domingo, 3 de agosto de 2014

Pássaro-livre

Aquele era um pássaro em muito diferente dos de sua espécie. Não era preso às convenções, mas sim inteiramente livre. Não tinha que migrar no inverno, em busca de calor e alimento, como seus iguais, mas ia e ficava onde o sol lhe aquecia e onde podia alimentar sua alma independente da estação do ano. Não cantava só e unicamente nas primeiras horas da manhã, como tantos outros faziam, mas enchia o peito e soltava a voz a qualquer hora, seja para louvar o sol e agradecer-lhe pelo calor, seja para declarar seu amor à lua ou às estrelas. Tinha uma forma peculiar de bater as asas, com um gingado que tornava o seu voar muito mais belo e suave, tendo mesmo certo “quê” de sensualidade. Despertava, sim, por ser como era, certa inveja de alguns pássaros, mas a maioria, o admirava e tinham por ele uma saudável inveja.
Gostava de, pela manhã, ao sentir os primeiros raios de sol a tocar seus olhos, ao sentir os suaves dedos da brisa matutina, estufar o peito e cantar em louvor a vida. Gostava de, quando todos os outros estavam parados, empoleirados numa árvore qualquer, abrir suas asas e sair a bailar livremente pelo céu, tendo como parceiro o vento que o conduzia em passos suaves naquela dança. Gostava até mesmo de, para espanto dos de sua espécie, voar em dias de chuva, deixando que aquelas gotas mágicas que caiam do céu banhassem seu corpo e encharcassem sua alma.
Por ser como era, por chamar a atenção como chamava, começou a chamar a atenção de outros seres de outras espécies, que ficavam pasmos, perguntando como aquele pássaro podia e conseguia ser tão diferente de outros que lhe pareciam tão iguais aos olhos. Por ser livre como era, não notava os olhares cobiçosos que alguns desses seres lhe lançavam e não percebeu quando um homem começou a lhe seduzir com presentes belos, mas tolos, a fim de tê-lo não mais livre, onde todos pudessem contemplar, mas somente para si.
O pássaro, de espírito puro e inocente como era, se deixou seduzir e começou a pousar sem medo perto do homem, que a cada dia o trazia para mais perto de si. Foi o homem ganhando, pouco a pouco, mais e mais, a confiança do pássaro a ponto deste chegar, de certa feita, a pousar em seu ombro e ali ficar por longos minutos e até a se deixar tocar e acariciar suavemente por aqueles dedos rudes.
Certa vez, quando já tinha ganhado a total confiança do pássaro, o homem lhe trouxe um presente: uma gaiola. Encheu aquele ambiente de elogios, dizendo que lhe traria segurança e conforto, e o ofereceu humildemente ao pássaro, que se deixou engabelar por aquelas palavras tão elogiosas e entrou na gaiola. Experimentou-a mas ficou meio desconfiada daquelas paredes vazadas, que lhe permitiam ver o mundo exterior, mas que, mesmo assim, eram paredes, e lhe transmitiam apenas uma ideia de falsa liberdade. Saiu da gaiola, onde se sentia sufocado e voou para bem longe.
No dia seguinte voltou, e o homem lhe ofereceu novamente a gaiola. O pássaro não se sentia confortável naquela clausura, mas vendo o sorriso do homem, e se deixando iludir por aquelas melífluas palavras, acabou por entrar mais uma vez. A mesma sensação de sufocamento lhe tomou, e ele saiu mais uma vez. No outro dia, a mesma coisa. No outro e no outro também, até que começou a se sentir relativamente bem na gaiola, muito embora aquelas paredes lhe transmitissem a sensação de estar enclausurado. Saia se sentindo sufocado daquela gaiola, que por maior e mais confortável que fosse, não deixava de ser o que era: uma gaiola.
Um dia o pássaro veio e se aproximou do homem, que lhe ofereceu, como sempre vinha fazendo nos últimos dias, a gaiola. O pássaro a rejeitou, mas diante daquele sorriso e daquelas palavras, acabou cedendo e entrando, mais uma vez, por aquela porta. Andou um pouco, observou um pouco o mundo através daquelas paredes, e quando já se sentia farto daquele ambiente, quando ele começava a se sentir sufocado, que quis sair, viu a porta fechada e através dela o homem, que lhe contemplava com um sorriso diferente.
