domingo, 12 de outubro de 2014

A lucidez e o fim da inspiração

Não consigo mais escrever. Não sei o que se passa comigo, que fico horas e horas a fio com uma folha de papel em branco e uma caneta em mãos, e, quando me dou conta, vi que os ponteiros do relógio deram uma volta completa e a folha continua ali, em branco, mesmo eu estando de posse de um instrumento capaz de riscá-la por inteiro. Mas não! Eu simplesmente não consegui riscá-la, não consegui empunhar a espada/caneta e, tal qual Dom Quixote, ver, na folha em branco, um dragão e lutar contra ele. Talvez veio a mim o que, felizmente, não chegou (ou chegou muito tarde) ao Cavaleiro da Triste Figura: a lucidez!
            Talvez seja isso mesmo: eu estou lúcido! e, para escrever, se é necessária certa dose de desprendimento, certa inlucidez, certa toque de fantasia, e eu não consigo mais fantasiar. Talvez esteja com a minha fantasia aprisionada ou talvez esteja simplesmente preso por um algo que, mais cedo ou mais tarde, sempre nos alcança e exige de nós mais do que podemos dar: a rotina. A rotina é cruel. Ela aprisiona, toma a nossa inspiração, a nossa disposição (física e mental) e nos rouba inteiramente o nosso precioso tempo. Da rotina ninguém consegue fugir. No máximo a gente a vai enrolando, e ela, esperta como é, acaba se deixando levar. Mas chega uma hora que ela nos pega, nos abraça e diz que dela ninguém escapa! E quando se é realmente pego pela rotina, quando se está em suas mãos, nos tornamos seus escravos e lhe damos tudo que nos é mais precioso, e o maior castigo, justamente por termos tentado nos esconder dela, reside na lucidez. Ela exige que sejamos, sempre, durante as 24 horas do dia, lúcidos. Não nos é permitida sequer devaneio nem quando estamos sonhando. Os sonhos tornam-se verdadeiras projeções de nosso dia a dia, e não é permitido, nem ali, a entrada da fantasia.
            A rotina, portanto, está intrinsecamente relacionada à lucidez, e esta, por sua vez, age como uma carcereira da fantasia, e com isso perde-se a inspiração, seja ela a serviço do que for. O pintor, sem fantasia, sem inspiração, já não consegue mais pintar, e se o tenta, suas pinceladas saem grosseiras, sem cor, sem brilho, como que artificiais. O músico já não mais compõe, e, se tenta, o máximo que consegue extrair dos instrumentos são barulhos idênticos aos das buzinas dos carros e aos dos passos das pessoas correndo apressadas de um lado para o outro. O escritor, como que cego, já não mais vê poesia. Em ambos os casos o que há comum está no fato de que o que antes eram seus instrumentos de trabalho, agora são verdadeiras armas contra e com as quais têm que lutar diariamente em busca da inspiração perdida/aprisionada.
            O artista, seja ele aquele que empunha um pincel, uma caneta ou um instrumento musical, é um não-lúcido nato, é um fantasista, é um alguém que, mesmo quando engolido pela rotina, consegue encontrar um misero segundo, uma brecha no espaço-tempo e fugir, e nessa mera fração de tempo construir um mundo à parte em que segundos são valiosos como uma eternidade.

            Ser artista e viver e ver a sua inspiração limitada/aprisionada é sofrer em silêncio, é engolir o choro a cada vez que tenta produzir e liberar a sua arte e vê que nada sai de suas mãos. Mas ele, mesmo sofrendo, por amar e acreditar naquilo que faz, no poder de sua arte, ainda continua, persistente, a tentar tirar leite de pedra, como se diz popularmente, por mais que a pedra, por vezes, não lhe dê leite, no entanto ele continua a tentar, pois crê que, mais cedo ou mais tarde, irá encontrar uma que lhe dará de bom grado o néctar necessário à vida, à sua arte.

2 comentários:

  1. Ôh, que bom, voltaste a escrever! Notei q ñ postou nada novo algumas semanas... atribui esse fato a falta de tempo de sentar e produzi. Voltou bem. Interessante conto. Realmente a rotina nos tira a inspiração, os sonhos, fantasias...

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  2. Seu texto é de alguém que pensa muito, o tempo todo, e fica sofrendo, lutando com as palavras. Intenso. Angustiante.
    Pega o leitor.

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