domingo, 20 de maio de 2012

Tarde demais para um beijo

Após tantos anos, os dois voltam a se encontrar, ele em seu eito de morte. Estava com os olhos fechados, dormindo, com o peito mal subindo e descendo quando respirava. Estava fraco, cansado, e aquela agonia durava, já, anos. O primeiro dia de sua morte havia sido naquela fatídica noite em que os dois se encontraram pela última vez, e agora ela voltava, mas nada podia fazer.
            Ele, mesmo dormindo, mesmo tão fraco, em meio a seu sonho, sentiu aquele cheiro que nunca havia esquecido e abriu lentamente os olhos. Demorou longos minutos até acostumar a visão naquele lusco-fusco de fim de tarde e mais ainda a acreditar em seus olhos. Seu coração, tão debilitado, ameaçou parar de bater em seu peito quando a reconheceu. Ela continuava a mesma, com seus lindos olhos, com seu sorriso, com sua jovialidade. Seus olhos se encontraram. Não falaram uma única palavra a princípio, pois não havia palavra que expressasse a emoção daquele reencontro.
            - Você? – perguntou ele, com sua voz cansada.
            Em resposta, ela apenas sorriu. Seu sorriso era lindo com o desabrochar de uma flor na primeira manhã de uma primavera.
            Ela segurou a mão dele, e ele lembrou da primeira e única vez em que suas mãos tinham se encontrado, de como segurara delicadamente a dela, de como a mão dela foi escapando da dele, escorregando lentamente, e ele sem poder fazer nada para segurá-la, por mais que quisesse.
            Uma lágrima brotou no canto do olho dele, tal como brotara, há tantos anos e com a voz mesmo embargada, ainda conseguiu perguntar a ela:
            - Por que agora, após tanto tempo? Por que você me procurou?
            Ela olhou para o alto, desviando seus olhos dos dele, e seu sorriso desapareceu enquanto pensava no que poderia dizer. No entanto, nada que dissesse poderia fazer o tempo voltar, nada que fizesse poderia redimi-la, mas precisava falar-lhe algo, tentar se desculpar ao menos.
            - Eu não sei o que falar... – iniciou.
            - Não há nada para falar – ele lhe cortou.
            - Mas eu preciso...
            - Nada que você fale vai fazer o tempo voltar atrás – ele usava as últimas forças que tinha para falar. Sua forma de falar era dura, repleta daquela raiva contida ao longo dos anos.
            Ela então se levantou e começou a andar de um lado pro outro pelo quarto, parando, vez por outra, para observar objetos de decoração. Viu uma flor, idêntica a que ele lhe dera tantos anos antes, quando tudo aquilo começara, mas já murcha. Quando ela a tocou, a última pétala que ainda parecia resistir, se soltou, sendo levada pelo vento. Viu outras pequenas coisas que lembravam um passado do qual ela havia esquecido, mas que, naquele momento, ela se lembrou.
            - Por quê? Responda-me apenas por que – pediu ele, cada vez mais fraco. Sua voz soava tão baixa e fraca quanto um sussurro.
            Ela então voltou seus olhos para ele. Era difícil encará-lo novamente. Após tanto tempo era difícil reencontrá-lo, ainda mais naquele lugar, tão povoado de memórias, naquela circunstância. Sentou-se na cadeira ao lado da cama e segurou a mão dele, mas ele a retirou tão logo sentiu seu toque. Ela abaixou os olhos, envergonhada. Agora sabia, sentia, que era ela a culpada dele estar ali, naquele leito. Continuou calada, pois não havia o que dizer.
            Ele, impassível, continuava a olhá-la fixamente, a procurar seu olhar, mas ela fugia, como se tivesse medo de olhar em seus olhos.
            - Por quê? – perguntou ele, com a voz ainda mais frágil. Suas forças o abandonavam lentamente, sua vida escoava por entre seus dedos sem que ele pudesse segurá-la, prolonga-la por mais tempo.
            Ela, sem saber o que fazer, sem ter o que falar, continuou em silêncio, deixando que ele falasse, que desse livre vazão a tudo aquilo que tinha ficado preso ao longo de todos aqueles anos.
            - Tudo o que eu pedi, naquela noite, foi um beijo. Tudo o que eu queria, para me dar uma esperança, para me fazer viver, para me dar um sentido à vida, era um único beijo. Podia até ser um beijo sem paixão. Você poderia até ter me enganado, falando palavras doces ao meu ouvido, dizer que sentia algo que não sentia, mas você não podia, não tinha o direito de ter me negado aquele beijo. Quando você me negou aquele beijo, que desviou o olhar do meu, que retirou sua mão da minha, eu senti meu coração parar. Aquele foi o primeiro dia da minha morte e hoje está sendo meu último dia de vida.
Calou-se subitamente, deixando aquelas palavras ecoando nas paredes da alma dela. Respirava devagar, recolhendo as últimas forças que tinha. Depois continuou:
            - Senti, quando você me negou aquele beijo, minha alma me abandonar, deixando-me tão só, naquele frio, sem qualquer fio de esperança. Depois você ainda sorriu, um sorriso sem qualquer graça, um sorriso forçado. Ali, sem palavras, nos despedimos. Quando você foi embora, que me deu as costas, algo meu se foi – talvez tenha sido um fio de uma última esperança na vida –, algo dentro de mim se despedaçou, e eu não resisti. Aquela decepção, aquela dor súbita foi demais para mim.
            Ela ainda tentou falar, mas ele a impediu com um gesto. Ainda não tinha terminado.
            - Você, hoje, faz ideia do que aquele beijo que você não me deu significava para mim?
            Ela ainda tentou falar, pronunciou algumas palavras imprecisas, mas ele não escutava mais. Ela se levantou, chorando e aproximou seus lábios dos dele e o beijou suave e ternamente, mas ele não correspondeu aquele beijo pelo que tanto havia ansiado. Aquele beijo veio tarde demais, e não podia mais salvá-lo.

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