Aquele lugar que estava abandonando não lhe despertava qualquer sentimento, mas, mesmo assim, por cada canto que passava, ele olhava uma última vez, como se estivesse se despedindo.
            Já na saída, enquanto a porta que iria lhe restituir a liberdade roubada era aberta, olhou para toda aquela imensa prisão e viu, lá longe, o que imaginou ser sua minúscula sela onde passara tantos anos. Já não se lembrava o dia e ano que entrara ali, e não fazia ideia de que dia e ano era aquele que estava saindo.
            A porta foi aberta e o sol bateu em cheio em seu rosto, lhe cegando momentaneamente. Quando pôde, finalmente, ver o mundo que se descortinava a sua frente, ficou sem ar, sem acreditar em seus próprios olhos. O mundo estava tão mudado e tão vasto, tão diferente de como ele o deixara quando fora preso.
            Deu um passo a frente, incerto, inseguro, rumo à liberdade, ao que havia se desacostumado, ao desconhecido, e ouviu às suas costas a porta da prisão sendo fechada e a de sua nova vida sendo aberta.
            Tropeçando em suas próprias pernas, ele caminhava sem um caminho certo, em qualquer direção. Não sabia para onde ir, agora que estava livre, e não se lembrava mais dos rostos das pessoas que um dia conhecera há tantos anos. Na prisão, estava acostumado ao pequeno mundo, aos mesmos rostos conhecidos dos longos anos do encarceramento, das pessoas com quem dividia as privações, mas agora, no mundo, ele não sabia para onde ir, quem procurar e o que fazer com aquilo a que todos chamavam de liberdade.
            Caminhou em linha reta por um longo tempo e quando suas pernas estavam cansadas parou para descansar. Colocou a mochila com seus poucos pertences no chão e se sentou num banco de praça. Enquanto descansava, percebeu, pela primeira vez, como estava cercado por tantas pessoas. Sorria para cada uma delas, mas não recebia sequer um olhar como resposta. Era como se ele fosse transparente, e ninguém reparava no homem recém-liberto, com a alma em júbilo, ali, parado, louco para conhecer e desfrutar de sua nova vida.
            Cansado de sorrir e sequer ser notado, abaixou a cabeça e soltou o ar que estava preso em seu peito.
            Levantou-se e começou a andar entre as pessoas, sendo apenas mais um na multidão.
            Ficou horas a fio andando de um lado pro outro, sentindo-se cada vez mais só à medida que a multidão se adensava ao seu redor.
            Foi ao centro da cidade, antes tão sua conhecida, e não encontrou ninguém, por mais que visse centenas de pessoas; foi a bairros da periferia e se sentiu tão miserável, privado de coisas que a mais pobre daquelas pessoas tinha: companhia.
            O sol já estava fechando seus olhos quando, parado, o homem olhou para o céu e viu um bando de pássaros num voo rasante. Olhou para a sua frente e viu pessoas, juntas, voltando para casa após um longo e estafante dia de trabalho; viu estudantes voltando da escola em sua algazarra incomodando por onde passavam; viu uma mulher que caminhava sorrindo enquanto falava ao telefone com um alguém que estava a lhe esperar; viu um pai e sua filha; e viu a si mesmo, sozinho com sua sombra alongada a seus pés.
            Sentou-se no chão, olhando o horizonte, até que o sol sumiu, dando lugar a uma lua que brilhava majestosa no céu. Naquele momento, quando viu a lua sobre sua cabeça, sentiu-se como ela: livre, tendo todo o mundo, todo o céu, para vagar eternamente, mas só.
            Antes era um homem privado de sua liberdade, hoje se sentia privado de toda e qualquer companhia. Antes era seu corpo que estava aprisionado, agora era sua alma que clamava por liberdade.
            Sentia como se estivesse sendo engolido por um nevoeiro, que lhe cobria pouco a pouco até não lhe restar mais nada além de sua sensação de falsa liberdade e certeza de uma solidão.

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