quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Pensado ato impensado


Quando conseguiram abrir a porta de sua casa, que entraram, sentiram o cheiro de vazio no ar. Correram imediatamente ao quarto, onde viram um corpo pendurado, seguro precariamente por uma corda que se mantinha firme, segurando o corpo já abandonado de vida. Algumas das pessoas não conseguiram ver a cena que se descortinava perante seus olhos e saíram tropeçando em suas próprias pernas para longe daquele quarto transformado em túmulo, enquanto outros apenas observavam, boquiabertos, buscando respostas que pudessem, de alguma maneira, explicar o inexplicável; uns choravam lágrimas silenciosas, outros permaneciam completamente estáticos, como se suas almas tivessem subitamente abandonado seus corpos. Ninguém falava, não se ouvia um único som além daquele produzido pelo vento tamborilando com seus dedos as janelas do quarto, como que pedindo permissão para entrar.
            Quem quebrou o silêncio, quem primeiro se moveu, foi um homem, que deu um passo adentrando ao quarto escuro em que pairava no ar um cheiro de sem-vida, do mais completo abandono. Segurou cuidadosamente o corpo enquanto tentava desatar aquele nó, mas não conseguiu fazer isso só, e um outro homem, amigo, venceu o choque inicial do que tinha diante de si, e foi ajudá-lo. Juntos, os dois homens, auxiliado por um outro, conseguiram desatar os nós que uniam o corpo à corda e, com toda a delicadeza, deitaram o invólucro que um dia guardara a alma do amigo na cama. O corpo estava leve como uma pena, como se todo o peso de uma vida tivesse sido deixado para trás no momento em que decidira, ainda de posse de sua vida, prender-se àquele nó que ao invés de apertar, desuniria corpo e alma.
            Um silêncio pesado pairava no ar, como se houvesse um acordo tácito firmado de que ninguém poderia e deveria pronunciar qualquer palavra que fosse dentro daquele quarto. O corpo desprovido de vida jazia sobre a cama com um sorriso sereno no rosto, como se aquele ato impensado tivesse sido o mais pensado de sua vida, como se se atirar para tirar a própria vida tivesse lhe libertado não da vida, mas do enorme peso que carregava, e isso, por si só, lhe devolvesse a leveza pela qual sua alma tanto ansiava, e por isso mesmo, de tão leve, tivesse abandonado o corpo.
            Aos poucos as pessoas, que observaram da porta do quarto, foram se tomando de coragem e dando passos inseguros, se aproximando do leve corpo sem vida. O sorriso que ele tinha no rosto, que iria lhe acompanhar por toda a eternidade, era impressionante de tão vivo e espontâneo. Vendo aquilo, algumas pessoas logo começaram a conversar aos sussurros enquanto outras buscavam pelos cantos da casa e do quarto algum indício de algo que pudesse vir a explicar os motivos daquele ato insensato que era o suicídio.
            Procuraram nas gavetas, e tudo o que encontraram foram cartas recém-chegadas de faturas de cartões de crédito e de contas a pagar; ligaram o celular dele, e não havia uma única ligação feita, uma única ligação recebida nas últimas semanas, uma única mensagem de texto na caixa de enviadas ou recebidas; colocaram, praticamente, a casa inteira de cabeça para baixo, em busca de algo, de uma pista, de uma palavra, mas ninguém encontrou absolutamente nada. Tudo parecia no lugar, na mais perfeita ordem, até que um alguém encontrou algo, num canto, sobre a mesa de cabeceira, no canto do quarto, quase esquecida. Era uma folha de papel e uma caneta. Pegou a folha, procurando nela palavras escritas, mas não havia nenhum rabisco sequer nela, completamente imaculada. Mostrou a folha aos outros, que, curiosos, queriam saber o que havia escrito nela, mas que, vendo que nada havia sido dito, ficaram decepcionadas, e continuaram a buscar respostas onde nada havia para ser encontrado.
           
Soube-se, muito tempo depois daquele dia em que encontraram o corpo desprovido de vida, que a única pista que ele realmente tinha deixado era justamente aquela folha de papel em branco, que era como um reflexo de sua vida, que por ser tão vazia e desprovida de marcas e rascunhos, lhe fazia pesar tanto a alma a ponto de tal peso tornar-se insuportável e ele querer e precisar, desesperadamente, se livrar dele, e a única maneira de se livrar de tal peso era se livrar daquilo que lhe pesava: a solidão, a vida.

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