domingo, 14 de julho de 2013

Rastros



A última vez em que eu o vi, ele era jovem. Era desses jovens impetuosos, desses que podia ser o que quisesse, que tinha a vida toda pela frente e o mundo nas mãos. Nossos caminhos se separaram, mas eu sempre ficava sabendo de seus feitos. Ele havia sido músico, feito sucesso, se envolvido com mil e uma mulheres, depois largou todas elas para viver a sós consigo mesmo. Estava “dando um tempo”, como havia sido noticiado. O “tempo” que havia dado foi tão longo, mesmo, que todos se esqueceram dele, e quando voltou “a vida real”, ninguém mais queria saber de suas músicas e mulher alguma lhe dirigia um único sorriso. Caiu em depressão e se entregou. Passou a usar drogas, foi internado, disse ter se recuperado, voltou a se drogar, depois, pela dor que estava causando aos que o amavam, resolveu dar uma nova chance à vida. Passou a ter uma “vida normal” e entrou para o serviço público. Levava uma vida de rotinas e todos os seus dias eram sempre iguais, com as mesmas obrigações, atendendo as mesmas pessoas, fazendo as mesmas coisas.
            Eu, de longe, ficava pensando em como ele podia aguentar tudo aquilo, sendo ele quem era. Acabou se envolvendo com uma mulher comum e tiveram um casamento comum e seguindo a comum vida dos casais e suas mil e uma rotinas. Já não tinha mais a barba de outrora, seus cabelos eram cortados bem curtos e as tatuagens e cicatrizes estavam escondidas por baixo das roupas de grife que agora usava. Nunca sorria e suas palavras eram como que mecanizadas, sempre as esperadas, as triviais e banais palavras do dia-a-dia. Não mais vivia cercado por tantas pessoas, e, ao invés disso, parecia mesmo evitar o contato humano, salvo aquele a que era obrigado pela sua rotina. Havia, como todos os iguais a ele, se separado, tentado um novo relacionado, se casado novamente para tornar a se separar em seguida. Era mais um “que não tinha dado certo no amor”, como costumava dizer, e agora levava uma vida solitária de gostos e hábitos simples, como proclamava para todo o mundo ouvir.
            De tanto não ser ele mesmo, acabou se confundindo e sempre como todos: apenas mais um na multidão. Fiquei um longo tempo sem saber o que ele fazia da vida e o que a vida fazia dele. Talvez tenha se fundido de tal forma às rotinas e obrigações que tenha se tornado parte essencial delas. Tentei rastrea-lo e seguir seus passos, descobrir onde tinha ido e o que tinha sido feito dele, até que o reencontrei, certa vez, parado. Ele tinha os olhos fixos nos meus, como que me prendendo. Aqueles olhos que eu via não era os do homem igual, do homem das rotinas, mas sim os do jovem que eu não via há tantos anos. Ele não falou uma única palavra, e apenas sorriu, pois percebeu o meu espanto ao vê-lo ali, tão perto. Eu não conseguia falar uma única palavra, pois todas estavam presas na minha garganta. Não sabia o que fazer nem como agir. Não sabia se queria que ele voltasse a sumir, a ser só mais um como havia sido durante tantos anos, ou se ficasse onde estava, que voltasse a ser que ele era, quem sempre tinha sido e que nunca deveria ter deixado de ser.
            Eu devolvi seu olhar e nos seus olhos eu vi a sua alma pulsando de vida. Levantei a mão para tocar sua face e só então me dei conta de que ele era um reflexo que eu via através da fina lâmina de vidro do espelho. Então, ao me dar conta de quem eu era e de quem havia me tornado, chorei, pois agora já era tarde demais e que nada poderia ser feito para fazer o tempo voltar atrás para fazer tudo diferente, de ser quem eu deveria ter sido...

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