- Agora você é meu, passarinho! – disse ele.
O pássaro tentou fugir, jogando-se sobre as paredes, tentando abrir uma pequena brecha por onde pudesse passar, mas por mais que fizesse, por maior que fosse a força que desprendesse, não conseguia mover aquelas grades. Ficou triste como jamais estivera em sua vida.
O homem passou a exibir com orgulho o seu pássaro, que continuou, sim, a cantar, mas não era um canto feliz, de louvor à liberdade e à vida, mas um canto de notas baixas como um lamento.
O pássaro, dentro de pouco tempo, devido ao uso limitado de suas asas, começou a senti-las atrofiar e de onde a sua gaiola ficava empoleirada, ele via, lá embaixo, algumas outras gaiolas que pertenceram outrora a outros pássaros, que em outros tempos foram seduzidos por aquele homem e feitos cativos.
Dia após dia ele começou a ficar mais e mais triste. Suas asas, devido ao uso limitado, começaram a atrofiar e sua garganta a secar, pois seu canto não era mais espontâneo. Quando o homem vinha vê-lo de manhã, que o via naquele estado de espírito, procurava estimula-lo, conversando e imitando, com um assovio, um canto de um pássaro. Mas nada que o outro fizesse seria capaz de fazê-lo voltar a se sentir e a ser o que era antes, pois agora ele não era mais um pássaro livre, mas sim um pássaro engaiolado.
Começou a definhar mais e mais e o seu único consolo era ver, através das grades de sua prisão, os pássaros livres a voar no céu. Um ou outro seu companheiro de outrora vinha pousar perto dele e até sobre a sua gaiola, o que lhe trazia certo conforto, pois isso reavivava o seu sonho/desejo de vir a ser novamente livre e sentir novamente o vento bater sob as suas asas. Quando o outro pássaro ia embora, que ele o via se afastar até se tornar não mais que um minúsculo ponto no horizonte, se deixava tomar por uma aguda depressão.
O homem, preocupado, compadecido com a tão latente dor de seu pássaro, tentava, de todas as maneiras, reanima-lo, mas quando via o olhar dele tão distante, fitando o horizonte infinito, sentia-se impotente, sem saber como trazer de volta o espírito daquele pássaro pelo qual se apaixonara e afeiçoara.
Mas o pássaro definhava à olhos vistos e o homem, não aguentando vê-lo morrer lentamente, abriu a porta da gaiola e atraiu o pássaro para fora. O pássaro, tão fraco estava que mal conseguia se mover, mas fez um imenso esforço para conseguir sair da gaiola que se acostumara a chamar de casa. Ao se ver fora da gaiola, finalmente de posse da liberdade pela qual sonhara, mas que acreditava que nunca mais iria readquirir, ficou desnorteado, sem saber o que fazer. Suas asas pesavam, e o homem, ao perceber tudo isso, o pegou delicadamente e procurou reensina-lo a forma correta de abrir as asas e batê-las. O vento, que passava perto, ao ver seu parceiro de dança naquele estado, resolveu ajuda-lo e soprou suavemente em sua direção. O pássaro, ao sentir aquele delicado toque no rosto, sorriu e abriu as asas. Não precisou batê-las, não precisou fazer qualquer esforço, precisou, apenas, se deixar levar nos braços do vento, que o conduziu suavemente nos passos daquela dança e o levou para o alto, de onde podia ver o mundo todo se descortinar perante seus olhos. O homem ficou, emocionado, a contemplar o pássaro readquirir seu antigo viço e prometeu, naquele momento, que nunca mais iria aprisionar pássaro algum.

O pássaro desceu num voo rasante e pousou no ombro do homem e cantou como cantara em outros tempos, e sua canção, e suas palavras eram de agradecimento por ele ter-lhe restituído a liberdade que, num ato impensado, lhe havia roubado. O homem sentiu-se feliz e honrado ao ouvir aquele canto entoado só e unicamente para ele. O pássaro, então, abriu novamente as asas e voou para longe, sendo novamente o pássaro livre que sempre fora, dançando seu balé no ar, cantando em louvor à vida, à liberdade.

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